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O seriado Black Mirror levanta a questão: somos todos um amontoado de células?

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O seriado Black Mirror notabilizou-se por chamar a atenção para dilemas morais advindos do avanço da tecnologia. Os costumes e hábitos comportamentais da humanidade não dão conta de adaptar-se adequadamente às novas possibilidades proporcionadas pela ciência em desenvolvimento acelerado, resultando em situações insólitas e conflitos existenciais: eis a tônica dos episódios desta série de sucesso do Netflix.

Em sua quarta temporada, em pelo menos três oportunidades, personagens lançam mão de um artifício há muito explorado pela dramaturgia, mas poucas vezes retratado de forma tão impactante: transferir ou mesmo copiar a consciência de um ser humano para o cérebro de outro indivíduo, para objetos inanimados e até mesmo para dentro de computadores e videogames.

Abordando a relação entre corpo e mente por este viés tecnicista, simplesmente considerando-os como hardware e software, o espectador é instado a refletir em que aspectos e por que motivos, afinal, seríamos seres especiais quando comparados a outros entes de qualquer natureza.

Ora, se consistimos meramente de uma espécie de aplicativo instalado em um receptáculo de carne e ossos, fica difícil elucubrar razões para justificar um tratamento diferenciado entre uma pessoa e um robô — como aquele que recebeu cidadania do governo saudita recentemente —, ou então entre um esposa humana e uma boneca, como tem virado tendência em determinados países, ou ainda entre animais e seres humanos — já virou lugar comum bichinhos de estimação receberem herança e terem a guarda disputada na Justiça.

A partir desta constatação, a vida humana presume-se descartável em face da busca pela perfeição, pela felicidade plena, aqui entendidas como a total conformação da realidade aos desejos de alguém. Deletar um sujeito qualquer da existência, neste cenário proposto pelos roteiristas, pode tornar-se tão corriqueiro quanto puxar um plug da tomada ou apagar um arquivo de uma memória virtual .

Mas espere um instante: em que momento no caminho o princípio da inviolabilidade da vida humana perdeu-se? Melhor: de onde os protagonistas da obra de ficção poderiam resgatá-lo?

Podemos começar a buscar estas respostas partido do seguinte questionamento: que tipo de vida costuma ser tratada até mesmo por altos comissariados do Poder Judiciário como um “amontoado de células” passível de ser interrompida por um simples procedimento médico com vistas a não gerar infortúnios e solavancos na rotina de outrem?

Sim, estamos falando de “aborto”, um artifício semântico que busca suavizar um assassinato correlacionando o ato praticado com “abortar uma decolagem”, por exemplo, como se, ao fim e ao cabo, o piloto tivesse evitado um mal maior.

Guarde este conceito por enquanto: o embrião humano, neste contexto, é um corpo (ainda que em estado de formação) em que já circula um impulso vital, o qual, conforme o entendimento de inúmeros intelectuais mundo afora, pode ser “apagado” sem maiores repercussões, no intuito de preservar o regular andamento da vida dos perpetradores do crime.

Agora imagine que alguém quisesse fazer o mesmo com um tataravô de noventa anos que, sob os efeitos do Alzheimer, já não reconhece os parentes e não se relaciona mais com o mundo exterior de forma alguma: certamente a sociedade, em peso, repudiaria a intenção de desconectar o velhinho. A eutanásia é tolerada em alguns lugares quando visa aliviar sofrimento incurável e insuportável, e por vontade do próprio enfermo, mas não é este o caso.

Mas qual é a diferença em relação ao bebê abortado? Simples: este senhorzinho tem um nome, uma história, um rastro atrás dele. Em virtude disso, não pode ser considerado apenas um “projeto” de ser humano, como muitos veem o fruto no ventre da mãe.

Só que, se for assim, porque outras formas de vida não mereceriam a mesma consideração quando dotadas de legado semelhante? Meu papagaio também tem uma história comigo e está sempre tagarelando. Algumas pessoas cultivam um carinho imenso por árvores sob cuja sombra namoravam ou em cujos galhos brincavam quando criança.

Vale perguntar então: se um lenhador for derrubar esta árvore ou um moleque fizer mira no loro com um estilingue, posso alveja-los em legítima defesa da vida de terceiros?

Indo além: a contrario sensu, se assim for, pessoas indigentes, cuja história ninguém conhece, podem ser mortas e utilizadas como cobaias em experimentos sem ressentimentos, já que ninguém vai se importar? Se uma pessoa solitária, sem amigos que possam atestar que ela é mais do que um registro de nascimento qualquer, for considerada um obstáculo à felicidade de alguém, ela perde o direito a seguir respirando?

E se um conjunto inteiro de pessoas for enquadrado neste quesito? Sim, comece a pensar nos genocídios cometidos em nome do Nazismo e do Comunismo no século XX, nos quais grupos étnicos foram apontados como empecilhos para a nova sociedade perfeita prometida por governos totalitários.

Pense também nos cristãos que viraram inimigos públicos do regime socialista de Evo Morales; pense ainda nos homicídios de Celso Daniel e outras queimas de arquivo realizadas em nome do slogan “um mundo melhor é possível”.

Um último esforço retórico poderia advir ainda da própria evolução da espécie humana: merecemos viver mais do que ratos porque conseguimos criar maravilhas, e eles não. Mas quer dizer então que pessoas com deficiência mental não merecem o mesmo privilégio? O homem de Neandertal também não?

Não tem jeito: o racionalismo não conduz à conclusão de que a vida humana deve ser sempre sagrada e protegida. Por mais contorcionismos lógicos que empreendamos, segue sendo o direito à vida apenas uma concessão dos demais seres humanos que nos cercam, nada mais do que um acordo tácito que pode ser revogado eventualmente, e não uma pedra basilar civilizacional sem a qual tudo o mais desmorona.

Sem a concepção de alma, não passamos de impulsos elétricos circulando por uma porção limitada de matéria. Eu, você, sua mãe: todos amontoados de células. E, insignificantes como tal, estamos todos sujeitos a, a qualquer momento, sermos julgados inoportunos no esforço de construção de uma sociedade “mais justa e igualitária”. E o que vem depois é só tragédia…

É a incapacidade de aceitar as vicissitudes da vida terrena que costuma induzir povos inteiros a acreditarem em utopias coletivistas e a relativizar o sexto mandamento da Lei de Deus. Segundo Olavo de Carvalho:

Se você aceita o sofrimento com total resignação e doçura, não como um castigo ou como uma injustiça cósmica, mas simplesmente como um capítulo normal daquela parte do nosso destino que só Deus entende, acaba descobrindo que esse sofrimento, ainda que em si permaneça incompreensível aumenta o seu realismo e fortalece a sua maturidade. É a pretensão de entender tudo que nos leva a não entender nada.

Some-se esta irresignação diante dos problemas mais frívolos do cotidiano com a banalização da vida humana e o resultado será sempre o horror.

A ética segundo a qual nossas vidas devem ser sempre valoradas acima de quaisquer outros interesses e restar imunes à toda argumentação inteligentinha não é, portanto, uma consequência do aprimoramento de nossa capacidade intelectual como espécie — Pol Pot era formado na Sorbone, só para constar.

Ela advém, em verdade, da crença no espírito. Acreditar que estamos neste mundo pela graça de um ser superior eleva nossa condição acima de todo o restante da biosfera terrestre e confere à vida humana um caráter supramaterial.

Destitua o homem de seu espírito — e aqui nem estamos discutindo se ele existe de fato, mas apenas ressaltando a relevância de crer em sua existência — e só o que resta são seres suscetíveis de virarem alvo de empreitadas malévolas diversas, como a História já cansou de contar — e como o seriado Black Mirror revelou com exatidão.

Seja você, portanto, professante de alguma religião, agnóstico ou mesmo ateu, é forçoso atestar que a fé é uma poderosa ferramenta (não a única, por certo) contra ideologias que veem nos indivíduos meros instrumentos de revoluções.

Encerro com as palavras de Leandro Ruschel as quais corroboram com a tese:

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Ricardo Bordin

Atua como Auditor-Fiscal do Trabalho, e no exercício da profissão constatou que, ao contrário do que poderia imaginar o senso comum, os verdadeiros exploradores da população humilde NÃO são os empreendedores. Formado na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) como Profissional do Tráfego Aéreo e Bacharel em Letras Português/Inglês pela UFPR.

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