O rebanho e a liberdade

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Uma manta dançante, aromosa, cativante, estende-se até o horizonte. De suas ervas alimentam-se uma variedade de espécies, mas uma, em particular, chama a atenção. Um grupo de elipsoides brancos, coerentemente alinhados, se vê flanar pelo campo. Andam lado a lado, possuem a mesma aparência, passeiam ritmadamente, pari passu, olham unissonamente quando atingidos pelo mesmo reflexo. Inimigas da diferenciação, as ovelhas precisam da igualdade para sentirem a segurança de não estarem vulneráveis aos predadores. Juntas, elas podem deixar-se ir pelo pasto. Assim se descreve o movimento de massas políticas na sociedade há muito tempo.

Embora muito se fale em populismo, pouco é dito sobre o porquê de ele funcionar tão bem. Como analisa o filósofo Peter Sloterdijk, em seu livro O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna, o período da modernidade, com seu início pela ascensão da burguesia e a exclusão da nobreza, consolidou um paradigma perdurante até os dias de hoje: a luta entre os desprezados e os reconhecidos. Esses dois tipos psicossociais foram basilares para os eventos históricos da sociedade dos últimos séculos. Revoluções feitas a partir da peleja de grupos que invejavam para si o reconhecimento que outros tinham e o desejo de desprezo que antes eles sentiam consigo mesmos agora contra seus superiores.

Na verdade, a própria consideração de que exista algo “superior” a si é abominada. O nascimento, que outrora era marca de distinção entre o nobre e o plebeu, passa a se tornar o determinante da igualdade. “Todos nascem iguais” – esse passa a ser o fundamento das novas relações sociais. Como disserta o autor, “o projeto democrático baseia-se na determinação de interpretar de outra maneira a alteridade das pessoas – de modo que as diferenças achadas entre elas caduquem e sejam substituídas por diferenças feitas”. Afinal, não existe ideia de nobreza se todos forem nivelados por baixo, pelas características que existem de comum em todo mundo. O projeto da modernidade se configura, então, como um massivo programa em busca do sucesso sem a necessidade de mérito.

Como o novo espírito não admite a verticalidade, qualquer diferença que for achada deve ser tachada como algo “fabricado” ou “socialmente produzido”. As pessoas não têm talento, elas tiveram processos educacionais. Não há gênios, existem tão-somente procedimentos de criação. Não há santos, apenas pessoas muito disciplinadas. Todos são nivelados pela mesma base inferior: são pessoas, nasceram como eu, logo, não posso admitir que sejam distintas de mim. Com isso, qualquer ideia de diferenciação vertical é completamente abolida em nome da igualdade de todos para com todos. A ânsia igualitarista institui a guerra contra os nascimentos desiguais.

Por isso, o fenômeno de massas é intrinsecamente moderno. Como também descreve o nobre católico Erik von Kühnelt-Leddihn, o “verdadeiro membro do rebanho evitará cuidadosamente agir ou pensar de maneira original para não destruir a uniformidade que lhe é tão cara; além disso, está sempre pronto a se insurgir imediatamente contra qualquer pessoa que ousar agir de forma independente e, desse modo, destruir a sagrada unidade do grupo uniforme a que ele pertence”. Segundo o aristocrata, e em consonância com Sloterdijk, o gregário é uma personalidade egoísta, narcisista, que não consegue suportar ninguém diferente dele.

Sem dúvidas, para o homme médiocre, tudo que não reflete a si mesmo é ameaçador. Como acrescenta o nobre autor, para o homem-massa da civilização, “o camponês, com sua forte personalidade, não é menos alvo de seu desprezo e escárnio do que o ‘engomadinho’, o aristocrata de ‘cartola alta’ ou o intelectual ‘cabeça-de-vento’”. Isto é, dentro do rebanho, a pessoa se faz a necessidade de representar a mediocridade porque, com isso, ela se torna o centro gravitacional do grupo, referência e eixo para o movimento de massa. Em vez de despontar pela sua individualidade, talentos e características únicas de si, ela vê que consegue destaque ao ser apenas uma entre muitas, diluída na “média”, e emerge das profundezas do desprezo para adquirir reconhecimento, como parâmetro dos sentimentos, movimentos e normatividades do grupo.

O objeto de adoração não é mais externo, mas a si mesmo. Em consequência disso, o maior instrumento dos políticos encontra a premissa do populismo: a adulação. Como declara Sloterdijk, o populista Adolf Hitler “não entrou em campo em função de alguma extraordinariedade, mas por sua inequívoca rudeza e pela manifestação de sua trivialidade. Se havia alguma coisa de especial nele, isto residia somente na circunstância de que parecia ter inventado em tudo a sua própria vulgaridade, como se fosse o primeiro a ter reconhecido na vilania em si um objetivo que se podia perseguir até o fim. […] Nele o narcisismo vulgar tornou-se próprio para os palcos”. O endossamento das massas através daquilo que existe de “comum” entre todas elas tem se mostrado eficaz nas eleições democráticas.

Dado isso, o caminho dos homens e mulheres livres não pode senão ser pautado por princípios opostos à forma-rebanho. “Fichte comprovou que no fundo de cada existência indecisa e trivial é cometido um erro elementar de pensamento, um erro, teimoso e incorrigível como a vida alienada, surgido daquela irrefutável tendência dos sujeitos de esquecer sua espontaneidade e produtividade originais e de se compreender como coisas entre coisas, consequentemente como vítima de poderes externos”, escreve o filósofo alemão. O ideal do homem romântico, com sua coragem e poder criativo, tende a se mostrar um antagonista da planície do rebanho.

Mas a cultura de massas não pode aceitar uma diferenciação que ela mesma não aprove. A reverência à coragem só pode existir se tiver como referência a própria massa, a diversidade só pode ser horizontal. As algemas têm que ser colocadas para que não seja possível a elevação de ninguém sobre ninguém. Não à toa o rebanho é o maior adversário dos livres. Como Kühnelt-Leddihn testifica em As Raízes do Anti-Capitalismo, apenas o mundo do livre empreendimento pode prover uma forma de vida digna cujo homem “desfruta de privilégios, assume responsabilidades e desenvolve seus talentos como bem entende. Ele é verdadeiramente o mordomo da família. Pode comprar, vender, poupar, investir, jogar, planejar o futuro, construir, cercear, adquirir capital, fazer doações, tomar riscos”. A utopia das ações não é mais freada por um aparato da inveja, mas evoluída da própria personalidade.

A liberdade aparece, à vista disso, como um pré-requisito da grandeza. Ao contrário de nós, domesticados pelo igualitarismo, os livres não temem a quebra das correntes. Na verdade, louvam-na. Pois é impossível sonhar com as alturas sem antes haver a conquista da liberdade. Um mundo onde os talentos não sejam reprimidos por um aparato que os force a serem exíguos. Onde os audaciosos não sejam esmagados em nome da igualdade de massa. Um lugar cujo florescimento humano, em suas esferas materiais e espirituais, não seja alvo de desprezo. Mas, pelo contrário, em que a escravidão da mediocridade se torne desprezível. E o empreendedorismo das belas artes naturais possa germinar.

*Felipe Camolesi Modesto é Jovem Talento pela Liberdade do Instituto Millenium e vice-presidente da Juventude Livre Sorocaba. 

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