O pacto, o demônio e o legislador
“Coração Satânico” é, antes de tudo, um filme sobre um pacto — e sobre o que torna um pacto válido. A história acompanha Harry Angel, um detetive contratado por um homem elegante e inquietantemente polido chamado Louis Cyphre. A missão é simples: localizar Johnny Favorite, um cantor desaparecido que fez um acordo sério demais para ser ignorado. Aos poucos, o detetive descobre que seu cliente é o próprio Demônio, e que Favorite tentara fugir das consequências do pacto assumindo outra identidade. Até aqui, parece apenas uma narrativa de crime com pitadas sobrenaturais. Mas o detalhe mais curioso — e mais interessante juridicamente — é a forma como o próprio Demônio se comporta. Mesmo podendo executar a dívida quando quiser, ele só o faz quando a consciência do devedor é restaurada. Ou seja: para que ele cobre, o sujeito precisa saber que é devedor.
E isso não é só narrativa. É uma intuição contratual clara. Um pacto diabólico não funciona como se fosse uma armadilha; funciona como um acordo. E acordo exige, minimamente, que ambos os lados saibam o que estão fazendo. Enquanto Johnny Favorite está perdido na amnésia, a pessoa que pactuou não existe de forma reconhecível. Ele é, no sentido mais literal, alguém que não consegue se identificar como autor da própria promessa. Sem identidade consciente, não há responsabilidade. Sem responsabilidade, não há contrato a ser executado.
Esse é o ponto que conecta o filme à lógica humiana de consentimento. Hume insistia que não existe vontade sem alguém que possa reconhecê-la como sua. Para ele, a identidade pessoal — o “eu” — não é uma substância misteriosa, mas uma continuidade psicológica construída principalmente pela memória. Sem memória, não há continuidade; sem continuidade, não há pessoa capaz de assumir ou manter um compromisso.
Por isso, em termos humianos, um consentimento dado por alguém que não sabe quem é, que não se lembra do que fez e que não consegue ligar sua decisão ao próprio eu é um consentimento vazio — uma forma sem conteúdo. É um “sim” que não pertence a ninguém.
E o filme dramatiza exatamente isso: enquanto Johnny Favorite está afundado na amnésia, não existe o “eu” que assinou o pacto. Existe um corpo, mas não uma pessoa em sentido moral. O Demônio entende essa lacuna: ele não pode cobrar porque não há sujeito consciente capaz de responder pelo ato. Ele precisa esperar que Favorite recupere a memória, reconecte-se consigo mesmo e reconheça, internamente, que foi ele quem fez o acordo.
Somente quando a identidade retorna — quando o sujeito volta a ser autor da própria história — é que a cobrança se torna possível. Em outras palavras: até o Diabo sabe que consentimento sem consciência é só aparência de consentimento.
Não se trata de misericórdia, mas de estrutura. A alma só pode ser tomada de quem sabe que a entregou. Um pacto sem um mínimo de consciência não é um pacto — é violência, e violência não produz o tipo de vínculo moral que dá sentido à própria ideia diabólica de “troca de alma”.
Assim, o filme acaba ensinando algo simples: até o Demônio precisa de consentimento. A execução do pacto só faz sentido porque o sujeito, ao recuperar-se, reconhece que fez uma escolha — mesmo que péssima, mesmo que moralmente grotesca.
E é justamente quando entendemos essa lógica interna — a ética mínima do pacto, a exigência de consciência, a centralidade da vontade — que o contraste com o Projeto de Reforma do Código Civil salta aos olhos. Se até o Demônio espera o sujeito saber o que está fazendo, o PL 4/2025 parece disposto a inaugurar um sistema em que a vontade importa menos, a culpa importa menos e, em alguns pontos, não importa nada.
Nos contratos, a reforma proclama a liberdade, mas cerca cada passo com novas funções sociais, deveres anexos, parâmetros interpretativos e controles que diminuem o espaço efetivo das partes e ampliam, quase sem freios, o poder de revisão externa. O “encontro das vontades”, tão indispensável ao Demônio, vai sendo substituído por um “encontro das salvaguardas”, em que todo contrato nasce sob tutela.
Mas é na responsabilidade civil que a inversão atinge seu auge. O Diabo só pune quem escolheu conscientemente. Já o PL institui uma constelação de hipóteses de responsabilidade objetiva em que não há culpa, não há intenção e, em certos casos, não há sequer dano consumado. Atividade de risco especial, guarda de pessoas, coisas e animais, atuação digital, vínculos indiretos, falhas de terceiros, danos presumidos, deveres preventivos — tudo isso basta para que surja a obrigação de reparar. O elemento moral da culpa desaparece; o vínculo subjetivo é dispensável.
A ironia é inevitável: Coração Satânico ensina que o mal exige autoria. O PL 4/2025, ao contrário, parece sugerir que, se há um dano ou um risco, alguém deve pagar — independentemente de ter feito algo que justifique a atribuição moral dessa responsabilidade.
O resultado é simples e desconcertante: entre o Demônio que aguarda a consciência do devedor e um Código Civil que prescinde dela, o legislador consegue parecer mais temível do que o próprio Louis Cyphre. O pacto diabólico ainda exige vontade. O pacto civil reformado, ao que tudo indica, não.
P.S.: Obrigado por me lembrar do filme, Yun Ki Lee.
*Leonardo Corrêa – sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela University of Pennsylvania, Co-Fundador e Presidente da Lexum e autor do livro A República e o Intérprete — Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores.



