O dever republicano de dizer não

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O episódio em torno da indicação de Jorge Messias ao Supremo e a reação do Senado não expõe apenas uma crise política passageira; expõe um desarranjo no entendimento mais básico sobre como funciona uma República. Os dois editoriais recentes do Estadão são um bom termômetro disso. Lidos isoladamente, podem convencer. Lidos em sequência cronológica, revelam uma incoerência que ajuda a explicar por que o debate institucional no Brasil anda tão pobre.

No primeiro texto, publicado dias atrás, o jornal descreve a indicação de Messias como mais um capítulo da instrumentalização política do STF. Ali, o diagnóstico é duro: o indicado é apresentado como figura de lealdade pessoal a Lula, beneficiário de uma trajetória mais política que jurídica, alguém cuja ascensão ao Supremo se deve menos ao “notável saber” exigido pela Constituição e mais à lógica de recompensa e proteção. Em outras palavras, o Estadão reconhece explicitamente que se trata de uma indicação fraca, de feição personalista, típica de quem enxerga a Corte como extensão do próprio projeto de poder.

Até aqui, tudo em ordem. Se o Supremo é transformado em prêmio para aliados, se a cadeira de ministro se converte em ferramenta de blindagem, a crítica é não apenas legítima, mas necessária. Em um país que se pretende republicano, a escolha de um juiz da Corte Constitucional não pode obedecer ao mesmo critério de ocupação de cargos de confiança no Executivo.

Mas então vem o segundo editorial, o de hoje, e o alvo muda. Agora, o problema não é mais a indicação ruim; é o Senado que “extrapola”, que “chantageia”, que “invade a esfera de prerrogativas do presidente”. O texto tem razão ao denunciar o fisiologismo, a troca de voto por emenda, o uso de sabatina como moeda. Isso é indigno de qualquer instituição que se leve a sério. Só que, no afã de condenar a barganha, o jornal escorrega para uma tese muito mais grave: a de que o Senado deveria ser quase neutro, um carimbador da vontade presidencial, alguém que “apenas sabatina e aprova ou rejeita”, como se isso fosse um gesto quase cerimonial.

É aqui que a cronologia importa. Se a indicação é de fato ruim — como o jornal escreveu no primeiro editorial —, então o que se espera do Senado? Silêncio? Resignação respeitosa? Aplauso discreto? O raciocínio não fecha. O próprio Estadão constrói a premissa de que Messias não se sustenta como escolha republicana e, em seguida, censura o único órgão que, em tese, ainda poderia impedir a consumação desse erro institucional.

A comparação com o caso Harriet Miers, nos Estados Unidos, ilumina o ponto com delicadeza cirúrgica. Em 2005, George W. Bush tentou indicar sua conselheira jurídica, amiga pessoal e figura de confiança, para a Suprema Corte. O currículo era considerado insuficiente, a densidade jurídica questionável, o caráter personalista da escolha evidente. Não houve chantagem orçamentária, não houve varejo de emendas, mas houve algo bem mais incômodo para a Casa Branca: um recado firme do Senado, inclusive de senadores republicanos, de que aquela indicação não passaria. O resultado foi simples e civilizado: Bush recuou, retirou o nome e indicou outro, mais qualificado. A instituição saiu maior do que entrou.

Esse é o ponto: no modelo que inspirou a Constituição brasileira, o papel do Senado é justamente esse. O presidente indica, sim, mas o Senado não existe para assistir à cerimônia. Ele exerce “advice and consent”, conselho e consentimento. E conselho, nesse contexto, inclui a possibilidade de negar consentimento. Dizer “não” ao presidente não é crime de lesa-majestade; é a própria mecânica do sistema. Se o Senado nunca rejeita ninguém, o mecanismo de freios e contrapesos se converte em ficção decorativa.

Aliás, não é a primeira vez que chamo atenção para isso. Em artigo que publiquei em O Globo em 2015, argumentei que o Brasil copiou o modelo americano, mas não copiou sua seriedade. Nos Estados Unidos, o escrutínio é tão intenso que sabatinas duram dias, especialistas são convocados, currículos são vasculhados e até indicações fortes podem ser retiradas antes do voto, caso não resistam ao crivo institucional. Rejeições e desistências não são sinais de crise, mas de saúde institucional. É esse componente — a normalidade do “não” — que o Brasil sempre hesitou em incorporar.

E é justamente esse ponto que torna o erro do Estadão tão evidente. O jornal confunde duas coisas que precisam ser distinguidas com cuidado. Uma é a chantagem, o “libera minha verba que eu libero seu ministro”, o toma-lá-dá-cá rasteiro que prostitui qualquer decisão institucional. Outra, completamente distinta, é o rigor: a decisão de considerar um nome inadequado e rejeitá-lo por isso, ainda que isso contrarie o presidente da República. A primeira merece repúdio. A segunda é a essência do papel do Senado.

Quando o jornal, no editorial de hoje, trata a reação do Senado como “irresponsabilidade institucional” em si, sem fazer a distinção entre a chantagem ilegítima e o veto legítimo, acaba por minimizar o dever de controle da Casa revisora. A mensagem subliminar é perigosa: tudo o que vá além de uma aprovação automática cheira a usurpação. Ora, se esse for o padrão, a sabatina se reduz a teatro e a República, a formalidade vazia.

O que deveria estar em discussão, se quisermos levar a sério o modelo que imitamos dos americanos, é outra coisa: quais são os parâmetros substantivos que justificam um “não”? Notável saber jurídico não é fórmula decorativa; é exigência de densidade. Reputação ilibada não é slogan; é teste de independência. Vínculos pessoais e políticos não são, por si só, impeditivos, mas se tornam gravíssimos quando o conjunto da trajetória revela mais lealdade ao governante do que compromisso com a Constituição. A pergunta não é se o Senado pode ou não “interferir”. A pergunta é: com base em que critérios o Senado deve, quando necessário, recusar uma indicação?

O Brasil vive há décadas sob a cultura de um Senado que, na prática, quase nunca diz “não” ao presidente nessas matérias. A consequência é um Supremo cada vez mais moldado por lealdades, expectativas de reciprocidade e alinhamentos, em vez de por currículo, integridade e independência. Quando finalmente surge um movimento de resistência, ainda que misturado à lama habitual da política de emendas, a crítica dominante não se dirige à indicação frágil, mas à própria ideia de que o Senado possa exercer o controle que lhe é devido. Inverte-se a lógica: o excepcional passa a ser o exercício do dever, e não a omissão.

É claro que ninguém deveria defender um Senado que faz leilão da sua prerrogativa. Mas também não é honesto transformar o dever de controle em ato de rebeldia inconveniente. O problema não é o Senado dizer “não”; o problema é ele só dizer “sim” quando é pago para isso. Se Messias é, como o próprio Estadão escreveu, mais um capítulo de uma Corte tratada como extensão do projeto político de Lula, então não há nada de ilegítimo em que alguns senadores digam que esse é um limite que não pretendem ultrapassar.

O que falta ao debate público — e aos editoriais do jornal, quando lidos em conjunto — é a coragem de sustentar a conclusão que decorre das próprias premissas que ele enuncia. Se a indicação é ruim, alguém tem de deter o gesto presidencial. E, no desenho constitucional brasileiro, esse alguém tem nome e endereço: Senado Federal. Reduzir esse papel a carimbo protocolar é trair, em silêncio, a própria ideia de República que se invoca em público.

Em sistemas saudáveis, a recusa do Senado é lembrada como episódio de maturidade institucional, não como crise. A lição de Harriet Miers foi precisamente essa: presidentes erram, às vezes por convicção, às vezes por conveniência. A função de um Senado digno desse nome é impedir que esse erro se traduza em décadas de distorção na mais alta Corte do país. Se não entendermos isso, continuaremos aplaudir editoriais que denunciam indicações ruins num dia e, alguns dias depois, estranham que alguém tenha ousado dizer o óbvio: não indique.

*Leonardo Corrêa – sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela University of Pennsylvania, Co-Fundador e Presidente da Lexum e autor do livro A República e o Intérprete — Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores.

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