Maquiavel, além do maquiavelismo: o realismo político e a lucidez diante do poder
Maquiavel nasceu em Florença, em 1469, e recebeu uma sólida formação humanista típica do Renascimento. Viveu em uma época de intensas transformações políticas, culturais e sociais, que influenciaram profundamente sua visão sobre o poder e o governo. Com a expulsão dos Médici em 1494 e a instauração da República Florentina, Maquiavel iniciou sua carreira pública, tornando-se posteriormente o segundo chanceler da República. Nesse cargo, tratou de questões internas e externas, participando de várias missões diplomáticas. Entre 1502 e 1503, foi enviado como emissário junto a César Bórgia — figura que o impressionou pela habilidade política e que se tornaria um dos principais exemplos de liderança eficaz em sua obra.
Em 1512, com o retorno dos Médici ao poder e o fim da República, Maquiavel foi acusado de conspiração, preso e torturado. Libertado sem provas, afastou-se da vida pública e retirou-se para sua propriedade em Sant’Andrea in Percussina. Nesse período de isolamento, escreveu suas obras mais importantes, entre elas O Príncipe (1513), dedicado a Lourenço de Médici, o Jovem, na esperança de recuperar um posto político — o que nunca ocorreu.
O Príncipe é um tratado sobre o exercício do poder e a arte de governar e, desde sua publicação, suscitou intensos debates e múltiplas interpretações. Para compreender suas ideias, é indispensável situá-las em seu contexto histórico: a Itália fragmentada do século XVI, dividida em pequenos estados e constantemente ameaçada por potências estrangeiras como França e Espanha. Nesse cenário, Maquiavel demonstra preocupação com a instabilidade política e a falta de unidade italiana, propondo uma reflexão pragmática sobre a necessidade de liderança forte e ação estratégica em tempos de crise.
Considerado o fundador da ciência política moderna, Maquiavel foi o primeiro a analisar o Estado e o governo tal como são e não como deveriam ser. Ao fazer isso, separou a política da moral cristã e da teologia, inaugurando uma reflexão autônoma sobre a ação política. Isso não representa uma rejeição da ética, mas um deslocamento de foco: o que importa não é o julgamento moral das ações e sim sua eficácia na manutenção da ordem e da segurança do Estado.
Maquiavel entende que, em certas circunstâncias, o uso da força e da astúcia pode ser necessário para garantir a estabilidade política. A violência, contudo, deve ser empregada de modo racional e limitado, voltada à preservação da ordem e à sobrevivência do Estado. Essa concepção foi muitas vezes mal compreendida e deu origem ao termo “maquiavélico”, empregado de modo pejorativo para designar pessoas oportunistas, manipuladoras, inescrupulosas e traiçoeiras. Na verdade, O Príncipe não é um manual de cinismo, mas um estudo realista sobre o comportamento humano, o exercício do poder e a necessidade de prudência e eficácia na ação política.
A famosa expressão “os fins justificam os meios”, frequentemente associada a Maquiavel, jamais foi escrita por ele. O que se pode realmente extrair de sua obra é que os meios empregados pelo governante devem ser avaliados segundo as circunstâncias e os objetivos políticos e não segundo princípios morais abstratos. Tampouco se deve interpretar que Maquiavel defende que qualquer ação seja justificável ou que se deva recorrer à violência gratuita ou à injustiça. O governante prudente, para Maquiavel, não ignora a moral, mas compreende que as decisões políticas exigem uma leitura precisa da realidade e dos riscos envolvidos.
Maquiavel analisou a política da Itália fragmentada do século XVI, focando na estabilidade do Estado e na eficácia das ações do governante. As monarquias absolutistas e os regimes totalitários do século XX apropriaram-se superficialmente de algumas de suas ideias, distanciando-se da intenção original de Maquiavel. Ele não defendia o absolutismo, a tirania ou o genocídio; seu objetivo era proteger o Estado e o povo, utilizando meios proporcionais aos fins.
Além de O Príncipe, Maquiavel escreveu Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, em que manifesta clara simpatia pelo regime republicano e pela participação cívica. Essa aparente contradição com O Príncipe não revela uma mudança de opinião, mas sim a capacidade de analisar diferentes formas de governo conforme as condições históricas. Para Maquiavel, o bom governante — seja um príncipe ou um líder republicano — é aquele que compreende as circunstâncias e age com prudência e determinação.
A reflexão sobre o pensamento de Maquiavel mantém-se atual e reflete, de certo modo, o contexto político global contemporâneo. Em um mundo marcado por instabilidade, polarização e disputas de poder entre grandes potências, observa-se uma retomada do “realismo político” inaugurado por Maquiavel. Assim como os príncipes do século XVI precisavam equilibrar virtù e fortuna — ação humana e forças do acaso —, hoje líderes e governos buscam conciliar princípios e pragmatismo diante de crises econômicas, guerras de influência e desafios tecnológicos. O Príncipe, portanto, continua sendo um espelho incômodo do presente: lembra-nos de que a política é, antes de tudo, o campo das decisões difíceis e da responsabilidade diante do real.
Após mais de cinco séculos da escrita do livro, o mundo está significativamente diferente: há muito mais países democráticos, e as lições da obra precisam ser compreendidas em seu devido contexto sob risco de graves distorções — como ocorreu nas ditaduras do século XX —, até porque nem tudo pode (ou deve) ser fielmente replicado na atualidade.
Ainda assim, é possível extrair inúmeras lições desse “realismo político”, no qual os líderes precisam unir virtù — ação, planejamento e discernimento — à fortuna — fatores externos como o mercado, o tempo e as dinâmicas sociais. Precisam ver o mundo como ele é e não como gostariam que fosse, especialmente ao enfrentar o tamanho do Estado e a pesada carga tributária. Devem ser “raposa” (astutos, para evitar serem enganados) e “leão” (fortes, para defender suas causas); saber moldar e gerir sua imagem perante a opinião pública, entendendo o poder das redes sociais para construir ou destruir reputações; agir com foco em resultados e metas, sob pressão e incerteza, adaptando-se às mudanças e equilibrando estratégia, prudência e timing nas decisões.
Nos últimos anos de sua vida, Maquiavel voltou a ter contato com o poder por meio de pequenas comissões políticas, mas não recuperou o prestígio anterior. Em 1527, com a nova expulsão dos Médici e a restauração da República Florentina, foi afastado por sua ligação com a antiga família governante. Morreu pouco depois, em junho de 1527, sem ver realizada a unificação da Itália que tanto desejava.
Sua experiência prática e sua observação da história — sobretudo da Roma antiga — fizeram de Maquiavel um pensador profundamente atento à realidade. Sua teoria política, baseada na ação eficaz e nas contingências humanas, rompeu com o idealismo moral da Idade Média e lançou as bases do pensamento político moderno. Mais de quinhentos anos depois, as lições do “realismo político” de Maquiavel permanecem valiosas para os líderes contemporâneos, e O Príncipe continua a desafiar todos a olhar a política não com ingenuidade, mas com lucidez — virtù essencial em tempos de incerteza.