Freios, contrapesos e assimetria de Poderes
A luta em defesa das liberdades individuais é antiga e sempre exigiu sacrifício, suor, lágrimas e sangue. Costuma-se associar o seu início à Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra, seguido pelo Iluminismo e pela Revolução de 1789 na França e, mais tarde, pela expansão do liberalismo no século 19. Mas a verdade é que se trata de um processo que começou bem mais cedo, que continua geração após geração e cuja vitória só poderemos comemorar quando não houver mais concentração de poder e, consequentemente, ditaduras.
Ainda na Antiguidade, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e o historiador grego Políbio (200 a.C.-118 a.C.) conjecturaram sobre formas mistas de governo que equilibrassem elementos da monarquia, aristocracia e democracia. O primeiro, na obra Política, identificou as três funções básicas no governo da pólis (a deliberativa, a executiva e a judiciária); e o segundo, no livro História, argumentou que a estabilidade política da República Romana era decorrente da sua constituição mista, que proporcionava o equilíbrio entre cônsules (poder executivo), Senado (poder aristocrático) e assembleias populares (poder democrático).
Muito tempo depois, John Locke (1632-1704), no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, ao frisar que o governo existe por consentimento dos governados e deve ser limitado por leis e pela divisão de funções, defendeu a separação entre o Poder Legislativo e o Executivo como forma de impedir abusos. Mas a importância da divisão dos Poderes só foi consolidada no Iluminismo, especialmente por Montesquieu (1689-1755), em O Espírito das Leis, ao identificar as três funções essenciais do Estado: legislar (descobrir leis), administrar (executar as leis e gerir a coisa pública) e julgar (aplicar as leis a casos objetivos); ao argumentar em seguida que, para evitar a concentração de poder e, portanto, a tirania, cada uma dessas funções deveria ser atribuída a um Poder distinto, a saber, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário; e, por fim, ao ter a perspicácia de perceber que tal divisão não deveria implicar um isolamento absoluto e, portanto, que deveria haver interdependência e controle mútuo entre os Poderes, os famosos “freios e contrapesos” (checks and balances), em uma relação dinâmica, em que cada um, além de exercer as suas funções específicas, deveria ter atribuições para fiscalizar e limitar os demais, uma vez que “todo homem que tem poder é tentado a abusar dele” e que, para evitar isso, é necessário que “o poder freie o poder”.
Poucas décadas depois, os Federalist Papers (1787-1788), especialmente os escritos por James Madison (1751-1836), notadamente o nº 51, consolidaram e operacionalizaram a ideia. Madison insistia que, dado que os homens não são anjos, o governo precisa de mecanismos internos que permitam a cada poder dispor de meios para conter os excessos dos outros. A Constituição dos Estados Unidos (1787) incorporou o sistema de freios e contrapesos de modo exemplar, influenciando constituições no mundo inteiro, inclusive a brasileira de 1824, que incluía, em seu Artigo 98, o Poder Moderador, exercido pelo imperador, como árbitro supremo.
Esse longo processo tornou senso comum a percepção de que o princípio da separação dos Poderes, em que cada um atua como freio e contrapeso em relação aos demais, é requisito indispensável para o florescimento e a preservação das sociedades de cidadãos livres, ao evitar — ou, na pior das hipóteses, ao dificultar — a concentração de poder que caracteriza as sociedades totalitárias.
Como estão os freios e contrapesos no Brasil
Tudo isso vem a propósito do sentimento disseminado de que há falhas bastante perceptíveis no equilíbrio entre os Poderes no Brasil de hoje, especialmente quanto à atuação do Judiciário, que, ao se imiscuir em terrenos e competências que cabem legalmente ao Executivo e ao Legislativo, estaria extrapolando suas funções estabelecidas na Constituição.
O fenômeno, que alguns autores denominam judicialização da política, vem adquirindo contornos intensos indesejáveis, aproximando-se, para muitos analistas, daquilo que chamam de “governo de juízes sem votos”. Segundo essas críticas, ao transformar demandas políticas em litígios judiciais, o STF está deixando de se ater ao seu papel constitucional de interpretar a Constituição para criar normas, redefinir políticas públicas e, algumas vezes, interferir diretamente na condução administrativa do Estado. A justificativa para tal postura costuma ser uma suposta “omissão legislativa” ou uma alegada necessidade de “defesa do Estado Democrático de Direito”. Todavia, na prática, esse movimento representa uma usurpação das funções executiva e normativa, que deveriam ser desempenhadas, respectivamente, pelo governo e pelo Parlamento, espaços que expressam a soberania popular, dado que o presidente do país, senadores e deputados são escolhidos pelo povo, mas os juízes, não.
Quão esdrúxulo seria se, no escritório de uma grande empresa, sempre que acontecesse algum contratempo, como falta de clipes, os funcionários, ao invés de recorrerem ao responsável pelo almoxarifado ou a seu chefe imediato, reclamassem diretamente com o CEO da empresa? Ele não passaria a decidir sobre praticamente tudo, para isso tendo que abandonar, pelo menos parcialmente, as funções para as quais é pago? E não parece evidente que essa simples parábola nos remete à situação em que o Judiciário é acionado para “solucionar” muitos problemas que, a rigor, estão fora de sua alçada?
Exemplos de ingerência no Legislativo e no Executivo
É fato que nos últimos anos o STF vem decidindo sobre temas de forte sensibilidade política que, em qualquer democracia consolidada, deveriam ser objeto de ampla discussão e deliberação parlamentar. É o caso, por exemplo, da descriminalização parcial do porte de drogas para uso pessoal, da equiparação de união homoafetiva ao casamento civil, da imposição de tributos e da instituição da prisão após condenação em segunda instância. Outros exemplos foram a determinação do chamado “orçamento impositivo” em certas circunstâncias, bem como a limitação do uso das emendas de relator — decisões que representam, ainda que possivelmente justificadas pelo argumento de combate a abusos, intervenções diretas na autonomia orçamentária do Congresso, uma prerrogativa constitucionalmente assegurada.
Não vamos discutir aqui o mérito dessas pautas, mas apenas frisar que não se pode ignorar que são matérias de natureza legislativa, em que o Judiciário substituiu o debate democrático por suas próprias decisões, algumas tomadas monocraticamente.
No âmbito do Executivo, a interferência judicial também se tornou recorrente. Nomeações ministeriais e para outros cargos públicos de competência do presidente da República já foram suspensas por liminares de ministros do STF, sob o pálio duvidoso de supostos “desvios de finalidade”, dificilmente aferíveis sem violar a autoridade do chefe do Executivo. Além disso, decisões de governo em áreas como saúde pública e segurança durante a pandemia foram revistas ou paralisadas pelo Judiciário, que assumiu algumas vezes a função indevida de gestor. Até mesmo a política externa, tradicionalmente uma competência do Executivo, foi alvo de decisões judiciais, como no caso da determinação para que o Brasil permanecesse em acordos internacionais específicos, como o de Paris, sobre o clima, e a Convenção 169 da OIT, sobre povos indígenas e tribais, ambos no ano de 2022.
Essas situações, que se vêm tornando frequentes, contrastam com as de democracias consolidadas, como a dos Estados Unidos, onde a Suprema Corte atua de maneira mais restrita, só costumando intervir em casos de manifestas inconstitucionalidades, mesmo em temas normalmente polêmicos como aborto, direitos civis e porte de armas. Também na Europa Continental, os Tribunais Constitucionais — como o alemão ou o italiano — se limitam a exercer papel de guarda da Constituição, reconhecendo explicitamente a supremacia do Legislativo em matérias de deliberação política. Na Alemanha, o Tribunal adota o princípio da reserva do legislador, segundo o qual certas matérias só podem ser definidas pelo Parlamento, mesmo que haja omissão ou demora legislativa. É uma autocontenção institucional efetiva que impede a transformação do Judiciário em poder hegemônico.
No Brasil, porém, a ausência dessa autocontenção tem levado a uma hipertrofia em que a nossa Corte atua como legislador positivo ao impor normas e como administrador ao determinar políticas públicas. Ao invés de freios e contrapesos, temos uma assimetria de Poderes, com o Judiciário protagonista, o Executivo engessado e o Legislativo submisso. Tal cenário contrasta com o de democracias maduras e compromete a previsibilidade do Direito, essencial para a estabilidade institucional e econômica. Estamos falando de insegurança jurídica e não há como fazer vistas grossas para o fato de que ela existe e é abundante atualmente no país.
Consequências para a democracia
Ora, a democracia só pode sobreviver quando os Poderes intermediários e representativos preservam sua autoridade frente a instâncias não eleitas. Quando decisões políticas fundamentais passam a ser tomadas por corpos técnicos — ou judiciais —, a democracia se esvazia, pois o povo, embora mantenha o direito ao voto, perde o poder de influir nas grandes diretrizes da nação. A concentração do poder em instituições não eleitas mina o Estado de Direito, substituindo a previsibilidade das normas pela arbitrariedade das decisões casuísticas.
A necessidade de reformas institucionais
Diante desse cenário, torna-se imperativo discutir reformas que restabeleçam o equilíbrio entre os Poderes e reforcem os princípios da democracia representativa. O modelo atual não proporciona o equilíbrio que os constituintes de 1988 tinham em vista e facilita uma assimetria e um círculo vicioso em que todos os caminhos levam ao Supremo, ou seja, em que os outros Poderes são subjugados por ele. Isso faz com que muitos endossem a percepção de que o Brasil está sob uma “ditadura judicial”. Tal entendimento, para ser revertido, requer reformas institucionais, não para enfraquecer o STF, mas, pelo contrário, para fortalecê-lo, ao eliminar sua hipertrofia e aparar seu protagonismo descabido, resguardando-o como uma Corte constitucional e minimizando o desgaste institucional causado pelas críticas, muitas delas, aliás, legítimas.
Entre as propostas que têm sido sugeridas destacam-se: a limitação das decisões monocráticas; mandatos para ministros do STF; mais objetividade na reserva de legislador para reforçar o papel da soberania popular; fim do foro por prerrogativa de função (privilegiado); restabelecimento do princípio que veda ao STF atuar como legislador positivo, ou seja, criar leis, restringindo-o ao papel de zelar pela constitucionalidade; revisão do sistema de freios e contrapesos; e fortalecimento do diálogo institucional entre os três Poderes. Nenhuma democracia pode prescindir de um Judiciário independente e forte. Mas independência não é sinônimo de supremacia. A superação da crise institucional passa pelo desarmamento dos espíritos, o reequilíbrio entre os Poderes e o reconhecimento de que a Constituição não autorizou — nem poderia autorizar — a formação de um Poder hegemônico acima dos demais. Só assim se resgata o princípio clássico de Montesquieu: “Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo, exercesse os três poderes”.
Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.