Do cacau à logística: como a agência humana enfrenta problemas globais

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Há algo profundamente belo na capacidade humana de agir. A mobilização de pessoas comuns diante de problemas concretos frequentemente atravessa o debate público, seja em momentos de crise, seja no cotidiano silencioso do trabalho bem feito, da iniciativa empreendedora ou da recusa em aceitar que nada pode ser feito. Pessoas criam soluções, ajudam desconhecidos e constroem pontes improváveis entre necessidade e resposta.

Essa disposição não nasce de leis ou campanhas, é fruto do reconhecimento íntimo de que a ação individual tem valor e pode produzir efeitos reais no mundo. É essa potência que sustenta comunidades, confere dignidade ao trabalho e permite que sociedades avancem mesmo diante de limitações evidentes. Movimentos muitas vezes tratados como exceções heroicas expressam, na verdade, um senso de responsabilidade profundamente enraizado na experiência humana.

Ainda assim, algo parece estar se deslocando na forma como interpretamos essa capacidade. Cresce a sensação de que problemas relevantes são grandes demais para a ação individual. Trabalho infantil em cadeias globais de produção, regiões desconectadas por falta de infraestrutura, populações sem acesso a serviços básicos ou desafios ambientais que ultrapassam fronteiras passam a ser percebidos como assuntos distantes, pertencentes a instâncias abstratas e decisões tomadas “de cima”.

Aos poucos, a responsabilidade é terceirizada e a participação individual se esvazia. A forma como uma sociedade distribui responsabilidade molda o tipo de indivíduo que ela produz e, por consequência, os problemas que consegue enfrentar. Quando a agência humana é reconhecida, o trabalho ganha significado, e soluções emergem de maneira descentralizada. Quando essa agência se enfraquece, perde-se eficiência e algo mais essencial: a percepção de que somos participantes ativos na construção do mundo que habitamos.

A crença na própria capacidade de agir produz efeitos diretos e profundos na vida concreta de cada indivíduo. Pessoas que se percebem como agentes de sua própria história tendem a enxergar o mundo como um espaço de possibilidades, ainda que imperfeito, atribuindo significado às próprias escolhas e reconhecendo responsabilidade pelos caminhos que percorrem e pelos resultados que produzem.

Essa percepção, conhecida na literatura como lócus de controle interno, está intimamente ligada à noção de agência humana e à forma como cada pessoa se relaciona com o trabalho, com os outros e consigo mesma. Quando decisões pessoais são percebidas como relevantes, o trabalho passa a funcionar como forma de expressão, meio pelo qual algo de si é colocado no mundo; problemas reais são enfrentados e a própria utilidade é reconhecida. Esse vínculo tende a gerar senso de dignidade, satisfação e realização, mesmo diante de limitações concretas e imperfeições inevitáveis.

Em contextos nos quais predomina a percepção de que forças externas determinam a maior parte dos desfechos relevantes, a postura diante da vida tende a se alterar. O esforço cotidiano perde densidade simbólica, a iniciativa se enfraquece e a responsabilidade passa a ser vista como um peso. Essa transformação não apenas afeta o funcionamento econômico da sociedade, como também atinge diretamente a experiência subjetiva de autonomia, pertencimento e propósito. Por isso, debates sobre agência ultrapassam o campo das políticas públicas e dos arranjos institucionais e se inscrevem em uma dimensão cultural mais profunda. A forma como uma sociedade distribui responsabilidade organiza seus sistemas e, ao mesmo tempo, comunica expectativas sobre o papel de cada pessoa dentro deles.

A ideia de que indivíduos são capazes de agir, escolher, trabalhar e cooperar antecede qualquer desenho institucional. Pessoas que se reconhecem como agentes buscam melhorar suas próprias condições de vida e, nesse movimento, produzem efeitos que se estendem para além de si mesmas. Essa constatação conduz a uma pergunta inevitável: que tipo de indivíduo estamos formando? Sociedades que enfraquecem a crença na agência pessoal reduzem sua capacidade de enfrentar problemas complexos e empobrecem a experiência humana em sua dimensão mais íntima. Recuperar a centralidade da agência significa sustentar uma visão de vida na qual trabalho, responsabilidade e sentido permanecem profundamente conectados, inclusive quando os desafios parecem ultrapassar a escala do indivíduo.

Um desafio global complexo que ilustra bem essa reflexão é o trabalho infantil e a exploração persistente na cadeia de produção do cacau. Trata-se de um problema transnacional, que envolve milhões de pequenos produtores, grandes conglomerados multinacionais e países inteiros cujas economias dependem dessa cultura agrícola. A cadeia do cacau é longa, fragmentada e marcada por profundas assimetrias de poder, nas quais o produtor rural, muitas vezes vivendo em condições de extrema pobreza, ocupa a posição mais vulnerável de um sistema que inclui traders internacionais, processadores, indústrias alimentícias e grandes marcas de consumo.

Estimativas amplamente utilizadas por organismos internacionais, baseadas em estudos conduzidos pela International Cocoa Initiative em parceria com a Universidade de Chicago e endossadas pela Organização Internacional do Trabalho, indicam que cerca de 1,5 milhão de crianças ainda estão envolvidas em trabalho infantil na produção de cacau em Gana e na Costa do Marfim, países responsáveis por mais de 60% da produção mundial. Muitas dessas crianças exercem atividades perigosas e permanecem fora da escola. Ao longo das últimas décadas, o tema foi alvo de iniciativas institucionais relevantes, como o Protocolo Harkin-Engel, assinado em 2001, além de compromissos públicos e programas de certificação anunciados por grandes empresas. Ainda assim, estudos recentes indicam avanços limitados e insuficientes para alterar de forma estrutural esse cenário.

Foi nesse contexto que um grupo de jornalistas holandeses, que já atuava investigando as condições da cadeia do cacau, desenvolveu uma inquietação prática ao perceber a distância persistente entre diagnóstico e transformação concreta. A criação da Tony’s Chocolonely surge como desdobramento desse percurso. A empresa foi concebida para atuar diretamente sobre os incentivos econômicos da cadeia produtiva, estabelecendo relações diretas com cooperativas, pagando preços mais altos com base no conceito de renda digna, investindo em rastreabilidade e firmando contratos de longo prazo com produtores.

Ao longo do tempo, esse modelo se mostrou operacionalmente viável. A Tony’s cresceu no mercado europeu, manteve preços finais comparáveis aos das grandes marcas e firmou parcerias com empresas globais, como a Ben & Jerry’s, que adotaram seus princípios de fornecimento responsável. Seus mecanismos de monitoramento permitiram identificar e remediar casos de trabalho infantil nas cooperativas parceiras, enquanto o pagamento de preços mais altos contribuiu para reduzir a vulnerabilidade econômica das famílias envolvidas. Esses resultados não resolvem o problema em escala global, mas evidenciam a possibilidade de reorganizar conscientemente a cadeia produtiva.

A trajetória da Tony’s ilustra como a crença na própria capacidade de agir pode se traduzir em respostas concretas a problemas complexos. Diante de um desafio amplamente percebido como distante e estrutural, indivíduos mobilizaram conhecimento, trabalho e organização para atuar diretamente sobre a realidade. A agência humana manifesta-se, nesse caso, como ação contínua e orientada por incentivos claros, capaz de reorganizar sistemas e gerar impacto real, lógica que também se aplica a desafios práticos do cotidiano nos quais coordenação e escala costumam ser tratadas como exclusividade de soluções centralizadas.

Outro exemplo frequentemente tratado como grande demais para a ação descentralizada é a logística em países de dimensões continentais, como o Brasil. Garantir a circulação eficiente de bens em um território vasto, com infraestrutura desigual e regiões de difícil acesso, costuma ser percebido como uma tarefa que exige coordenação centralizada e atuação estatal permanente. No debate público, é recorrente a ideia de que apenas uma empresa estatal seria capaz de assegurar entregas regulares em localidades remotas, onde a operação pareceria economicamente inviável para a iniciativa privada.

Essa percepção encontra respaldo em características reais do país. O Brasil tem mais de 5,5 mil municípios, muitos deles com baixa densidade populacional e longas distâncias até os grandes centros. Segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT), o custo logístico representa cerca de 12% do PIB, percentual elevado em comparação ao de economias mais integradas. Observadas isoladamente, muitas rotas parecem pouco atraentes do ponto de vista econômico. No entanto, quando operações são pensadas em escala, os incentivos se reorganizam. Empresas que dependem de logística nacional eficiente exigem cobertura ampla, previsibilidade e padrões homogêneos de serviço, inviabilizando soluções fragmentadas.

Nesse contexto, empresas privadas de logística passaram a desenvolver estruturas capazes de atender também regiões consideradas “não rentáveis” à primeira vista. A expansão do comércio eletrônico no Brasil, que movimentou mais de R$185 bilhões em 2023, segundo a ABComm, intensificou essa dinâmica ao elevar a demanda por redes de entrega nacionais e desempenho consistente. Empresas como Mercado Livre e Amazon passaram a impor padrões elevados de capilaridade e qualidade operacional, induzindo seus parceiros logísticos a operarem em escala e de forma integrada.

Dados da Associação Brasileira de Operadores Logísticos (Abol) indicam crescimento contínuo do setor nos últimos anos, impulsionado pela profissionalização das operações e pelo aumento de investimentos em tecnologia, automação e gestão de frota. Operadores como Loggi, Jadlog e Diálogo Logística ampliaram suas malhas e ajustaram rotas, incorporando a compensação de custos entre centros urbanos e regiões periféricas como parte natural da operação.

A experiência do setor logístico brasileiro evidencia como desafios complexos podem ser enfrentados a partir da ação organizada de indivíduos e empresas que assumem responsabilidade sobre aquilo que constroem. O trabalho cotidiano de quem planeja rotas, gerencia custos, investe em tecnologia e coordena pessoas transforma limitações estruturais em problemas operáveis. Nesse processo, a capacidade humana de agir, organizar e aprimorar sistemas se afirma como elemento central para a adaptação social e para a sustentação de soluções que se mantêm ao longo do tempo.

Ambientes econômicos mais estruturados ampliam o alcance da ação humana ao criar condições para que pessoas, em contextos diversos, possam tentar, criar e produzir com alguma previsibilidade. À medida que cadeias produtivas se tornam mais eficientes e a circulação de bens, serviços e informações se intensifica, o acesso a recursos deixa de ser privilégio de poucos centros e passa a alcançar territórios antes marginalizados, permitindo que ideias ganhem forma, iniciativas encontrem mercado e o esforço individual encontre retorno. Esse retorno se expressa na formação de uma rede crescente de pessoas dispostas a empregar seu trabalho na resolução de problemas que consideram relevantes. Nesse processo, o trabalho assume um papel organizador da vida social, conectando responsabilidades individuais a estruturas que passam a funcionar melhor para todos que operam dentro delas.

A disposição de assumir riscos, organizar recursos e enfrentar limitações concretas transforma desafios complexos em problemas administráveis, permitindo que novas possibilidades emerjam de maneira contínua. A forma como a responsabilidade é distribuída molda o tipo de indivíduo que se forma e influencia diretamente a qualidade das soluções que se tornam possíveis. Valorizar a agência humana significa reconhecer o trabalho como expressão de potência, dignidade e pertencimento, sustentando uma dinâmica na qual pessoas ajudam pessoas por meio daquilo que constroem e realizam ao longo do tempo.

*Amanda Cornélio é associada do Instituto de Estudos Empresariais (IEE).

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