Beleza: a “salvadora” do Homem
Platão, no Fedro, resume com maestria o que todas as pessoas passam ao pensar e contemplar a beleza. Assim disse o filósofo: “A visão é a mais aguda das sensações que nos chegam através do corpo, mas não consegue ver o pensamento (…) A beleza é a [imagem] mais evidente e a mais digna de ser amada. Contudo, quem não é neo-iniciado ou se deixou corromper, não consegue passar rapidamente daqui para além, para junto da beleza em si, ao contemplar na terra quem possui o seu nome (…) O recém-iniciado, pelo contrário, o que contemplou largamente as realidades de outrora, quando vê uma face divina ou alguma forma do corpo, que imita bem a beleza, sente primeiro um estremecimento e invadem-no alguns dos temores do passado; em seguida, fixando o olhar, venera-a como a um deus” (Platão, Fedro, 250e, 251a); Platão foi além da investigação superficial e opinativa (a conhecida doxa); ele seguiu um caminho para um fim, uma investigação pelo “descobrimento”, pelo amor à sabedoria. Para o filósofo, portanto, havia um fim, uma Verdade, um absoluto que poderia ser alcançado, um inteligível dentro do cosmo que rodeia e penetra no homem.
Em similaridade com a época em que Platão viveu, nossa era abunda em uma “classe” de pensadores muito famosos, poderosos e influentes em seus meios: os sofistas. Sujeitos sofistas não seriam um problema em si se não acabassem guinando, por consequência de sua forma e propósito, para a erística. Protágoras e Górgias não faziam parte da erística, mas seus métodos, com o tempo, descambaram em uma retórica tão pérfida que só depois de duas gerações de filósofos (a dos socráticos e dos platônicos), com Aristóteles, a retórica em geral é separada da erística sofista e é aceita pela filosofia.
Crítias – parente de Platão –, por exemplo, não teve nenhum problema em usar a perversidade relativista na política. Foi um tirano em Atenas, mas não foi apenas sua cobiça que sustentou sua chegada ao poder: não podemos esquecer-nos da mentalidade que justificou e o inflou no mundo político da Pólis. Crítias se aproveitou do relativismo sofístico para apelar para suas conveniências. Se tudo é relativo, é natural que o conveniente tome o centro das ações.
Outros sofistas antigos como Trasímaco da Calcedônia e Cálicles chegaram a afirmar que a maior das justiças consistia em dar vantagem para o mais forte em detrimento do mais fraco; a justiça seria dos poderosos, daqueles que detém a força; já a injustiça estaria nas mãos do fraco. Cálicles chegou a afirmar: “Parece-me que a própria natureza mostra ser justo que o melhor (mais forte) tenha mais do que o pior (mais fraco) e que o mais poderoso tenha mais do que o menos poderoso” (Platão, Górgias, 483 c-d).
Todos esses absurdos encontrados no passado grego advêm de um homem: Protágoras. Para ele, o homem era a medida de todas as coisas. Tudo valia em dependência do homem, de seus desejos, vontades, crenças, necessidades, estados… Protágoras assim fez para estabelecer um critério inteligível para o cosmo, além de todas as querelas existentes na filosofia naturalista; no entanto, o que o sofista fez foi criar um berçário para os eristas. A obra de Protágoras, até onde se sabe, não tem o propósito de destruir todos os critérios, todos os parâmetros; contudo, a consequência lógica de seu trabalho foi exatamente derrubar a si próprio, como um suicida. Se o homem é a medida do cosmo, de tudo, então não há medidas (o próprio conceito de medida não faria sentido), pois tudo dependeria da conveniência humana, que é pautada, nascida e justificável em si mesma, como a vontade de um nume, um deus.
Uma olhada rápida é capaz de traçar um belo paralelo com o mundo atual. Como disse, nossa era tem similaridades com a de Platão (com a triste certeza de que não temos um Platão!), e os sofistas estão entre nós. São muito respeitados, de fato, nas cátedras universitárias, com seus sorrisos amarelos, falando para uma turma: “não existe verdade absoluta. Quem disse que há verdades? Não podemos ter certeza de nada”. Claro que tais entidades acadêmicas ficam consternadas quando um aluno – imbuído da mais alta e saudável ironia venenosa – indaga “professor, o senhor tem certeza disso?”; o docente, claro, sempre desconversará (e isso já é uma herança de Górgias).
Mas por que falar de tudo isso para tratar da Beleza?
Primeiramente, porque o belo só pode existir se, concretamente, houver uma Verdade, algo invariável e fixo para se situar. Sem tal concretude, a beleza não terá medidas fixas, ou seja, será aquilo que o professor universitário afirma que é: algo relativo; como já demonstrei, se há uma relatividade absoluta, há uma falta de critérios absoluta, pois não existirá nada em que se possa fixar racionalmente. Tudo seria absolutamente perene, mas as próprias noções de perenidade, relatividade, etc., dependem de critérios imóveis para serem inteligíveis.
Caso não se proceda assim, a beleza não será possível. Não existiria um padrão racional para determinar o que é o belo, o feio, pois tudo seria diluído em um oceano de subjetividades ocas e injustificáveis (uma vez que não existem medidas concretas além do subjetivo) dentro de si mesmas. Um caos.
Dentro da própria erística, nenhum desses professores catedráticos poderia fazer algo perto do que Platão fez, pois no trecho citado do Fedro, o filósofo fala da interação do homem para com a Beleza. A contemplação, o idolatrar do humano para com o belo não faria sentido dentro de um mundo relativista, não-fixo. Nada existiria além de um ego devorador de conveniências, necessitado imperiosa e incansavelmente de algo oportuno para ele, visando somente o seu eu. A beleza não passaria do ego dos homens, pois estes não seriam capazes de contempla-la tal como uma divindade, pois eles mesmos seriam deuses.
É esse relativismo erista que cobre a alma e destrói a capacidade enobrecedora das pessoas. De repente seu professor te afirma que você é a medida de todas as coisas bonitas, a régua, o compasso, o pincel… Tudo mais. Não existem realidades fora de você, porque você é a realidade-mor para as determinações da beleza.
As consequências de insolência para com tudo a sua volta são brutais. Uma vez que o belo é algo essencial na vida das pessoas – uma vez que é nele em que nos inspiramos, idealizamos, baseamos em nossos trabalhos, vida pessoal, etc. –, sendo um referencial, algo para alcançarmos, a destruição pela dissolução da objetividade da Beleza também impossibilita tal trajeto.
Não haverá nada para além de seu próprio ser. Nada para se guiar, aprender, contemplar e crescer. A estética e o norteamento que ela pode ter – em maior ou menor grau – em nossas vidas se torna serva dos mais infantis caprichos de qualquer um de nós. Daí que a destruição de catedrais medievais na França atual não surta tanto efeito em muitos dos admiradores das artes: tanto faz, no fim.
Se uma obra de arte é incendiada, isso não tem a menor importância; caso algum fanático muçulmano exploda as mais graciosas estátuas hindus, essencialmente, só será um dano ao patrimônio de outrem. A humanidade não pode perder nada com isso, mesmo que tais imagens tenham milênios de idade e transpareçam toda uma importância sacra e estética de uma cultura.
Para o indivíduo, o problema é ainda pior. Não é bonito saber se uma criança está viva ou não, se alguém prefere salvar um cachorro a uma mulher, se um marido bate na esposa ou se um homem rouba outro. Tanto faz como tanto fez. Um soco em um homossexual, dado por ódio à sua sexualidade, é tão belo quanto os discursos feitos em conferências LGBT. Em termos de beleza… Tudo depende da conveniência, logo, não há nenhum imperativo, nada transcendental, que faça alguém apreciar algo belo, fazer algo belo. No fim, todos se igualam a Crítias, o Tirano de Atenas.