Aborto: o último ato indecoroso de um prosélito

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Tudo tem fim. Em espetáculos teatrais, os últimos instantes das peças costumam ser os mais duradouros em nossa memória, talvez por nos parecerem a chave para a compreensão da trama, seja mediante o deslinde dos conflitos em jogo, seja com o advento de finais inconclusivos e indicativos da impossibilidade de resolução dos embates. Na farsa reinante em nossa suprema corte, o ministro Luís Roberto Barroso abandonou sua própria opereta bufa com a mais desafinada de todas as suas “árias” travestidas de decisões e invariavelmente permeadas pela egolatria, pelo abuso de poder e pelo desrespeito às normas jurídicas.

Antes de sair de cena, Barroso conseguiu, junto ao colega Fachin, a designação de uma sessão extraordinária e em plenário virtual para a manifestação de seu voto na ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) na qual o PSOL pleiteava a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Contrariando o próprio regimento interno da corte, que reserva esse tipo de sessão aos casos de excepcional urgência, Barroso conferiu às suas inquietações pessoais ideológicas um cunho de excepcionalidade nacional e se despediu dos holofotes judiciários com a banalização do pilar de qualquer sociedade civilizada: a expectativa de vir a ser alguém.

Nos autos da ADPF tão “premente” aos olhos do ex-togado, a sigla esquerdista pedia isenção de pena a mulheres que aniquilassem ou promovessem, por outrem, a aniquilação de fetos gerados nas últimas doze semanas sob o argumento de que a preservação da existência fetal seria atentatória à dignidade da gestante. Os tipos penais em vigor são muito precisos ao definirem como crimes as condutas de provocar aborto em si mesma e as de provocar aborto com e/ou sem o consentimento da mulher (artigos 124 a 126 do Código Penal). Como a legislação não prevê qualquer marco temporal que afaste a punição aos autores dessas práticas, juízes não podem, a seu bel prazer, inserir na norma circunstâncias não-previstas em seu texto. Se o fazem, como foi o caso dos agora aposentados Rosa Weber e Barroso, atuam como legisladores, violando a cláusula pétrea da separação dos poderes e humilhando o parlamento.

Aliás, se nossa cúpula judiciária fosse comprometida com a apreciação de controvérsias constitucionais relevantes e com a desconsideração de aventuras jurídicas, a tal “ADPF do aborto” já teria sido arquivada, por manifestamente descabida. Afinal, se essa categoria de ações se destina tão somente ao exame de violações a preceitos fundamentais, e se o artigo 5º da nossa Constituição aponta o direito à vida como sendo a primeira das nossas garantias, é no mínimo cínico que uma sigla partidária pretenda judicializar a prerrogativa à própria existência. Canalhice ainda maior consiste em invocar uma pretensa defesa da dignidade para privar de dignidade seres de até doze semanas de vida intrauterina, mas que, sob a ótica psolista, são desumanizados a ponto de poderem ser retirados do corpo feminino como uma unha encravada, um dente apodrecido ou outros “inconvenientes”.

Contudo, partes litigantes de má fé encontram reverberação de seus discursos nas canetas de togados de natureza análoga. Foi assim que Barroso reafirmou, sem pudor, sua postura “conhecida” sobre a matéria para assumir as vestes de governante e avocar para si a atribuição de formular políticas públicas sobre saúde. Sem um argumento jurídico sequer, a retórica barroseana foi preenchida com formulações abstratas sobre o papel do estado na educação sexual, sobre a forma de tratamento mais adequado à conduta por ele eufemisticamente designada como “interrupção” da gestação, sobre pretensas pesquisas da OMS acerca do tema e sobre potenciais reflexos da criminalização da prática nas diversas camadas sociais. Um vazio absoluto na abordagem de matéria constitucional e uma abundância de argumentos metajurídicos próprios aos debates de políticos no exercício de mandatos eletivos, mas inadmissíveis em uma judicatura que deveria ser pautada pela técnica e pelo respeito às normas vigentes no país.

Como se não bastasse tanto desperdício de tempo e de dinheiro público com o mero louvor às ideias de sua predileção, o ex-togado fechou seu discurso politiqueiro com um clichê feminista que, de tão vulgar, talvez soasse imaturo até aos ouvidos mais prosélitos de diretores de centros acadêmicos. Segundo Barroso, nós, mulheres, por sermos livres para nossas “escolhas existenciais”, disporíamos de um direito fundamental a uma liberdade reprodutiva, direito esse insuscetível de cerceamento pela “vontade das maiorias políticas”. Só se esqueceu de mencionar que, em sociedades ordeiras, os direitos inatos cujo exercício independe da chancela do estado-legislador são condicionados, porém, ao dever genérico de não causar mal a outrem sob pena de responsabilização – e a designação do “outrem” afetado pela conduta injusta não pode ser restrita a humanos com vida autônoma, sob pena de se negar ao feto o próprio pertencimento à nossa espécie e de se colocar por terra a legítima expectativa de direito do nascituro, amparada pelo artigo 2 do Código Civil.

Por fim, mas não menos importante, Barroso nos impôs sua crença de que, “se os homens engravidassem, aborto já não seria tratado como crime há muito tempo”. Frase especulativa e insuscetível de comprovação, pois, para desespero de identitários desse naipe, homens não engravidam!

Por ironia do destino, Barroso chegou aos holofotes como defensor de um terrorista estrangeiro que, a despeito da crueza de seus homicídios, foi descrito pelo então advogado como uma “pessoa não-perigosa”. Anteontem, fechou as cortinas do seu palco judiciário com uma decisão que dá margem a uma futura descriminalização, por togados, do aborto até 12 semanas de gestação e, uma vez aberto o precedente nefasto, ao feticídio em qualquer fase do desenvolvimento. Tantos anos depois, Barroso escancarou a mesma relativização de vidas inocentes, sejam elas ceifadas pela sanha de estranhos ou pela torpeza ainda maior da própria mãe. Na engenharia social coletivista, apartada de uma ordem constitucional democrática, são os poderosos de plantão os responsáveis pela definição daqueles que “merecem” viver e daqueles cujos tecidos humanos podem ser atirados em lixeiras.

*Este artigo foi originalmente publicado no site do jornalista Cláudio Dantas.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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