A violência e o governo
Se analisarmos a História, veremos que governos, desde suas origens, demandam violência. Uma das maiores “sacadas” de Max Weber foi notar que o verdadeiro poder de um governo qualquer é a posse da legitimidade do uso da força. Quando vemos, hoje, senhores de idade, trabalhadores, jovens ou qualquer pessoa que se vê insatisfeita com o cenário atual, não é raro observarmos um clamor pela violência, e uma que se acha, ao menos dentro de certas mentes, válida.
“Tem é que matar esses políticos todos” e “o exército precisa entrar na favela e fuzilar todos os traficantes” não são frases incomuns, assim como “bandido bom é bandido morto”; são gritos que clamam por violência, mas uma violência que busca ordem.
A ordem que a população busca só pode ser conseguida pela violência, não importando contra quem essa força se voltará. Todo cenário caótico obriga uma considerável parte da população a ter pensamentos violentos para solucionar seus problemas. Mas esse ímpeto agressivo é quase que uma regra na humanidade. Pense em qualquer país atual e verá que sua existência se deve a algum tipo de violência. A Itália só existe porque uma unificação forçada ocorreu, no século retrasado, e o mesmo vale para a Alemanha. A França só existe porque o rei Clóvis avassalou forçosamente outros povos bárbaros que invadiram a Gália; a Escócia só existe porque os escotos invadiram os pictos; os povos indianos só existem por causa das invasões indo-europeias feitas há milênios, o Brasil só existe porque conseguiu levantar armas contra Portugal, e por aí vai…
Mas a violência, que protege, cria e mantém os governos, também serve para fazer a justiça. Ao clamar pela execução em massa de traficantes, o povo brasileiro tenta clamar pela justiça, pelo fim de uma violência maior que o tráfico impõe. Na História do Direito, a coisa também não muda muito, ao menos no início. O Código de Hamurabi é basicamente um conjunto de punições, por exemplo.
A mudança ocorre quando o Homem passa a considerar o que é ou não é Justiça. O justo não está na violência e, apesar de esta ser necessária para aplicação da justiça (uma prisão, uma multa, por exemplo, não deixam de se caracterizar como violências, ainda que brandas), o poder não pode ser o que define o justo.
Um governo justo, então, não pode ser pautado exclusivamente na força. A diferença entre um rei e um tirano é justamente a legitimidade justa de seus poderios. Os traficantes de drogas que a população quer tanto ver mortos, no fim, merecem essa punição? Não existem tipos de crimes diferentes que tipos de traficantes diferentes cometem? E se merecem indiscriminadamente a morte, como concretizar esse castigo? Como averiguar quem é e quem não é traficante? E mesmo que existam métodos confiáveis para tal verificação, dispensando o massacre geral que o povo pede, como agir se, por um erro do sistema judiciário, um inocente for morto? O sistema e o povo que exigiu a execução desses homens, erroneamente mortos, se tornam tão criminosos e inválidos quanto um traficante?
De fato, essa pergunta vai além da discussão sobre a pena de morte. A prisão de inocentes desqualifica o sistema de justiça de algum país? Quando alguém que nada fez paga por aquele que fez, não é a própria noção de Justiça que está sendo violentada?
Esses questionamentos não fazem parte apenas da contemporaneidade. Todo tipo de governo os enfrenta, ainda que de modos distintos, de acordo com suas culturas e épocas. A violência que cria e mantém a ordem, no fim, é a mesma que pode tirar a legitimidade de qualquer poderio. As glórias de nossos antepassados vitoriosos, aqueles mesmos que derrotaram a ameaça alemã nas duas Guerras Mundiais, ou ainda os que formaram a maior parte dos países atualmente existentes, se mancham com o irreversível rio de sangue que o poder traz.
Quando anarcocapitalistas criticam e querem o fim do Estado, eles apontam justamente para esse fator. “Estado”, em seus vocabulários limitados, pode significar um feudo, uma tribo e o moderno Estado de Direito, atualmente vigente nas democracias – tudo isso ao mesmo tempo. O termo basicamente significa que um grupo de pessoas más quis dominar a maioria para ter poder, criando impostos e leis que dobram os joelhos dos indivíduos.
Mas os anarquistas em questão se esquecem de que a busca por poder e violência é inerente à ordem. É irônico que militem, literalmente, pelo direito de pilotarmos tanques de guerra armados nas estradas e ruas, enquanto apontam os dedos para o aparato de dominação e poder dos Estados. A mesma violência que protege o indivíduo o põe em um status consideravelmente diferente do outro que é menos protegido. Basta uma desordem social para que alguns peguem as rédeas e, por meio de suas forças superiores, reinstaurem a ordem perdida e, assim, na nomenclatura anarcocapitalista, “reinstaurem o Estado” – não percebem que o Homem necessita da ordem, a ordem necessita de mando, o mando necessita de poder e o poder gerará violência. Esse drama humano é tão natural como a respiração, e não ousem afirmar que estou caindo em uma falácia ao apelo à natureza.
A retórica em prol da natureza só é uma falácia quando o elemento natural não tem pés no chão da realidade humana. Em resumo, se alguém defender estupros em nome do instinto sexual, a falácia que este comete fere a realidade de que a dignidade humana deve ser preservada, além de, sorrateiramente, colocar o abuso sexual como algo necessariamente condizente com a natureza humana. A falácia morre quando esta natureza está no real; dentro do argumento “é natural que os Homens respirem e que seus corações batam aproximadamente 60 vezes por minuto, portanto seria errado alguém defender que a respiração não é tão importante ou que não há problemas em forçar muito os batimentos cardíacos além das suas normalidades”, não há falácias. O argumento em prol da respiração é tão evidente para todos nós que chega a ser bobo explicá-lo em um exemplo por justamente, repito, ser evidente. Há uma concretude em toda e qualquer evidência. O ritmo dos batimentos cardíacos que, com efeito, necessitam de alguma investigação para serem evidenciados, também não pode ser falacioso, pois tem ligações com o real.
Falácias só são o que são porque, ardilosamente, invertem o real. Elas confundem o universal com o particular em suas retóricas, desviam do assunto, se afastam da realidade, dos predicados dos sujeitos. Se utilizar a Natureza do Homem como base para sustentar argumento é uma falácia, então a natureza seria inútil para qualquer discussão, o que é um absurdo que meu argumento, ainda que seja extremamente simples, sobre a respiração e sobre o ritmo cardíaco já pode demonstrar com facilidade.
Ao estudar o comportamento humano na História, no presente, vemos algo se repetindo sem nenhuma exceção: a busca pela ordem, busca que depende da violência. A violência é algo natural da humanidade. A ordem política, os governos, sejam eles tribais, democráticos, monárquicos, aristocráticos, etc., precisam desta violência legitimada e efetiva. Isto é a natureza se expressando, é como ursos sempre indo hibernar no inverno ou formigas sempre construindo formigueiros… com a diferença de que o Homem é mais complexo, não tendo uma natureza mais direta, possuindo cultura e se modificando drasticamente nos modos de expressar essa natureza, algo totalmente estranho para qualquer outro animal.
Esse é o drama que nós precisamos aceitar e com que precisamos conviver: a humanidade é dominadora, violenta, poderosa. Ela necessita, porém, de ordem para existir e a ordem será violenta. Podemos e devemos, claro, criticar e refinar essa ordem, tornando-a mais condizente com a Verdade, Justiça e Bondade, mas essa é uma luta já perdida, se qualquer um quiser chegar à perfeição desses valores de refinamento. Nossa própria natureza nos impede. A própria dinâmica entre a violência e a coesão trazida pela ordem impede tal perfeição. Com isso, só há uma conclusão: não podem existir sociedades totalmente pautadas na ética, pois o Homem não consegue ser totalmente ético. A ética é engolida e triturada pela brutal realidade humana. É a Queda de Adão ressoando pelos milênios.