A ética da redistribuição: como o Pacto Federativo virou dependência

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A leitura de A Ética da Redistribuição, de Bertrand de Jouvenel, levou-me a associar suas críticas à redistribuição forçada às peculiaridades brasileiras, especialmente no que diz respeito ao Pacto Federativo. Mais do que uma questão ética relacionada a programas sociais, a redistribuição imposta pelo Governo Federal, por meio desse pacto, revela uma centralização excessiva de recursos e poder, gerando distorções profundas entre os entes federativos. Jouvenel adverte que a redistribuição não apenas altera a alocação da renda, mas também transfere poder dos indivíduos para o Estado, fomentando um aparato burocrático cuja expansão se justifica pela própria lógica redistributiva.

O Pacto Federativo brasileiro, previsto na Constituição de 1988, deveria assegurar a autonomia política, administrativa e tributária entre União, Estados, Municípios e o Distrito Federal. Entretanto, na prática, observa-se uma intensa centralização de receitas na União, que define critérios de repasse e vincula os entes subnacionais a uma lógica de dependência financeira. Exemplos paradigmáticos dessa dinâmica são o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que, embora tenham como objetivo reduzir desigualdades regionais, acabam por reforçar a subordinação das unidades federativas. Segundo dados da Receita Federal (2023), a União retém cerca de 60% da arrecadação tributária nacional, enquanto os estados ficam com 25% e os municípios com apenas 15%. Essa assimetria revela como a arquitetura tributária brasileira inibe a autonomia financeira dos entes subnacionais, criando um sistema altamente dependente de repasses, como o FPE e o FPM — que, em muitos casos, respondem por mais de 80% da receita de municípios pequenos. Como aponta Jouvenel, esse fenômeno enfraquece a sociedade civil e fomenta um Estado progressivamente intervencionista.

As disparidades decorrentes da redistribuição tornam-se evidentes ao comparar estados como São Paulo e Maranhão. Em 2023, São Paulo arrecadou mais de R$ 500 bilhões em tributos federais e recebeu de volta menos de 15% desse montante, enquanto o Maranhão arrecadou cerca de R$ 10 bilhões e recebeu quase R$ 14 bilhões por meio do FPE. Embora se alegue que tal redistribuição visa a corrigir desigualdades, ela também perpetua ciclos de dependência e reduz os incentivos para o crescimento econômico autônomo — exatamente como alerta Jouvenel ao tratar dos efeitos perversos da redistribuição.

Essa lógica também se manifesta em programas sociais como o Bolsa Família. Estados do Nordeste, como Bahia, Pernambuco e Ceará, estão entre os maiores recebedores do programa devido aos altos índices de vulnerabilidade social. Em 2023, a Bahia recebeu cerca de R$ 15 bilhões do Bolsa Família, enquanto São Paulo, mesmo com maior população, recebeu apenas R$ 9 bilhões. Embora esses programas sejam justificados pelo critério de necessidade socioeconômica, Jouvenel alerta que a redistribuição excessiva pode consolidar a dependência das populações beneficiadas, reduzindo os incentivos para o desenvolvimento sustentável e fortalecendo o Estado como provedor principal.

É importante reconhecer que diversos estudos indicam que o Bolsa Família teve impacto positivo na redução da pobreza extrema e da desigualdade de renda no curto prazo. Relatórios do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Banco Mundial apontam que o programa contribuiu para a queda do índice de Gini no Brasil entre 2004 e 2014, bem como para melhorias em indicadores de saúde e educação infantil. Tais resultados representam conquistas relevantes, sobretudo em países com históricos estruturais de pobreza e exclusão. A redistribuição, nesse sentido, pode ser vista como uma forma de garantir dignidade básica e viabilizar políticas públicas essenciais em regiões com capacidade de arrecadação limitada.

Entretanto, é necessário distinguir os tipos de redistribuição. Redistribuições corretivas e temporárias, como políticas educacionais universais ou acesso básico à saúde, podem gerar efeitos virtuosos ao nivelar o ponto de partida. Já a redistribuição estrutural, contínua e sem metas claras de emancipação, tende a cristalizar desigualdades sob a aparência de justiça. A crítica de Jouvenel volta-se justamente a esse segundo tipo, no qual o Estado assume o papel permanente de provedor, em prejuízo da autonomia e da liberdade individual.

Avaliações mais recentes do IPEA e de universidades federais, como a UFBA e a UFMG, demonstram que grande parte das famílias permanece no programa por longos períodos, muitas vezes por gerações, sem acesso efetivo a políticas de inclusão produtiva. Segundo o estudo “Efeitos de longo prazo do Bolsa Família” (IPEA, 2021), apenas 12% dos beneficiários deixaram o programa por aumento de renda. A maioria saiu por razões administrativas ou perda do vínculo, o que evidencia a dificuldade de promover mobilidade social efetiva. Esse cenário reforça a crítica de Jouvenel quanto à substituição da responsabilidade individual por um assistencialismo estatal permanente. Ao transformar o Estado em provedor exclusivo, o programa, apesar de seu mérito inicial, contribui para a perpetuação da lógica redistributiva. A ausência de estratégias eficazes de transição para o mercado de trabalho, aliada à baixa qualidade do ensino básico nas regiões mais atendidas, limita as possibilidades reais de ascensão social. Assim, mesmo reconhecendo os avanços imediatos promovidos pelo Bolsa Família, sua estrutura atual pouco contribui para romper os ciclos de pobreza — ao contrário, tende a institucionalizá-los dentro de uma engrenagem estatal cuja sobrevivência depende da manutenção da própria dependência que gera.

Essa estrutura redistributiva se alinha ao que Jouvenel descreve como um mecanismo que legitima a expansão do Estado e a redução da liberdade individual. Ele argumenta que a redistribuição cria a ilusão de que o governo age em prol dos mais pobres, quando, na realidade, desloca poder da sociedade para a burocracia estatal. No Brasil, o Pacto Federativo e os programas sociais são frequentemente usados como ferramentas políticas para consolidar apoio eleitoral, uma vez que os gestores locais dependem das transferências de recursos federais para manter suas administrações viáveis. Estudos eleitorais indicam que regiões mais dependentes de repasses federais, como o Norte e o Nordeste, apresentam padrões de voto mais favoráveis à continuidade de gestões que defendem a ampliação desses programas, o que revela o uso político da redistribuição. Essa visão é reforçada por James Buchanan, para quem a expansão contínua dos benefícios estatais leva inevitavelmente à captura das decisões públicas por grupos organizados, desviando o foco da eficiência para a preservação de privilégios (BUCHANAN & TULLOCK, 1962).

Outro ponto relevante na análise de Jouvenel é o impacto da redistribuição sobre a moralidade social. Ele sugere que a caridade voluntária é substituída por um assistencialismo compulsório, no qual o Estado assume o papel de provedor. No Brasil, essa dinâmica se expressa na crença popular de que cabe ao governo garantir o sustento da população, reduzindo o incentivo ao empreendedorismo e à busca por autonomia financeira. O próprio modelo do Bolsa Família, ao condicionar o benefício a critérios de renda mínima sem oferecer mecanismos eficazes para a emancipação dos beneficiários, reforça essa mentalidade de dependência.

Além disso, Jouvenel aponta que a redistribuição não apenas transfere recursos, mas também distorce a alocação de incentivos econômicos. No Brasil, ao invés de fomentar o crescimento regional sustentável, o Pacto Federativo incentiva práticas como a “guerra fiscal”, em que estados tentam atrair investimentos oferecendo benefícios tributários, muitas vezes à custa da própria arrecadação. Isso cria um paradoxo: os estados mais ricos sustentam o sistema, mas recebem retorno proporcionalmente menor, enquanto os mais pobres recebem mais repasses, mas não necessariamente desenvolvem suas economias de forma independente.

Nesse contexto, é fundamental distinguir os tipos de redistribuição. A redistribuição centralizada e verticalizada, como a que predomina no Brasil, tende a ser politicamente capturada, burocraticamente inchada e pouco responsiva à realidade local. Modelos alternativos, como os baseados em vouchers para serviços básicos ou em transferências diretas condicionadas a metas de empregabilidade e escolarização, têm demonstrado maior eficácia na promoção da autonomia dos beneficiários. Além disso, a redistribuição horizontal — dentro de estados ou entre municípios — pode permitir um arranjo mais eficiente e próximo das comunidades, preservando os princípios federativos e a responsabilização local. Assim, a crítica liberal à redistribuição não nega a função social da política pública, mas questiona seu desenho, seus incentivos e seus efeitos institucionais de longo prazo.

Superar esse modelo exige uma reforma estrutural do Pacto Federativo. Algumas alternativas concretas incluem a revisão da partilha tributária, aumentando a parcela dos impostos de consumo e renda diretamente repassada a estados e municípios, com menor intermediação da União. A descentralização de competências em áreas como saúde, educação básica e infraestrutura, acompanhada da responsabilidade fiscal correspondente, permitiria maior adaptação regional das políticas públicas. Além disso, poderiam ser criados incentivos legais e fiscais para estimular o empreendedorismo local, a formalização de microempresas e o investimento regional, reduzindo a dependência de repasses. O federalismo fiscal precisa ser funcional: um pacto que premie o esforço arrecadatório, a eficiência administrativa e a inovação em vez de perpetuar um sistema de transferências incondicionais e politicamente instrumentalizadas. Modelos federativos como os da Suíça e do Canadá demonstram que é possível equilibrar autonomia regional e solidariedade nacional, desde que existam mecanismos claros de responsabilização e eficiência. Diferentemente do Brasil, onde mais de 90% das transferências intergovernamentais seguem critérios constitucionais fixos, países como Alemanha e Canadá adotam fórmulas mais flexíveis e baseadas em desempenho regional, incentivando responsabilidade fiscal e inovação administrativa (OCDE, 2020).

Por fim, Jouvenel adverte que o processo redistributivo tende a ser irreversível, pois cria uma classe política e burocrática que se beneficia diretamente desse modelo. No Brasil, políticos frequentemente ampliam programas sociais e transferências federais não apenas por necessidade econômica, mas também por conveniência eleitoral. Essa dinâmica fortalece a centralização do poder e enfraquece a autonomia local, tornando estados e municípios cada vez mais dependentes de Brasília. A crítica central do autor se encaixa perfeitamente nesse cenário: ao invés de corrigir desigualdades, a redistribuição perpetua a concentração de poder no Estado, minando a liberdade individual e a iniciativa privada.

Dessa forma, o Pacto Federativo e os programas sociais no Brasil ilustram com clareza a crítica de Jouvenel ao redistributivismo. Em vez de promover o desenvolvimento sustentável e a autonomia econômica dos indivíduos e das regiões, a redistribuição tem servido para expandir a influência do Estado e criar dependências estruturais. A descentralização efetiva da arrecadação, o redesenho da arquitetura federativa e a valorização da liberdade econômica seriam medidas mais alinhadas à prosperidade de longo prazo em contraposição à lógica redistributiva predominante.

* João Loyola é Associado do IFL-BH.

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