A coerência no movimento – ou na inércia – do MDB piauiense

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Li o artigo do jornalista Gustavo Almeida, do Portal Dito Isto, que tratava sobre a escolha do vice na chapa encabeçada pelo governador do Piauí, Rafael Fonteles. Ao discorrer acerca de mais uma escanteada em Themístocles Filho e a resignação do MDB em não romper com o PT diante de tal dissabor, ele fez um apanhado histórico certeiro elencando outras ocasiões nas quais o partido manteve a fidelidade ao petismo.

A essência do MDB é esta mesmo: composição como valor central em sua estratégia política. Não é uma exclusividade mafrense. O partido que tomou para si a luta contra o regime militar dentro do quadrado definido pelo tacão militar de turno é o símbolo do que Raymundo Faoro definiu como ‘’estamento burocrático’’ em seu livro Os Donos do Poder’.

Raymundo Faoro foi um sociólogo e intelectual de alto calibre – parece estranho, mas a esquerda brasileira já produziu alguém de tal envergadura. Ao analisar a realidade brasileira, ele fez o diagnóstico de que a luta de classes no país não era entre proletariado e burguesia, mais por ausência da última que qualquer outra coisa. A genuína querela adaptada de tons marxistas em solo tupiniquim era entre povo e estamento burocrático, grupo composto por políticos, burocratas e empresários que dominavam o Estado e tiravam proveito particular disso em detrimento dos anseios e escopos da população.

Isso casa com a óbvia constatação de o Brasil ser um país de tradição patrimonialista, onde o público e o privado se misturam e a democracia nos moldes ocidentais com um Estado técnico, impessoal e apartidário é uma doce ilusão. Uma das maiores aflições do imperador Dom Pedro II era o processo eleitoral de então com os presidentes das províncias ‘’fazedores de eleições’’, pois utilizavam as suas atribuições para interferir nas eleições locais – tal interferência produzia um resultado artificial e beneficiava o partido governante, daí a ideia do imperador de despolitizar o cargo da chefia provincial.

Pois bem, após o fim do regime militar e a institucionalização da Nova República com a Constituição de 1988, três principais forças políticas dominaram a vida pública brasileira por décadas: o PT, expressão da esquerda com traços progressistas; o PSDB, encarnando a social democracia importada da Europa; e o MDB, représentant fidedigno do estamento burocrático. A direita representada pelo então PFL preferiu a composição governista com os tucanos e mergulhou num ostracismo duradouro, contribuindo para a marginalização do conservadorismo na opinião pública que perdurou até a ascensão do bolsonarismo.

Símbolo do novo estado de coisas, o MDB praticamente não ficou de fora de nenhum governo. Era da base aliada de Fernando Henrique Cardoso, e, mesmo como único partido na coligação com José Serra em 2002, desembarcou no governo Lula anos depois – acordo costurado por Michel Temer. Permaneceu com o petismo até o impeachment de Dilma Rousseff e, ainda que, de forma oficial, estivesse independente, teve um dos seus quadros como ministro de Jair Bolsonaro. Exceções óbvias de José Sarney e do já citado Michel Temer, a agremiação política sempre focou nas eleições legislativas para angariar poder político nas negociações para composições.

O paralelo do diagnóstico de Raymundo Faoro com o MDB é certeiro na medida em que o partido é (I) composto por políticos de famílias com longa trajetória na vida pública brasileira, (II) contribuiu para a institucionalização de uma Carta Magna de viés estatizante e (III) aproveitou-se desse novo estado de coisas calcado numa tradição patrimonialista para ocupar espaços na burocracia estatal.

Há quem enxergue nisso um oportunismo mal disfarçado, ausência de causas ideológicas e vontade única de aproveitar as benesses do poder. É bom lembrar que o MDB é o partido que nasce da aglutinação de diversas forças políticas opositoras ao regime militar, tornando praticamente impossível uma coloração ideológica bem definida. Além disso, inúmeras lideranças egressas do antigo PSD – agremiação composta por oligarquias que sustentaram o varguismo – desembarcaram ali, com Tancredo Neves e Ulysses Guimarães como exemplos notórios.

Vale notar também que os diretórios estaduais nem sempre seguem as diretrizes estaduais. O MDB gaúcho, por exemplo, é opositor histórico do petismo – ao contrário do piauiense. Elegeu Antônio Britto, Germano Rigotto e Ivo Sartori como governadores em eleições que foram decididas em segundo turno contra candidatos petistas. Constituiu-se como uma antítese ao PT no estado que elegeu o primeiro governador da sigla no país.

E se o MDB for mesmo o tal partido “pega-tudo”, de centro? Isso o torna mais ou menos legítimo que os outros? Embebidos do caldo ideológico do presidencialismo americano, que só consagrou duas forças eleitorais, cremos firmemente no dualismo governo/oposição. Ora, as grandes democracias ocidentais são parlamentaristas e praticamente exigem um governo de coalizão – quando isso não ocorre, temos um impasse e não há governo, como se vê em inúmeros países europeus com a ascensão da direita alternativa. O Forza Italia, por exemplo, era hegemônico nos tempos de Silvio Berlusconi e tinha ojeriza à direita alternativa, mas hoje compõe o governo de Giorgia Meloni, do Fratelli d’Italia. A Alemanha testemunhou uma aliança entre o Partido Verde e o Democracia Cristã, partidos de orientações ideológicas diversas.

Vejam como quiserem, mas o MDB piauiense preserva uma boa dose coerência ao não romper com o Karnak. Como representante do estamento burocrático e símbolo de um regime político calcado no patrimonialismo que exige a composição para governar, os caciques emedebistas seguem a cartilha da agremiação. 

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Carlos Junior

Carlos Junior

É jornalista. Colunista dos portais "Renova Mídia" e a "A Tocha". Estudioso profundo da história, da política e da formação nacional do Brasil, também escreve sobre política americana.

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