A anistia como caminho de reconciliação nacional
O Brasil, país marcado por crises cíclicas e memórias seletivas, voltou a debater a anistia. No último 21 de setembro, em diversas capitais, manifestações foram convocadas para protestar contra a proposta de anistiar os aprisionados do 8 de janeiro. Em Copacabana, montou-se um show com nomes de peso da Música Popular Brasileira, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. A expectativa era de um ato grandioso, que rivalizaria com as grandes mobilizações políticas da história recente. No entanto, o que se viu foi um público reduzido, aquém do poder simbólico que esses artistas já representaram, um cenário que mostrou mais desgaste do que mobilização. Em termos de engajamento popular, a adesão foi modesta (cerca de 43 mil pessoas), especialmente para artistas que um dia foram a voz de uma geração contra a censura.
Esse contraste é revelador: os mesmos artistas que foram beneficiados direta ou indiretamente pela anistia de 1979 (quando retornaram do exílio, voltaram a se apresentar sem a sombra da censura e puderam exercer livremente sua expressão) hoje se levantam contra a possibilidade de uma anistia para outros cidadãos. É evidente que há diferenças entre os contextos históricos: a ditadura militar e o episódio de 8 de janeiro não são comparáveis em seus objetivos nem em suas consequências. Mas o ponto central permanece: se a anistia foi considerada condição essencial para pacificar o país em 1979, por que agora se nega o mesmo remédio político, quando a sociedade novamente se encontra dividida e polarizada?
A anistia não é esquecimento, tampouco absolvição moral. É um gesto institucional de reconciliação. Em 1979, o Brasil perdoou tanto perseguidos políticos quanto agentes de Estado acusados de tortura em nome de um pacto nacional que possibilitou a redemocratização. Naquele momento, artistas como Chico, Caetano e Gil entoavam canções pela liberdade e pediam o fim do “cale-se” imposto pela censura. Hoje, paradoxalmente, repetem em coro um “anistia não”, ignorando que, sem aquele perdão, talvez eles mesmos ainda estivessem silenciados. É a contradição de quem foi beneficiado pelo perdão, mas o nega ao adversário.
Sob a ótica liberal, essa contradição é inaceitável. Exige-se coerência: se a liberdade é um direito universal, o perdão político também deve ser universal quando a democracia se encontra em risco de dissolução pelo rancor. A anistia não apaga crimes, mas distingue entre lideranças que de fato atentaram contra as instituições e cidadãos comuns que se viram arrastados pela radicalização do momento. Não é uma indulgência coletiva, mas uma oportunidade de aplicar de forma racional o princípio da responsabilidade individual, punindo os que depredaram, mas reintegrando os que apenas seguiram a multidão.
Nesse debate, o voto do ministro Luiz Fux na Ação Penal 2668 foi um farol de lucidez. Divergindo da maioria, Fux sustentou que o julgamento na Primeira Turma do STF violou garantias fundamentais, que muitos réus não tinham foro privilegiado e, portanto, não deveriam sequer ser julgados pela Corte, e que a defesa foi cerceada com a inclusão tardia de dezenas de terabytes de provas. Ressaltou ainda que a tipificação de tentativa de golpe não encontrava respaldo na materialidade dos fatos, já que não houve planejamento concreto capaz de realizar o objetivo. Seu voto, mesmo minoritário, foi a lembrança de que o devido processo legal não é detalhe técnico, mas o coração da justiça. Numa democracia liberal, garantias processuais não são concessões: são barreiras contra o arbítrio.
Ao mesmo tempo, a reação popular ao show de Copacabana mostrou que o país não se mobiliza mais com a mesma intensidade diante do discurso monocórdio de uma elite cultural que parece esquecer de onde veio. O público pequeno, em comparação com a expectativa, expôs a perda de sintonia entre esses artistas e a sociedade. O espetáculo, pensado para ser um novo 7 de setembro, mostrou-se mais como um eco de um passado glorioso do que como um presente vibrante. Isso não diminui a importância de sua obra, mas demonstra que a coerção simbólica já não move multidões. A população percebe a contradição de quem antes pediu perdão e hoje prega o castigo sem fim.
A anistia, por isso, surge não apenas como tema jurídico, mas como necessidade política. Sem ela, o Brasil continuará preso a um ciclo de perseguição e revanchismo, gastando energia institucional com processos intermináveis, corroendo a confiança na justiça e afastando o foco das reformas estruturais que poderiam impulsionar o crescimento econômico. A anistia, bem delimitada, fecha um capítulo sem anular responsabilidades, reconcilia sem apagar memórias e permite que o país volte a se ocupar do futuro.
No fim, a lição é simples: democracia não é silêncio imposto, é voz plural. Chico cantou em Cálice o pedido para afastar o cálice amargo do “cale-se”. Hoje, o que deve ser afastado é o “cale-se” seletivo, que cala adversários em nome de conveniência política. Se a anistia foi capaz de reconciliar o Brasil em 1979, ela pode, novamente, ser o caminho para evitar que a democracia se transforme em tribunal de vinganças. O verdadeiro ato de coragem política não é perpetuar punições, mas reconhecer que, sem perdão, não há reconciliação, e, sem reconciliação, não há futuro.