Os crimes nazistas e a banalidade do Mal

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A expressão do título deste artigo remete imediatamente a Hannah Arendt que, se não foi sua criadora, foi quem a divulgou no mundo acadêmico e na mídia internacional.

Hannah Arendt (1906-1975)* foi uma filósofa política judia alemã que escapou da França ocupada pelos nazistas para os Estados Unidos em 1941.

Como o filósofo austro-britânico Sir Karl R. Popper (1902-1994) em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos e como o economista austríaco Friedrich Hayek (1899-1993), em O Caminho da Servidão, ela se voltou para o estudo do totalitarismo, tanto o de cunho nazista como o de cunho comunista.

Em As Origens do Totalitarismo (1951), Hannah Arendt relata a decadência do Estado tradicional, o retorno em larga escala do antissemitismo nos séculos XIX e XX e o surgimento das ditaduras comunista e nazista em sua insaciável sede de poder.

Apaixonada pela democracia americana, Hannah Arendt deu aulas em universidades dos Estados Unidos e completou suas pesquisas sobre política e cultura com três livros: A Condição Humana (1958), Sobre A Revolução (1963) e Sobre A Violência (1970).

Em 1961, enquanto cobria, em Israel, para a revista New Yorker o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, Hannah Arendt escreveu uma série de cinco artigos para esta mesma revista os quais resultaram no livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal.

Ela conta que tinha a expectativa de encontrar um réu com uma fisionomia assustadora, tal como a do xará do mesmo: Adolf Hitler, mas o que ela viu, atrás da jaula de vidro à prova de bala, não tinha nada de assustador.

Adolf_Eichmann_at_Trial1961Ao contrário, Eichmann se parecia com uma pessoa comum, magro, alto, calvo, de fala pausada e macia, que em nenhuma das mais contundentes acusações feitas a ele levantou o tom da sua voz e esbravejou, como teria feito certamente Hitler.

Poderíamos interpretar o ar fleumático do réu como a conduta de um psicopata. Como se sabe, o portador dessa doença mental não demonstra nenhum sentimento e nenhum arrependimento por maiores os males que tenha praticado. Ao contrário, ele é capaz de descrever minuciosamente seus crimes hediondos como se estivesse descrevendo um passeio na floresta.

No entanto, Hannah não considerou que Eichmann fosse um psicopata, mas sim um burocrata dos mais simplórios que, segundo ele próprio, limitava-se a cumprir seu dever sem quaisquer hesitações ou questionamentos.

Para ele, organizar o transporte de milhares de judeus para Auschwitz ou Treblinka e seus campos de concentração era uma simples questão de logística, devendo ser bem organizada por um oficial da SS (Schutzsaffel, i.e. “Guarda de Proteção” de Hitler).

Ele não tinha nenhum arrependimento do genocídio do qual era cúmplice porque não se considerava culpado. Ao contrário, via a si mesmo como um soldado patriota cumpridor de seus deveres.

Antes do julgamento de Eichmann, no Julgamento de Nuremberg, muitos nazistas procederam de forma semelhante à dele: rejeitavam as acusações por mais bem documentadas que fossem, sempre sob a alegação de que eram militares e cumpriam as ordens recebidas, sem entrar no mérito das mesmas.

Sabemos que na ética militar, das FFAA de qualquer país, o descumprimento de uma ordem superior pode resultar em corte marcial, e tal prática se justifica como um meio de assegurar os mais importantes valores militares: respeito à hierarquia, disciplina e lealdade.

Mas teria sido a ameaça de uma corte marcial que levara Eichmann e os principais líderes do Holocausto a cumprir cegamente as ordens recebidas, em última instância, por Himmler, o chefão da SS?

Isto foi posto em questão no Julgamento de Nuremberg e gerou jurisprudência. Foi elaborada a teoria do domínio do fato. Resumidamente: o que está em jogo não é a posição social, o cargo exercido por um réu, mas sim sua responsabilidade em relação a um fato ocorrido.

No caso de Eichmann, havia provas materiais e testemunhais de que ele dera ordens para o extermínio de milhares de judeus, apesar de Eichmann insistir em dizer que ele apenas os acomodava em trens, sem se indagar sobre a destinação dos mesmos.

Isto soa como se ele dissesse: “Eu, pessoalmente, não cortei o pescoço de ninguém. Limitei-me a dar ordem para o carrasco cortar”. Mas, como diz o vetusto provérbio: Tanto é ladrão quem vai à horta como quem fica à porta.

No entanto, Hannah Arendt não entrou nessa ordem de considerações jurídicas, do mesmo modo que não entrou em considerações de natureza psiquiátrica, considerando Eichmann um psicopata.

Ela diz que ficou extremamente chocada com a frieza e indiferença com que Eichmann narrava detalhadamente suas cruéis práticas genocidas, como se fosse um gerente fazendo um relatório de suas atividades. E para ela isto só podia ser compreendido pela banalização do mal.

Esse processo de tornar o mal uma banalidade como qualquer outra, despojado de seu caráter atemorizante e portentoso, ocorre pela frequência da sua prática e pela impunidade dos seus praticantes.

Praticado em larga escala, nas suas mais variadas formas, presente na vida cotidiana como coisa corriqueira, o mal acaba se tornando coisa habitual e ninguém concede a ele as devidas atenção e preocupação.

E a banalização do mal na Alemanha já estava em curso no período pré-nazista, como mostrou muito bem o filme de Ingmar Bergman O Ovo da Serpente.

Ninguém fica mais espantado ao saber que no Brasil atual ocorrem mais de 50.000 homicídios por ano, casos de corrupção grossa visitam um após o outro as folhas dos jornais, o desrespeito pelas instituições se alastra ameaçadoramente, juntamente com a impunidade dos crimes de colarinho branco.

Isto me faz lembrar do filme Drácula, o Vampiro da Noite, no cinema falado talvez o primeiro do gênero. Nosferatu, o vampiro do filme de F.W. Murnau, era filme mudo.

Quando eu era muito jovem, hoje já não sou tanto, assisti ao Vampiro da Noite estrelado por Christopher Lee. Fiquei com tanto medo que passei a noite toda de luz acessa e olhos abertos.

Mas após Roman Polanski ter levado ao ridículo a temível figura do vampiro, ele não mete mais medo em ninguém, nem mesmo em crianças com pirulito na boca. É a banalização do mal.

 

 

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Mario Guerreiro

Mario Guerreiro

Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor do Depto. de Filosofia da UFRJ. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Membro Fundador da Sociedade de Economia Personalista. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da Sociedade de Estudos Filosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade.

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