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Os caminhos da democracia moderna em Tocqueville e Aron

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Este artigo foi originalmente publicado no site do autor. 

Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Raymond Aron (1905-1983) são, sem dúvida, duas figuras cimeiras do pensamento liberal moderno na França, ao lado de outros autores como Alain Peyrefitte (1925-1999) [cf. 1978 e 1999] e Jean-François Revel (1924-2006) [cf. 1992 e 2000]. A finalidade deste artigo é mostrar os aspectos mais marcantes da meditação política dos dois primeiros, destacando os elos que os unem. Aron elabora a sua obra de sociólogo e pensador político, dando continuidade aos temas desenvolvidos, originariamente, por Tocqueville e preservando, dele, a inspiração liberal básica, na luta em prol da liberdade no contexto da democracia.

Oito itens serão desenvolvidos: 1) Tocqueville, Aron e os liberais doutrinários. 2) A conversão de Tocqueville ao ideal democrático e a opção liberal de Aron. 3) A nova ciência política de Tocqueville e a filosofia crítica da história de Aron. 4) A ética tocquevilliana e os seus reflexos no pensamento de Aron. 5) Estrutura geral e ideias fundamentais da Démocratie en Amérique de Tocqueville. 6) Despotismo e democracia na França, segundo Tocqueville e Aron. 7) Repercussão passada e presente da meditação de Tocqueville. 8) Os problemas da democracia moderna segundo Tocqueville e Aron.

I – Tocqueville, Aron e os liberais doutrinários .

Tocqueville recebeu o especial influxo de François Guizot (1787-1874) e dos demais doutrinários. Em 1829-1830, o nosso autor frequentou os cursos que Guizot ministrou, na Sorbonne, acerca da história da França. Como lembra Françoise Mélonio (1953) [1993: 17], o jovem Tocqueville foi um “ouvinte atento”, que “tomava notas nas quais se vê a admiração do discípulo”, mas, por outro lado, um discípulo crítico, que tinha sofrido, na pele da sua família nobre, os excessos da Revolução, que era focalizada pelo frio Guizot de uma forma mais distanciada e formalista. Particularmente, Tocqueville encontrava dificuldade em aceitar a ideia de Guizot de superar o ciclo revolucionário, num regime fundado apenas no voto censitário.

Sem dúvida que a influência de Guizot foi decisiva em Tocqueville, em que pese o reparo que acaba de ser mencionado. O cerne dessa influência consistiu na insistência do velho doutrinário em “inculcar nas jovens gerações o respeito ao passado, para restabelecer a unidade da Nação ao longo dos séculos” [Mélonio, 1993: 17]. Pierre Rosanvallon (1948) [1985: 26] destacou, de forma clara, com as seguintes palavras, a finalidade perseguida por Guizot e pelos demais doutrinários: “Terminar a Revolução, construir um governo representativo estável, estabelecer um regime que garantisse liberdades e que estivesse fundado na Razão. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe à geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o desenvolvimento do fato democrático. Momento conceitual que coincide com o período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes e do momento democrático, que se inicia depois de 1848”.

Tocqueville assimilou, perfeitamente, a herança dos doutrinários, em especial de Guizot. “A obra de Tocqueville – escreve Françoise Mélonio [1993: 16] – nasce do sentimento da precariedade do compromisso efetivado pela monarquia constitucional entre a reivindicação igualitária e a herança do Antigo Regime. Tocqueville experimentou esse sentimento nas desgraças da sua família. Mas ele lhe deu uma forma racional, graças à diuturna reflexão ao ensejo dos fatos históricos e da leitura das obras dos seus antepassados, os doutrinários. Desde 1828 ele se afasta do radicalismo, ao repudiar a ilusão de uma volta ao passado: ele aceita 1789 como uma ruptura definitiva na história da França. De entrada, ele compartilha com os liberais doutrinários o sentimento de pertencer a obscuras gerações de momentos de mudança. Como eles, observa a democracia correndo a margens cheias [expressão cunhada por Royer-Collard, em discurso pronunciado em 17 de maio de 1820]. Como eles, crê no caráter irresistível do curso dos acontecimentos: Os rios não remontam em direção à fonte. Os fatos acontecidos não viram nada [expressão de Guizot]. A obra de Tocqueville seguirá interminavelmente a metáfora fluvial introduzida pelos doutrinários. Ao aceitar o diagnóstico dos liberais, Tocqueville faz também seus os objetivos deles. Pois tudo está destruído, é tempo de reconstrução. Tarefa difícil. A paixão de destruir, que sobrevive à Revolução, mantém a sociedade em estado de guerra civil. Depois de 1820, a Restauração é alvo de sucessivos complôs, que manifestam a impossibilidade de um consenso em relação às instituições”.

Mas, se Tocqueville é tributário dos doutrinários, no entanto, supera-os. A defesa da liberdade, que no pensamento daqueles veio a se traduzir num certo formalismo, que pretendia garantir as conquistas da Revolução, apenas para a burguesia comodamente instalada no poder, no nosso autor constitui imperativo categórico a ser consolidado e garantido para todos os franceses. Tocqueville abre-se à democracia, que sente viva na América, através do caminho da defesa da liberdade para todos.

Em relação à maneira peculiar em que o nosso autor entende o seu ideal liberal e democrático, em contraposição à forma tacanha em que era concebido por Guizot, Françoise Mélonio [1993: 37] escreve: “Mas o self-government não é mais do que um dos aspectos da auto regulação da sociedade. Tocqueville faz de toda a vida social uma grande escola de responsabilidade; na ordem jurídica, pela participação de todos no júri, na ordem da opinião por uma reflexão sobre os partidos e os jornais, que ele designa com o termo genérico de associação. Polêmica, a argumentação de Tocqueville é dirigida contra a feição conservadora dos publicistas liberais ou doutrinários, que rapidamente tinham-se mostrado infiéis à liberdade exigida por eles sob a Restauração, ao fazer votarem as leis de 16 de fevereiro de 1834, acerca do anúncio e a venda de jornais, de 10 de abril de 1834, sobre as associações, de setembro de 1835, após o atentado de Fieschi. Toda a estratégia de Tocqueville consiste em mostrar que a ordem, tão cara aos conservadores, não pode ser garantida senão graças à liberdade de se reunir, que eles negam precisamente ao cidadão francês. É necessário arriscar, estamos envolvidos. Não há meio-termo entre a servidão e a extrema liberdade. Todas as políticas de frear a história, todos os sonhos de uma ordem estabelecida, decorrem dessas ilusões em que adormecem geralmente as nações doentes. A democracia não é o lugar da identidade miraculosa entre os homens, mas é aquele regime que se consolida na relação entre as classes antagônicas”.

É evidente que a posição crítica de Tocqueville em face dos doutrinários suscitou a reação deles. Françoise Mélonio [1993: 57] sintetizou a posição de Guizot a respeito, nos seguintes termos: “Para Guizot, Tocqueville destruiu a moralidade ao proclamar a autonomia das vontades, em detrimento dos direitos da Verdade, tal como ela se apresenta aos espíritos esclarecidos. Guizot não é um filósofo da liberdade. Para ele, a liberdade não é no homem mais do que o poder de obedecer à verdade. A noção de capacidade (…) remete, também, a uma teoria da razão e a uma teologia, segundo a qual há, na economia da salvação, procuradores do Direito investidos da missão de guiar a humanidade. A argumentação de Guizot se encontra em todos os escritores preocupados em preservar as elites”.

Aron é um herdeiro do espírito doutrinário. A sua reflexão não ocorre, apenas, em termos acadêmicos. O pensador busca transformar as estruturas, tanto no plano da política francesa, quanto no das relações internacionais. A metafísica dogmática, fechada à experiência do mundo e à vivência dos grandes problemas da humanidade, não o seduz. Nas suas memórias, escreve: “Confesso que os filósofos ou os metafísicos, especialmente os que por tais são tidos na França, ajudam-me pouco nas dificuldades. Que luz projetam sobre o destino da nossa civilização liberal, limitada como todas as civilizações? A palavra niilismo acode à pena (…) e com ela o nome de Nietzsche. Parece que vivemos numa época de niilismo” [Aron, 1985: 700].

Em face das contradições do mundo contemporâneo, Aron aposta na razão. Confessa-se filho das Luzes. Considera que a Razão é a luz que pode guiar a Humanidade, na tumultuada quadra dos últimos decênios do século XX. Em face dos apocalipses anunciados, prefere a serenidade da reflexão projetada sobre o mundo, o que ele denomina de saber aliado à experiência, com uma atitude de modéstia epistemológica. A respeito, afirma nas suas memórias: “Ao contrário, em se tratando dos possíveis apocalipses, das ameaças que gravitam sobre a humanidade, sei onde buscar a fé e a esperança. Não possuo o segredo de remédios miraculosos contra os males da civilização industrial, as armas nucleares, a contaminação, a fome ou a superpopulação. Mas sei que as crenças milenaristas e as lucubrações conceptuais de nada servirão: prefiro a experiência, o saber e a modéstia. Se as civilizações, todas ambiciosas e precárias, devem realizar, num futuro longínquo, os sonhos dos profetas, que vocação universal poderia uni-las senão a Razão?” [Aron, 1985: 702].

O caminho através do qual Aron encaminha o seu engajamento é o da imprensa. Não se sente vocacionado para o exercício do poder, mesmo que seja na função de conselheiro dos governantes. Acha importante a tarefa de um Henry Kissinger (1923) ou de um Zbigniev Brzezinski (1928-2017), mas confessa que não possui a capacidade de lidar com a tomada de decisões que afetarão a vida de milhões e milhões de seres humanos. Prefere ajudar a sociedade a que ela encontre o seu caminho, ilustrando-a acerca das alternativas mais acordes com a dignidade humana [cf. Aron, 1985: 703 seg.]. A herança tocquevilliana está presente aqui, se bem que um tanto modificada. Tocqueville chegou ao exercício do poder, da mesma forma que Guizot. Aron é mais um intelectual engajado na imprensa. Desde ali, realiza a sua função de reflexão e de crítica social. Esse será o seu principal magistério, embora também tenha passado pelo ensino na Universidade. Mas esta é uma opção que não reveste a importância, na sua vida, da ação do publicista. Mais adiante, ao tratar dos problemas da democracia segundo o pensamento aroniano, ilustrarei melhor este aspecto. Fique aqui, apenas, a seguinte anotação: a posição de Aron é doutrinária, do ponto do vista do seu engajamento na transformação das instituições, para garantir o exercício da liberdade; mas essas instituições já são pensadas, por ele, à luz de Tocqueville, ou seja, vivificadas pela dimensão democrática.

Daniel J. Mahoney (1960) destacou, da seguinte forma, o espírito doutrinário que anima a obra de Aron, caraterística que estaria sendo revalorizada hoje na Europa: “Voltei a minha atenção para Aron, como antídoto contra as correntes tanto positivista quanto pós-modernista, que dominam o ensino e a pesquisa em ciências humanas no mundo anglo-americano. O paradoxo é interessante: cada domínio do pensamento e da ação encontra-se explicitamente politizado, deformado por noções ideológicas abstratas, mas ao mesmo tempo, os indivíduos perdem, hoje, a capacidade de pensar e de agir politicamente. Por oposição, Aron encarna esta perspectiva política. Ele é um dos últimos grandes representantes de uma tradição europeia liberal em curso de redescoberta no seu país natal (…)” [Mahoney, 1998:7]. Efetivamente, não é por acaso que, hoje, na França, volta a ser estudada com redobrada ênfase a obra de Madame de Staël (1766-1817), bem como a de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) e a de François Guizot, sendo os dois primeiros os precursores da corrente do liberalismo doutrinário e o último, o grande representante dessa tendência. Justamente, o que caracteriza o pensamento de todos eles é a reação contra o mundo abstrato dos philosophes do século XVIII, não comprometidos com a história do seu tempo e habitantes de um mundo nefelibático, em que sobrevivem conceitos vácuos como volonté généralcitoyen, etc.

II – A “conversão” de Tocqueville ao ideal democrático e a opção liberal de Aron .

Quando se deu a “conversão” de Tocqueville à ideia democrática? Essa conversão concretizou-se, de forma clara, na sua viagem à América, que ocorreu entre 11 de maio de 1831 e 20 de fevereiro de 1832. “É possível datar as etapas dessa conversão – escreve Françoise Mélonio [1993: 29-30] . Em New York, onde permanece de 11 de maio a 2 de julho, Tocqueville é, de entrada, muito reticente. Essa sociedade de mercado, onde o governo está ainda na infância, não possui nada que possa seduzir a um jovem aristocrata. Tudo quanto observo não me entusiasma”, anota ele então, “pois aposto mais na natureza das coisas que na vontade do homem. Mas não pode deixar de invejar o patriotismo do povo americano e a tranquilidade com a qual ele se mantém em ordem, graças somente ao sentimento de que não há mais salvaguarda contra si mesmo do que em si mesmo. A conversão completa-se em Boston (no período compreendido entre 7 de setembro e 3 de outubro), quando Tocqueville, ao descobrir o que é a igualdade bem regrada, adere a uma democracia que, de resto, triunfa irresistivelmente. É então somente agora, no final de setembro, quando ele decide escrever um livro sobre as instituições americanas, a fim de testemunhar, entre os franceses, que a democracia feliz existe, pois a tem encontrado (…)”.

Vale a pena citar o trecho da carta em que Tocqueville dá conta do novo projeto ao seu primo, Luís de Kergorkay (1804-1880): “(Pretendo) descrever muito exatamente o que seria necessário esperar e temer da liberdade. Nós temos tido na França, nos últimos cem anos, a anarquia e o despotismo sob todas as suas formas, mas jamais nada que se assemelhasse a uma república. Se os monarquistas pudessem ver a marcha interior de uma república bem organizada, o respeito profundo que se tem ali pelos direitos adquiridos, a pujança desses direitos nas massas, a religião da lei, a liberdade real e eficaz de que ali se goza, o verdadeiro reino da maioria, o progresso cômodo e natural que ali seguem todas as coisas, perceberiam que abarcam, sob um nome comum, estados diversos que nada possuem de análogo. Os nossos republicanos, por sua vez, sentiriam que o que temos chamado de República, não tem sido mais do que um monstro que não se saberia classificar (…), coberto de sangue e de sujeira, vestido de farrapos, ao som das querelas da antiguidade” [apud Mélonio, 1993: 30].

Houve em Aron uma conversão à democracia como em Tocqueville? Propriamente não, a julgar pelo testemunho que Aron deu quando da sua visita à Universidade de Brasília, em 1980, ao ensejo do simpósio que foi realizado para estudar a sua obra. O pensador considera que houve, sim, por volta do ano 1930, uma mudança. Formado no esquerdismo pacifista e moderado de Émile-Auguste Chartier, pseud. Alain (1868-1951), no neokantismo de Heinrich Rickert (1863-1936), Henri Brunschwig (1904-1989) e Alexandre Kojève (1902-1968), na crítica ao historicismo feita por Wilhelm Dilthey (1833-1911), Georg Simmel (1858-1918) e Max Weber (1864-1920), bem como à sombra da fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) e de Martin Heidegger (1889-1976), o jovem Aron fica impressionado com a aguda problemática colocada pelo nacionalismo alemão e pelos riscos que daí emergem para o convívio civilizado na Europa. Tenta compreender o momento histórico e, nesse esforço, a leitura de Weber lhe será de grande valia. Diríamos que Aron acorda para o risco que a liberdade sofre na versão de democracia de massas que o hitlerismo representa.

Eis o seu testemunho da experiência da realidade alemã, que passa a conhecer muito de perto, nas suas permanências de 6 a 8 meses por ano, na Alemanha, entre 1930 e 1933: “A partir de 1930 senti um choque. Um choque comparado àquele analisado várias vezes por Arnold Toynbee (1889-1975), quer dizer, a expressão history is again on the move. Na primavera de 1930, por uma espécie de intuição que não era baseada em nada, a não ser no choque de uma Alemanha atormentada, revoltada, impotente, esse choque com a Alemanha infeliz e revanchista me deu a impressão de que history is again on the move. Então, o que é que eu descobri na Alemanha nesses três anos? Eu primeiro descobri um pouco da filosofia alemã e descobri um pouco da política. O que descobri na Alemanha, em grande escala, foi primitivo. Mas eu descobri a especificidade da política e a diferença radical entre a moral e a política. Podem-me dizer que não é uma grande descoberta. (…). Mas acho que cada um de nós, quando é de temperamento filosófico, quando é um homem de boa vontade e quando tem 15 ou 20 anos, para ele, descobrir que a moral e a política são duas coisas diferentes, não é tão fácil, e não é tão aceitável e tão agradável”.

“Eu voltava da Alemanha em 1932 – continua Aron – muito marcado pelas minhas experiências da realidade alemã, convencido que, na Alemanha, se levantava uma onda nacionalista que ia fazer desaparecer todas as barragens e eu queria alertar todos os franceses e meus amigos, os homens políticos, do perigo que despontava a leste, sob a forma do nacional-socialismo e do regime que sairia do nacional-socialismo (…)” [Aron, 1981: 60-61].

Mas, para Aron, houve outro fato definitivo na sua descoberta dos riscos que corria a liberdade, desta vez em face do comunismo. Essa descoberta se dá após o pacto entre Stalin e Hitler, em 1939. Ficou claro, para o nosso autor, que ambos aspiravam a serem os donos da Europa. E nenhum deles apreciava a liberdade. A ruptura com um e com outro era exigência para a preservação dos valores fundamentais da civilização ocidental. Tanto nacional-socialismo quanto comunismo eram, para o jovem pensador, regimes totalitários que negam o exercício da liberdade e que conspiram contra a dignidade humana. A respeito, escreve: “Pessoalmente, (…) eu escolhia entre os dois tipos de sociedade; a escolha inicial era: eu escolhia as sociedades democráticas e liberais e recusava o outro tipo de sociedade que eu não tinha jamais aceitado, mas que eu tinha compreendido imediatamente, totalmente, no momento em que Hitler (1889-1945) e Stalin (1878-1953) fizeram um acordo. E os grandes comunistas, com os quais eu mantinha relações nos anos 30, se tornaram insuportáveis para mim, em 1939, a partir do já mencionado acordo entre Stalin e Hitler. Eu tinha, pois, escolhido o tipo de sociedade ocidental e a partir de então eu era logicamente pró-europeu, pro-atlântico em função do argumento que me parece, ainda hoje, ao mesmo tempo simples e evidente: para manter o equilíbrio das forças na Europa, na época arruinada, era indispensável a presença americana. E a Aliança Atlântica era a garantia da presença americana na Europa, garantia do equilíbrio das forças entre as duas partes da Europa” [Aron, 1981: 67-68].

A opção liberal de que Aron é consciente em 1939 leva-o, no segundo pós-guerra, à ruptura definitiva com o seu amigo de juventude, Jean-Paul Sartre (1905-1980). Inicialmente indiferente à política, o autor de L’Être et le Néant acordou, tardiamente, em 1938, para a realidade da luta que se travava na Europa. Passou a ler sofregamente os jornais e terminou percorrendo caminho diametralmente oposto ao de Aron. É curioso observar, no testemunho deste, o registro da intolerância progressiva de Sartre. “Em 1938, – frisa Aron – ele era partidário do acordo de Munique por razões de moral pacífica. (…). Após a guerra, eu reencontrei Sartre, que tinha sido ativo na resistência durante a guerra e que não era comunista, mas que estava muito próximo dos comunistas. Ele era para- comunista, porém não queria entrar para o partido, não aceitava o marxismo, não aceitava o materialismo, mas dava, de uma certa maneira, seu apoio ao progressismo marxista. (…). Assim, após os anos de reencontro, quer dizer, 44, 46 e 47, nós estávamos juntos na criação dos tempos modernos, o que me parecia evidente, desde logo, após a guerra, após a ruptura da aliança dos países que tinham juntos triunfado sobre a Alemanha. Esta ruptura entre o mundo soviético e o mundo atlântico estava inscrita, com antecedência, na História e quando esta ruptura aconteceu, ao mesmo tempo, quase inevitavelmente, aconteceu a ruptura entre dois amigos anteriormente muito ligados. (…). Sartre pensava totalmente diferente; para escolher entre os Estados Unidos e a União Soviética, ele escolhia a União Soviética, ele era orgulhosamente de esquerda, e tinha escolhido e ficado na esquerda, digamos, por decreto de princípio, decreto este que eu tinha aceitado quando era muito mais jovem, mas que tinha recusado desde há alguns anos. Para ele, ser pró-europeu, pró-atlântico, era característica dos conservadores, do mau-caráter. Até o fim de sua vida ele teve uma grande dificuldade em aceitar que se podia tomar decisões políticas diferentes das suas, por razões válidas. Ele era tão moralista que no fundo acreditava, sempre, que decisões políticas eram decisões morais. De tal maneira que ele tinha tendência a condenar moralmente aqueles que tomavam decisões políticas diferentes de sua escolha, diferentes das suas. Eu diria que, em função de minha filosofia política, nossas diferenças políticas não teriam implicado a ruptura, mas em função de sua filosofia moral, a ruptura era inevitável. (…)” [Aron, 1981: 67-68].

III – A nova ciência política de Tocqueville e a filosofia crítica da história de Aron 

Démocratie en Amérique deu ensejo, na França, a uma nova ciência política. Quais os contornos que a definem? Em primeiro lugar, Tocqueville estava inspirado numa epistemologia que hoje chamaríamos de modesta. Se é verdade que o absolutismo é, em política, irmão gêmeo do dogmatismo em filosofia, também podemos afirmar que a modéstia epistemológica é pressuposto do liberalismo. Não pode haver autêntica defesa da liberdade e da tolerância, ali onde se professam verdades inamovíveis, no que tange à concepção do homem e do mundo. Eis o que Tocqueville escrevia, em 1831, ao seu amigo Charles Stöffels (1809-1886): “Para a imensa maioria dos pontos que nos interessa conhecer, nós não temos mais do que verossimilhanças, aproximações. Se desesperar porque as coisas são assim é se desesperar pelo fato de ser homem; pois essa é uma das mais inflexíveis leis da nossa natureza. (…). Sempre considerei a metafísica e todas as ciências puramente teóricas, que de nada servem na realidade da vida, como um tormento voluntário que o homem consentia em se impor” [apud Mélonio, 1993: 31].

Em 1858, o nosso autor explicava ao filósofo Hervé Bouchitté (1795-1866) que a mais refinada metafísica não era mais clara que o simples senso comum acerca do sentido do mundo e, especialmente, em relação “(…) à razão do destino deste ser singular que chamamos homem, ao qual foi dada, justamente, tanta luz quanta era necessária para lhe mostrar as misérias da sua condição e insuficiente para mudá-la” [Mélonio, 1993: 31]. Passagem de verdadeira inspiração pascaliana, no sentir de Françoise Mélonio, que escreve a respeito: “Que miséria que é o homem… Tocqueville retoma a crítica pascaliana dos limites da Razão, atualizando-a para dirigi-la contra todos aqueles que identificam o discurso racional com o real. A hostilidade futura de Tocqueville a Hegel (1770-1831) não terá outra fonte diferente desta rejeição a um providencialismo secularizado, junto com o desgosto dos espíritos finos em relação às coisas especulativas, fora do uso comum”.

Na trilha que acaba de ser mencionada, Tocqueville situa a sua crítica ao historicismo, que, no sentir do nosso autor, termina sacrificando a liberdade e a pessoa no altar da abstração histórica. Tocqueville considerava que esse era um vício próprio dos historiadores que vivem “em séculos democráticos”, preocupados mais em serem lidos com facilidade pelas grandes multidões, do que em fazer uma análise verdadeira dos fatos. Antecipava-se genialmente o nosso autor, destarte, à crítica que os neokantianos, com Rickert à testa, deflagraram, na virada do século XIX para o XX, à tendência abstrata da escola histórica alemã de Carl von Savigny (1779-1861).

A respeito da historiografia que se pratica nos “séculos democráticos”, Tocqueville escreve o seguinte, diferenciando-a da historiografia que se pratica nos “séculos aristocráticos” [1977: 375]: “Os historiadores que vivem nos séculos democráticos mostram tendências inteiramente contrárias. A maior parte deles quase não atribui influência alguma ao indivíduo sobre o destino da espécie, nem aos cidadãos sobre a sorte do povo”. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos pequenos fatos particulares. Essas tendências opostas são explicáveis. Quando os historiadores dos séculos aristocráticos lançam os olhos para o teatro do mundo, a primeira coisa que nele percebem é um pequeno número de atores principais, que conduzem toda a peça. Essas grandes personagens, que se mantêm à frente da cena, detêm a sua visão e a fixam: ao passo que se aplicam a revelar os motivos secretos que fazem com que ajam e falem, esquecem-se do resto. A importância das coisas que veem alguns homens fazer dá-lhes uma ideia exagerada da influência que pode exercer um homem e, naturalmente, os dispõe a crer que é sempre necessário remontar à ação particular de um indivíduo, para explicar os movimentos da multidão”.

“Quando, ao contrário – prossegue Tocqueville -, todos os cidadãos são independentes uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se descobre nenhum que exerça um poder muito grande nem, sobretudo, muito durável, sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos parecem absolutamente impotentes sobre ela e dissera-se que a sociedade marcha sozinha, pelo concurso livre e espontâneo de todos os homens que a compõem. Isso leva, naturalmente, o espírito humano a procurar a razão geral que pode, assim, atingir a um tempo tantas inteligências e voltá-las, simultaneamente, para o mesmo lado”.

O principal defeito que Tocqueville enxergava na historiografia dos tempos democráticos consistia no fato de tal modelo se alicerçar numa concepção fatalista da história, que pressupõe, em primeiro lugar, uma ideia determinista do homem. A respeito, o nosso autor escreve: “Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e os submetem, ora a uma providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar. Tornam as gerações solidárias umas às outras e, remontando assim, de época em época e de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa, que envolve todo o gênero humano e o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos: comprazem-se, ainda, em mostrar que não podiam dar-se de outra forma. Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para seguir um melhor caminho” [Tocqueville, 1977: 375].

Tocqueville, pensador definidamente liberal, rejeita, de plano, tal historiografia, por considerar que essa concepção nega a liberdade humana, base da “dignidade das almas”. Trata-se de superar as desgraças da Revolução e do Terror, não de conduzir a nação francesa à sua definitiva destruição. O nosso autor identifica, alto e bom som, o caminho que deve ser seguido: o da liberdade, ou melhor, o da conquista da liberdade para todos os franceses.

A respeito da crítica efetivada a essa concepção fatalista, Tocqueville [1977: 377] escreve: “Se essa doutrina da fatalidade, que tem tantos atrativos para aqueles que escrevem a história nos tempos democráticos, passando dos escritores a seus leitores, penetrasse, assim, em toda a massa de cidadãos e se apoderasse do espírito público, pode-se prever que logo paralisaria o movimento das sociedades novas e reduziria os cristãos a turcos. Direi mais: semelhante doutrina é particularmente perigosa na época em que nos encontramos; nossos contemporâneos acham-se muitíssimo inclinados a duvidar do livre arbítrio, porque cada um deles sente-se limitado por todos os lados pela sua fraqueza, mas ainda atribuem, de boa vontade, força e independência aos homens reunidos em corpo social. É necessário que nos guardemos de obscurecer essa ideia, pois se trata de restabelecer a dignidade das almas e não de completar a sua destruição”.

Mas se, por um lado, Tocqueville se insurge contra o historicismo, que torna o homem peça de uma engrenagem universal, por outro lado, a sua formação cristã o leva a aceitar a providência divina, não como “deus ex machina” que negue a liberdade, mas, justamente, como marco teórico que a pressupõe: o plano de Deus consiste em que os homens sejam livres, não em que se tornem escravos. O progresso e a liberdade não são caprichos humanos, mas formam parte do plano que Deus providencialmente traçou ao gênero humano. Lembramo-nos, aqui, da figura de outro liberal de formação católica, contemporâneo de Tocqueville: o historiador português Alexandre Herculano (1810-1877), cuja visão providencialista se aproxima muito da acalentada pelo pensador francês.

Françoise Mélonio [1993: 32] explica da seguinte forma o providencialismo tocquevilliano: “De entrada, o recurso à Providência aparece, de um lado, como uma ampliação retórica da derrota dos aristocratas ou um mito consolador. O avanço irresistível da democracia é, essencialmente, uma constatação histórica em grande escala e a Providência fornece o aspecto objetivo de uma lei à intuição que Tocqueville tem das tendências do corpo social. Ela é a palavra que designa aquilo que é revelado pelo espírito de finesse: aquilo que sentimos, que está diante dos olhos de todos mas que não sabemos demonstrar; aquilo que é patente ao juízo, mais do que à razão cognoscente. Invocar a Providência é, pois, explicar o que não é geometricamente demonstrável, mas não somente isso: é também escolher o que deve ser explicado. O espírito de finesse permite discernir, no espetáculo do mundo democrático em gestação, a verdade, afinal desvendada, da revelação cristã: o verdadeiro quadro da humanidade reduzido à simplicidade da natureza, na qual todos os homens são semelhantes. Invocar a Providência é, pois, buscar a interpretação dos acontecimentos humanos como um todo, sob o ângulo do universalismo cristão e tomar a decisão de resolver o dualismo entre a história e o seu fim, na liberdade igual de todos os filhos de Deus”.

“Assim concebido, – prossegue Françoise Mélonio – o recurso à Providência não dá à história um sentido obrigatório. A Providência traça, é verdade, ao redor de cada homem, um círculo fatal do qual não pode sair; mas, nos seus amplos limites, o homem é poderoso e livre; da mesma forma acontece com os povos (….). A igualdade e o poder do povo são irresistíveis, mas a história humana, aberta à possibilidade da liberdade, é o fruto de uma cooperação entre Deus e os homens. A afirmação da inexorabilidade do curso da história é, em virtude desse fato, continuamente corroída pela introdução de degraus e passos ao ponto de Tocqueville, este profeta famoso, somente utilizar o linguajar da predição para lembrar a sua recusa a um determinismo absoluto”.

A ideia providencialista em Tocqueville não é, pois, um dogma teológico que interfira na sua visão racional da política, colocando uma espécie de fim absoluto para a história. É um recurso epistémico que, de um lado, lhe permite delimitar a área de estudos da política e, de outro, lhe serve para tender uma ponte com a sua concepção ética, que pressupõe a mesma dignidade para todos os homens. A respeito do papel instrumental da ideia providencialista em Tocqueville, escreve Françoise Mélonio [1993: 33]: “O recurso à Providência não implica, pois, que a ciência política seja um ramo da teologia, da fenomenologia do espírito ou da história natural. Tendo afirmado no mesmo movimento a Providência e a liberdade, Tocqueville pode demarcar o campo da política e procurar ali uma racionalidade específica. A primeira Démocratie apresenta-se como uma inquirição do regime democrático”.

Outro aspecto que salta à vista na ciência política tocquevilliana é a influência que recebe da que poderíamos chamar de tendência orgânica dos estudos sociais, caraterística que era comum no final do século XVIII e início do século XIX. Françoise Mélonio [1993: 33] registrou essa influência da seguinte forma: “A prática de Tocqueville tinha um precedente: as pesquisas sociais, inauguradas no século XVIII, que conheceram a sua idade de ouro na primeira metade do século XIX. Elas tinham como objeto privilegiado o mal social. Tendo sido pensada a sociedade como um organismo, a sua doença implicava uma disfunção geral. Se interessar pelo pauperismo, pela criminalidade, pela prostituição, constituía o caminho para elaborar um diagnóstico acerca da sociedade, a fim de fixar uma terapêutica. A viagem de Tocqueville insere-se na grande corrente da pesquisa social, estatística e qualitativa (…)”.

A historiografia, a filosofia, a sociologia, a teoria da política comparada e das relações internacionais cultivadas por Aron, deram continuidade à nova ciência política proposta por Tocqueville. A meu ver, a disciplina mestra ao redor da qual Aron sistematiza toda a sua obra é a filosofia crítica da história. Dois pontos são fundamentais no panorama epistemológico aroniano: a rejeição ao dogmatismo e ao historicismo, de um lado, e, em segundo lugar, a fé inabalável na liberdade, a partir da qual o sociólogo e o cientista político traça as linhas mestras das futuras sociedades, tentando vislumbrar, nelas, o espaço para o livre desenvolvimento do homem.

No que tange ao primeiro ponto (a rejeição ao dogmatismo e ao historicismo), já a partir da época em que Aron deixa clara a sua opção em prol das sociedades livres do Ocidente, explicita a sua recusa aos determinismos. “Eu não acreditava na totalidade histórica, – frisa no seu depoimento na Universidade de Brasília – acreditava nos determinismos parciais mas não nas determinações do conjunto da sociedade, a partir das forças ou das relações de produção” [Aron, 1981: 66]. O pensador não duvida em rejeitar as três formas de que se reveste o dogmatismo em matéria de ciências sociais, hoje, a saber: a ilusão dos que imaginam uma ciência da sociedade ou da moral, a dos racionalistas que admitem que a razão prática determina a conduta individual e a vida coletiva e a dos pseudorrealistas que pretendem pautar o futuro pelo passado, sem perceberem que este é uma construção conceitual de seu próprio ceticismo e uma imagem de sua própria resignação [Aron, 1948: 324-325].

O determinismo e o historicismo, para Aron, são criações mentais dos que não conseguem encarar o risco da liberdade ou pretendem ignorar a finitude humana. A nossa existência oscila, dramaticamente, entre o legado que recebemos das gerações anteriores e os nossos condicionamentos ontológicos, ou seja, o conjunto de fatores que não podemos modificar e o que podemos pensar e decidir, no contexto das possibilidades com que o presente nos depara.

Eis a forma em que Aron desenha esse panorama dramático da nossa existência, destacando, ao mesmo tempo, a grandeza e a limitação humanas: “Posto que é, ao mesmo tempo, animal e espírito, o homem deve ser capaz de se sobrepor às fatalidades inferiores, a das paixões pela vontade, a do impulso cego pela consciência, a do pensamento indefinido pela decisão. Nesse sentido, a liberdade, em cada momento, coloca tudo em jogo e se afirma na ação em que o homem não se distingue mais de si mesmo. A liberdade, possível para a teoria, efetivada em e pela prática, não é jamais total. O passado do indivíduo delimita a margem na qual atua a iniciativa pessoal e a situação histórica fixa as possibilidades da ação política. Escolha e decisão não emergem do nada, podem estar submetidas às pulsões mais elementares, mas em todo caso são parcialmente determinadas, quando colocadas em face dos seus antecedentes. Somente o pensamento, a rigor, escaparia à explicação causal, na medida em que ele conformaria para si próprio a sua independência, ao verificar os seus julgamentos. Mas o saber é sempre superado, fadado como está à exploração dos objetos e sendo, por essência, inacabado. Ora, para que o homem estivesse totalmente de acordo consigo mesmo, seria necessário que vivesse segundo a verdade, que se reconhecesse autônomo, ao mesmo tempo, na sua criação e na consciência que ele tem dela. Reconciliação ideal mas incompatível com o destino dos que não admitem ídolos no lugar de Deus. A existência humana é dialética, ou seja, dramática, pois age num mundo incoerente, se engaja a despeito da duração, busca uma verdade que foge, sem outra segurança que uma ciência fragmentária e uma reflexão formal” [Aron, 1948: 349-350].

Se a nossa condição humana nos coloca nessa situação de dramaticidade, o saber sobre o homem deve-se revestir dessa caraterística paradoxal. Não pode haver um fosso entre as ciências do homem e a reflexão sobre a sua condição existencial. “(…) Mais uma vez – frisa Aron – deve ficar claro que filosofia e história, filosofia da história e filosofia total são inseparáveis. A filosofia, ela também, está de início na história, pois ela encontra-se fechada nos limites de um ser particular, ela é histórica posto que é a alma ou a expressão de uma época, ela é histórica posto que tem consciência de que se trata de uma criação inacabada. A filosofia é a pergunta radical que o homem, em busca da verdade, se faz a si mesmo” [Aron, 1948: 344]. A história, enquanto disciplina, não pode desconhecer esse caráter complexo do ser humano de que dá testemunho a filosofia. A história é, para Aron, “a dialética na qual essas contradições tornam-se criativas, o infinito no qual o homem reconhece a sua finitude” [Aron, 1948: 338].

A filosofia crítica da história deve renunciar a encontrar o sentido último da evolução. A crítica ao historicismo hegeliano é clara e retoma os reparos que Tocqueville tinha levantado contra a história que se escreve nos séculos democráticos. “A filosofia tradicional da história, – escreve Aron – encontra o seu acabamento no sistema de Hegel. A filosofia moderna da história começa pela rejeição ao hegelianismo. O ideal não é mais determinar, de um golpe, a significação do devir humano, a filosofia não se considera mais a depositária dos segredos da providência. A Crítica da razão pura acabava com a esperança de ter acesso à verdade do mundo inteligível; da mesma forma, a filosofia crítica da história renuncia a atingir o sentido último da evolução. A análise do conhecimento histórico é, em face da filosofia da história, o que a crítica kantiana é em face da metafísica dogmática” [Aron, 1950: 15].

No que tange ao segundo ponto, a fé inabalável na liberdade, Aron considera que o cientista social e o historiador devem partir, sempre, do pressuposto básico da civilização ocidental, o homem como ser consciente e livre [Aron, 1948: 346]. É interessante destacar que essa pressuposição está presente, no seio da filosofia de Ocidente, mesmo entre aqueles que levantam a sua voz contra a liberdade humana: não se nega com tanto afinco senão aquilo que é tão evidente para todos nós. A respeito, frisa Aron: “Por que se mantém com tanta energia essa permanência do homem, palavra que ganha, na boca dos incrédulos, uma ressonância solene e como que sagrada? Sem dúvida pretende-se salvar um dos elementos da herança cristã, fundamento da democracia moderna, o valor absoluto da alma, a presença em todos de uma razão idêntica. Ao mesmo tempo, espera-se desvalorizar as particularidades de classe, de nação e de raça, a fim de chegar a uma reconciliação total dos homens, em si mesmos e de uns para com os outros” [Aron, 1948: 343].

Em face ou dos pessimismos radicais que invadiram o século XX, ou do excesso de otimismo que fez enxergar uma idade de ouro à luz dos “30 gloriosos anos” do welfare state americano e europeu ocidental, Aron situa-se num termo meio de otimismo moderado: acredita na possibilidade de o homem construir um projeto que respeite a liberdade e a dignidade, conservando os progressos econômicos e técnicos feitos, sem por isso negar os riscos que pendem sobre a Humanidade. “Pessoalmente, e vocês não ficarão inteiramente surpresos, – frisa o pensador no seu depoimento na Universidade de Brasília – eu não estou de acordo nem com o otimismo de Hermann Kahn (1922-1983) nem com o pessimismo do Clube de Roma. Se eu tivesse um revólver na cabeça e fosse obrigado a escolher entre os dois, eu escolheria o otimismo de Hermann Kahn. Se é preciso escolher, prefiro a versão otimista à versão pessimista, e creio que é o mais provável, e creio ainda que é uma situação baseada em melhores argumentos. Dito isto, de qualquer maneira são perspectivas a longo prazo e, pessoalmente, eu tomaria uma posição intermediária: não advogo nem o happy end nem o paraíso econômico, e descarto neste instante a hipótese da catástrofe total, em função da penúria generalizada” [Aron, 1981: 79].

IV – A ética tocquevilliana e os seus reflexos no pensamento de Aron

Talvez Alexis de Tocqueville tenha sido um dos pensadores sociais e homens de ação que realizou, de forma mais completa, a dupla feição da ética estudada por Max Weber (ética de convicção e de responsabilidade) [cf. Weber, 1972]. O pensador francês, efetivamente, se ancorou tanto numa quanto noutra. Tocqueville cultua o ideal da ética de convicção quando reflete acerca do seu compromisso como intelectual, mas desenvolve, outrossim, interessante conceito de ética de responsabilidade em relação à problemática da busca do bem comum por parte do homem público, destacando-se, neste particular, o equacionamento da problemática da pobreza. Abordarei ambos os aspectos, para caracterizar as suas linhas gerais, destacando que os dois integram o conceito tocquevilliano de ética pública.

O pensador francês considerava que o seu primeiro compromisso como intelectual consistia no esclarecimento e na divulgação da verdade histórica, que conduzisse à conquista da liberdade para todos os franceses. Neste seu empenho não admitia negociação. Daí as suas fortes críticas aos socialistas, aos bonapartistas, aos seus pares, os nobres (que tinham ancorado numa proposta de volta ao Ancien Régime), e aos próprios doutrinários, seus mestres, que tinham fechado as conquistas liberais na gaiola de ouro do formalismo jurídico e do elitismo burguês. Destaquemos, de entrada, a forma toda peculiar em que Tocqueville entende a democracia, como conquista da liberdade por parte de todos.

Três pontos saltam à vista na ética intelectual tocquevilliana: em primeiro lugar, a fundamentação das suas convicções morais no Cristianismo, do qual o nosso autor tira o princípio fundamental de que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade e, portanto, podem aspirar aos benefícios da liberdade. Em segundo lugar, a solidariedade com os seus concidadãos, que correm perigo de cair nas mãos do despotismo, em lugar de conquistar a almejada liberdade. Em terceiro lugar, o dever de testemunhar a verdade histórica que o nosso autor descobriu na sua viagem à América. Essa verdade histórica resume-se na seguinte afirmação: a liberdade democrática é possível!

No tocante ao primeiro ponto, Tocqueville [1977: 329] escreve o seguinte: “Todos os grandes escritores da Antiguidade faziam parte da aristocracia dos senhores ou, pelo menos, viam essa aristocracia estabelecida, sem contestação, diante dos seus olhos; o seu espírito, depois de se haver expandido em várias direções, achou-se, pois, limitado por aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e iguais”.

Em relação ao segundo ponto, assim escrevia Tocqueville, em carta inédita a Camille d´Orglandes (1798-1871), de 24/11/1834): “Eu creio que cada um de nós deve prestar contas à sociedade, tanto dos seus pensamentos quanto das suas forças. Quando vemos os nossos semelhantes em perigo, é obrigação de cada um ir em socorro deles”. [Apud Mélonio, 1993: 30].

Em relação ao terceiro ponto, o dever de testemunhar a verdade histórica descoberta na América, Françoise Mélonio [1993: 30-31] escreve: “Tocqueville regressa, pois, da América, investido do dever de testemunhar. O primeiro volume da Démocratie, que publica em 1835, recebe desse objetivo apologético os traços que fazem dele o breviário da democracia moderna. A Démocratie é uma obra de auxílio ao povo em perigo (…). Ora, há urgência. Na Europa, os tempos se aproximam do triunfo da democracia. Tocqueville assume a postura de um São João Batista da democracia clamando no deserto: acordai antes que seja tarde demais!; o movimento democrático não é, ainda, suficientemente rápido como para desistir de dirigi-lo. A sorte [das nações europeias] está nas suas mãos, mas bem cedo lhes escapa. E que não se diga que é tarde demais para tentar. Contra os pregoeiros de desgraças, os resignados, Tocqueville faz um apelo aos franceses para que, sem delongas, tomem o seu destino nas próprias mãos, a exemplo da América. Como os profetas e os pregadores, (…) argumenta com os riscos que representa uma conversão tardia”.

Tocqueville elaborou a sua concepção de uma ética política, notadamente, ao discutir a problemática da pobreza na sociedade europeia da sua época. As suas reflexões a respeito estão contidas em dois escritos de 1835, intitulados: Memória sobre a pobreza e Segundo artigo sobre a pobreza, que foram redigidos para a Sociedade Acadêmica de Cherbourg e que integram os seus Escritos Acadêmicos. Na edição das Oeuvres de Tocqueville [primeiro volume, 1991], preparada por André Jardin (1912-1996), Françoise Mélonio e Lise Queffélec, outros dois ensaios de Tocqueville foram escolhidos: o Discurso à Academia Francesa, de 1842, sobre a história da França e o Discurso à Academia de Ciências morais e políticas, de 1852, sobre a ciência política. A finalidade desses Escritos Acadêmicos era, segundo aponta Françoise Mélonio [1991: I, 1626] discutir “como estruturar a sociedade moderna, aglutinando os cidadãos desunidos, que a hierarquia de privilégios do Antigo Regime não organizava mais”.

Tocqueville analisa a problemática da pobreza no contexto mais amplo da ciência social da época, inspirada na fisiologia social de Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq d’Azyr, Saint-Simon, etc. [cf. Rosanvallon, 1985: 22; Mélonio, 1993: 33 seg.; Vélez-Rodríguez, 1997c: 22-45]. É bem verdade que o nosso autor supera qualquer pretensão cientificista, deixando de render tributo, portanto, ao vício do historicismo. Mas utiliza o símil do corpo enfermo, para se referir à problemática social. Em relação ao mencionado fenômeno na Inglaterra, por exemplo, o nosso autor escreve: “(…) o pauperismo, esta enorme e horrível chaga em um corpo vigoroso e saudável” [Tocqueville, 1991: I, 1174].

Fiel ao arquétipo epistemológico mencionado, Tocqueville analisa a problemática da pobreza em três etapas: sintomatologia, tratamento errado e tratamento certo. Em relação à primeira etapa, o pensador francês destaca um fato paradoxal: essa doença somente é visível em organismos fortes. As nações que caminham rumo à modernidade, como a Inglaterra e a França, apresentam o contraste entre geração da riqueza e pobreza, contraste que não é visível onde a pobreza é a norma e a riqueza a exceção, como na Espanha ou em Portugal. O nosso autor dedica especial atenção ao estudo da doença na Inglaterra, país que conseguiu desenvolver os recursos econômicos de forma a permitir, à maioria dos seus cidadãos, a conquista de uma vida confortável e segura. Um sexto da população britânica, no sentir de Tocqueville, é marginalizada pela pobreza; mas justamente por estar a maioria dos cidadãos em situação de conforto econômico, a marginalização do proletário é mais visível entre os ingleses do que na própria França.

No que tange à França da sua época, Tocqueville destaca que acontece algo semelhante: percebe-se mais a pobreza ali onde houve maior desenvolvimento. A respeito, o nosso autor escreve: “A média dos indigentes na França (…) é de um pobre para vinte habitantes. Mas grandes diferenças são observáveis entre as diferentes partes do mesmo reino. O departamento du Nord, que é, com certeza, o mais rico, o mais populoso e o mais desenvolvido, sob todos os pontos de vista, tem cerca de um sexto de sua população como dependente da caridade. Em Creuse, o mais pobre e menos industrial de nossos departamentos, existe apenas um indigente para cada cinquenta e oito habitantes. Ainda de acordo com esta estatística, La Manche está listado como tendo um indigente para cada vinte e seis habitantes”. [Tocqueville, 1991: I, 1156].

Em relação à segunda etapa na discussão da problemática da pobreza (o tratamento errado da mesma), Tocqueville chama a atenção para a confusão que a cultura humana termina estabelecendo entre necessidades artificiais e essenciais. O nosso pensador considera que o progresso da civilização leva, também, a que a sociedade busque aliviar as necessidades dos que se sentem carentes. “O progresso da civilização – frisa a respeito [Tocqueville, 1991: I, 1164] – não apenas expõe os homens a muitas desgraças desconhecidas: ele também faz com que a sociedade amenize as misérias que são totalmente desconhecidas nas sociedades menos civilizadas. Em um país onde a maioria tem vestimentas ruins, habitações de má qualidade, pouco alimento, quem pensaria em dar roupas limpas, comida saudável e habitação confortável aos pobres? A maioria dos ingleses, tendo todas essas coisas, considera a ausência delas um problema terrível; a sociedade crê estar destinada a ajudar aqueles que não possuem tais confortos, e a curar os males que não são sequer reconhecidos como tais em outros lugares”.

Essa tendência encontrou expressão na Inglaterra, pela primeira vez, na lei de Elizabeth I (1533-1603) que dispunha a nomeação, em cada paróquia, de inspetores dos pobres (1601). Essa medida vinha responder à supressão, por Henrique VIII (1491-1547), de todas as comunidades dedicadas à caridade. Essa foi a remota origem da preocupação do governo inglês com a questão da pobreza, que nos países protestantes passou a ser responsabilidade do Estado, enquanto no universo católico, tradicionalmente, foi incumbência da caridade privada [Tocqueville, 1991: I, 1164-1165].

Tocqueville é claro na sua crítica à forma estatal da caridade: para ele, toda medida contra a pobreza, alicerçada numa estrutura burocrática permanente, produz a preguiça social. O nosso autor se antecipava, profeticamente, das dificuldades encontradas pelo Welfare State na erradicação da pobreza. Eis as palavras de Tocqueville em relação ao tópico em apreço: “Qualquer medida que estabeleça a caridade legal de forma permanente e lhe dá uma forma administrativa cria, com isto, uma classe ociosa e preguiçosa, que vive às custas da classe trabalhadora e industrial. Isso, pelo menos, é a consequência inevitável, senão o resultado imediato. Ela reproduz todos os vícios do sistema monástico, mas não os altos ideais de moralidade e religião, que em geral estavam associados a eles. Tal lei é uma semente ruim plantada no solo da estrutura legal. Assim como na América, as circunstâncias podem prevenir que a semente tenha um rápido desenvolvimento, mas não podem destrui-la, e se a geração atual escapar à sua influência, o bem-estar das gerações seguintes será devorado ” [Tocqueville 1991: I, 1170].

Tocqueville formula os elementos básicos do que poderíamos chamar de princípio da beneficência na ética pública, quando apresenta as suas soluções, na terceira etapa da discussão da problemática da pobreza. O nosso pensador parte da definição moral do princípio da beneficência. Esse princípio alicerça-se numa espécie de imperativo categórico: deve poder se aplicar universalmente e as suas consequências devem estar de acordo com a moral. Eis as suas palavras a respeito: “Obviamente não quero pôr em julgamento a beneficência, que é uma das virtudes mais naturais, belas e sagradas. Mas penso que não existe nenhum princípio, por melhor que seja, cujas consequências possam ser todas consideradas boas. Ela deveria ser uma virtude humana e sensata, não uma inclinação fraca e irresponsável. É necessário fazer o que for mais útil a quem recebe, e não o que mais agrada ao doador; fazer o que melhor atende às necessidades da maioria, e não o que é a salvação de poucos. Apenas desta forma posso conceber a benevolência. Qualquer outra forma seria a representação de um instinto ainda sublime, mas não mais me parece digna de receber o nome de virtude” [Tocqueville, 1991: I, 1177-1178].

O nosso pensador enxerga uma solução completa para a problemática da pobreza, diferente da caridade ou do simples assistencialismo. Trata-se da formulação, por parte do Estado, de uma política social que abarque três grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária dos camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo moderno pelo sistema produtivo.

No fundo da proposta tocquevilliana há três convicções de profunda fé liberal: em primeiro lugar, é possível, mediante uma inteligente legislação, criar os mecanismos institucionais que permitam corrigir os desvios do sistema produtivo, a fim de torná-lo mais justo, de acordo com o ideal democrático; em segundo lugar, a legislação deve atender à educação do homem, que é o meio adequado para lhe permitir desenvolver a sua inteligência; em terceiro lugar, a legislação deve-se voltar, também, para a democratização da propriedade, que é o meio através do qual os pobres podem recuperar a dignidade perdida, a sua liberdade, a fim de que se integrem, produtivamente, à sociedade moderna.

As duas dimensões da ética no pensamento de Alexis de Tocqueville, a intelectual e a política, embora tematizadas em contextos diferentes da sua obra, estão, contudo, profundamente relacionadas e são fruto, como já foi destacado anteriormente, da influência dos doutrinários na sua formação. Diríamos que o ideal da ética política, materializado no princípio da beneficência, torna-se possível unicamente mediante o cumprimento do imperativo da defesa incondicional da liberdade para todos. O nosso pensador, efetivamente, caracteriza o princípio da beneficência da seguinte forma: fazer o bem mais verdadeiramente útil àquele que o recebe, de forma que sirva ao bem-estar do maior número. Ora, no pensamento tocquevilliano, o bem mais radicalmente útil que se pode conceber para alguém, na sociedade, consiste na conquista da liberdade. O completo desenvolvimento do imperativo categórico da beneficência aponta, em última instância, para essa finalidade. Trata-se de fazer aos excluídos da sociedade da sua época, os proletários, o bem mais útil. Esse bem consiste, no pensamento do nosso autor, em dotá-los dos meios que lhes possibilitem reconquistar a dignidade perdida, alicerçada na liberdade. O proletário deve ser estimulado, nas empresas, a ter algum interesse material, assim como o homem do campo deve preservar as suas pequenas posses. Isso, basicamente, porque a partir daí eles poderão reconstruir o ideal de luta pela liberdade. O pensamento ético de Alexis de Tocqueville ancora, destarte, na mais pura tradição liberal de Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Jefferson (1743-1826) e dos Federalistas americanos.

A ética de Raymond Aron segue as pegadas da meditação tocquevilliana. A influência de Max Weber é reformulada, em Aron, à luz da leitura da obra de Tocqueville. Mas é clara, também, a influência do pensamento kantiano e de um hegelianismo mitigado. Rejeitado de plano o historicismo, fica claro, para o nosso autor, que não pode haver uma cisão entre ética intelectual e ética política. O imperativo categórico que regula a ação individual no terreno do conhecimento científico da sociedade, acontece num ser histórico inserido numa época determinada, e deve ter relação estreita com os imperativos morais da ação. Para Aron, a ética intelectual deve iluminar a política, a fim de torná-la reta. De outro lado, a prudência do político deve estar presente, também, no homem que pensa. Tanto o conhecimento do homem de ciência quanto o do homem político são probabilísticos. Não há certezas absolutas, nem na ciência da sociedade, nem na ação que pretende transformar esta última. Aron adere ao princípio popperiano da refutabilidade, para fundamentar a certeza em ciência social. Considera que, no homem concreto, não se pode cindir, do ângulo existencial, o pensar a sociedade e o agir sobre ela. A separação weberiana entre o político e o científico, decorre, no sentir de Aron, da índole abstrata e puramente formal em que o sociólogo alemão pensa os seus tipos ideais. Mas faltou-lhe considerá-los inseridos na concreção do mundo da vida. É o que o pensador francês tenta fazer, ao pensar a ciência social e a política, do ângulo dos seus atores, o cientista e o político, encarnados na mesma pessoa [cf. Aron, 1985: 696 seg.].

Mahoney destacou a relação estreita que há entre ciência e política no pensamento aroniano, da seguinte forma: “O probabilismo pretende encorajar uma sadia concepção do mundo político e social e da ação refletida e responsável. Aron busca restaurar os laços entre pensamento e ação, ciência e política, quebrados por Max Weber e a sociologia moderna. Para Aron, o pensamento e a ciência devem guiar e influenciar a ação responsável, não esvaziando a indeterminação do mundo, tarefa digna de Sísifo, mas enxergando não de outra forma, porém mais longe do que os partidos. O cientista encoraja a análise responsável, ou seja, probabilista, da escolha política. Ele deve compreender as coisas tais como são: essa é a finalidade da ciência. Os julgamentos de valor são, pois, um elemento intrínseco de uma compreensão autêntica da política. Para compreender bem um fenômeno social como o despotismo, é necessário chamá-lo pelo seu nome. Uma compreensão autêntica é impossível, se negarmos que os valores se transformam em fatos e que os fatos são inteligíveis sem julgamentos de valor” [Mahoney, 1998: 148].

V – Estrutura e conteúdo de A Democracia na América

O principal trabalho de Tocqueville constituiu, inicialmente, duas obras, as chamadas, popularmente, Primeira e Segunda Democracia. A primeira foi editada em 1835, em dois volumes. A segunda apareceu em 1839, em 4 volumes. A Primeira Democracia constituiu mais uma descrição do que o nosso autor observou na América. Já na Segunda Democracia encontramos uma dimensão mais abstrata. Conforme salientou Pierre Larousse (1817-1875) [1865b], “A obra de Tocqueville sobre a democracia americana se divide, quanto ao fundo, em duas partes: na primeira, vê-se um observador que analisa; na segunda, um pensador que medita e julga”.

A elaboração da obra foi complexa, não tendo se limitado o seu autor à reprodução das notas de viagem. Profunda meditação sobre os materiais coletados, bem como sobre as relações entre os sistemas políticos americano e francês, precederam à escrita de La Démocratie. Estudioso do caminho percorrido por Tocqueville na elaboração dessa obra, James T. Schleifer (1942) escreve: “A primeira viagem de Alexis de Tocqueville à América do Norte concluiu em 20 de fevereiro de 1832, data em que o navio Le Havre partiu de Nova York rumo à França. Mas a sua visita de nove meses tinha sido somente o prólogo de uma segunda viagem, que se estenderia pelos oito anos seguintes: a composição de A democracia na América (…). Há tempo os intelectuais perceberam o fato de que os ingredientes que compõem A democracia são muitos e variados. Alguma coisa deve o livro ao ambiente em que se movimentava Tocqueville, particularmente ao panorama intelectual e político da França de começo do século XIX. A obra revela os estigmas da juventude e a educação do autor. Baseia-se nas intensas experiências de primeira mão, que ele e Gustave de Beaumont (1802-1866) tiveram dos Estados Unidos e do presidente Andrew Jackson (1767-1845). Responde, também, às cartas e ensaios de amizades norte-americanas e europeias que lhe ajudaram; a uma longa lista de materiais impressos; às opiniões e críticas de parentes e amigos, que leram os primeiros rascunhos; às suas experiências na França durante a redação de A democracia; responde, por último, às suas crenças, dúvidas e ambições pessoais. No entanto, a narração da elaboração do livro exige uma reavaliação geral dessas fontes e, ao mesmo tempo, coloca questões mais específicas. Quando e em que medida determinados homens, livros ou acontecimentos afetaram A democracia? As leituras de Tocqueville e as suas conversas acerca dos diferentes temas, eram adequadas? Como conciliava ele opiniões e informações contraditórias? Quais as fontes que, em última instância, eram as mais importantes? Revelam os rascunhos ou manuscritos de trabalho algumas raízes novas não suspeitadas?”. [Schleifer, 1980: 15-16].

Embora não se possa negar essa complexidade, é possível ter uma ideia geral da obra. O fato que mais impressionou a Tocqueville no seu primeiro contato com a América foi, sem dúvida, a igualdade da sociedade americana, mas, ao mesmo tempo, o nosso autor descobriu que se tratava de uma democracia alicerçada na defesa da liberdade. Depois de ter salientado as principais características físicas da América do Norte, Tocqueville passou a identificar as populações que, fugindo das perseguições religiosas na Europa, vieram para a América a fim de tentar uma nova forma de convívio religioso e político. A essa busca veio somar-se, no sentir do nosso autor, a igualdade civil e política, garantida pela divisão da terra desde o período colonial. Foram fatores que concorreram à prosperidade das Colônias anglo-americanas e que se somaram a outras variáveis: os costumes puritanos, a poupança, fruto do espírito de trabalho, bem como um certo desleixo da Metrópole que, já adiantado o século XVIII, terminaria sendo decisivo para o momento independentista [cf. Larousse, 1865a; 1865b; Friedman, 1956; Jardin, 1984; 1991; Mélonio, 1993].

A prática política e administrativa das Colônias anglo-americanas terminou consagrando alguns princípios que eram, em geral, desconhecidos dos países europeus, como a participação direta do povo nos negócios públicos, notadamente nas comunas, o voto livre dos impostos, a responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade individual e o julgamento pelo júri. Tocqueville destacou, no seu estudo, que, enquanto a liberdade se desenvolvia na ordem civil e política na América, a religião presidia no terreno moral, fundando os direitos sobre a base firme dos deveres, eticamente justificados.

Depois de o nosso autor ter assinalado, de forma bastante detalhada, os efeitos sociais da igual partilha da propriedade nas sucessões, passou a analisar a maneira em que, paralelamente, a inteligência, também, estava mais ou menos distribuída de forma equilibrada. Não encontrou Tocqueville, na América, grandes individualidades que brilhassem pela sua inteligência, como na Europa, mas constatou que o bom senso e um nível básico de instrução estavam democraticamente distribuídos na população do vasto país. Nos Estados Unidos, destacava ele, a soberania do povo domina e, ainda, governa – e ela se exerce pelo sufrágio universal.

A União americana, destacava o nosso autor, compõe-se de Estados, cada um dos quais se divide em comunas e condados. No seu entender, a comuna parecia surgida das mãos de Deus, como primeiro refúgio da liberdade e não dependia senão dela própria, em tudo que se relacionasse ao convívio dos cidadãos. A comuna era enxergada, por Tocqueville, como um foco de febril atividade social e de sadia emulação. O condado, por sua vez, seria o equivalente do arrondissement francês; caracteriza-se porque é puramente administrativo e judiciário, não é eletivo e pauta juridicamente a ação das comunas. O governo americano, considerava o nosso autor, age como a Providência, sem se revelar. O poder é, sem dúvida, o auxiliar da lei; mas o soberano é a lei mesma.

Sendo o poder respeitado no seu princípio, justamente pelo fato de ser enxergado não como sobranceiro à sociedade, mas como o seu instrumento, ele não era concebido pelos anglo-americanos como algo que devesse se concentrar numa única mão, à maneira do absolutismo europeu, mas como uma instância que deveria ser dividida, a fim de que a sua ação se mitigasse. Tocqueville apontava, surpreendido, para o fato de não existir, na América, nenhum centro geral da administração. O que não significava que as decisões tomadas pelos poderes legitimamente constituídos fossem fracas. Em nenhuma outra parte do mundo, considerava Tocqueville, a ação governamental é mais poderosa, justamente porque brota do consenso da maioria. O nosso autor não deixava de apontar para o risco da tirania da maioria, à qual essa prática anglo-americana poderia dar ensejo.

De outro lado, Tocqueville observava que o poder judiciário ocupa um lugar de destaque na sociedade americana. A sua influência estende-se da ordem civil à política. Aos atributos que, em todas as partes, caracterizam a ação da Justiça, juntava-se, na América, o de exercer um controle indireto sobre os outros poderes, alicerçado na interpretação da Constituição, mais do que das leis, mas somente em casos particulares.

Depois de ter exposto a organização civil, jurídica e política do Estado, Tocqueville passava a examinar a Constituição Federal da União. O nosso autor achava interessante se adentrar no espírito que animava essa Carta, bem como nas relações das instituições políticas federais. A unidade política reside nas atribuições soberanas assinaladas à União. A unidade judiciária é constituída por uma corte suprema que interpreta as leis e que faz o papel de mediadora nos conflitos entre os Estados; o princípio da independência dos Estados é representado pelo Senado; a Assembleia dos representantes encarna o dogma da soberania nacional. Ao poder legislativo, o Senado junta o poder judiciário e político. Já o poder executivo é vigiado, mas não dirigido, pelo Senado e personifica-se no Presidente, a fim de que a sua responsabilidade seja mais completa. O primeiro mandatário está munido com o poder do veto suspensivo.

A prática, aceita pela Constituição americana, da reeleição do Presidente, coloca-o, no sentir de Tocqueville, a serviço do despotismo da maioria. O único motor de todo esse mecanismo é o povo. Sob o império da organização comunal, do sufrágio universal e do tribunal do júri, o povo se administra a si mesmo, na América, faz e aplica as leis. Os partidos que, nos sufrágios, fossem relegados à categoria de minoria política, renunciam à prática da violência e assumem o compromisso de tentar vencer os seus adversários, mediante a persuasão e a prática parlamentar. O nosso autor assinalava dois caminhos que permitiam, ao povo americano, se movimentar e se agitar: a liberdade de imprensa e o espírito de associação. Mas é a liberdade de associação que parece ser o princípio vital: ela se aplica a tudo, desde as decisões mais comezinhas da vida civil, até aos atos mais importantes da soberania nacional. O nosso autor chamava a atenção para o fato de que a mutabilidade da administração e da legislação eram consequência do governo eletivo.

O princípio do mandato imperativo, adotado nos Estados Unidos, parecia a Tocqueville estimular o despotismo da maioria, mal que o autor apontava como ameaça para o futuro da liberdade americana. Esse despotismo, no sentir dele, corre o risco de instaurar o reino da mediocridade e paralisar os espíritos. Nem o dramaturgo Molière (1622-1673) nem o moralista Jean de La Bruyère (1645-1696) poderiam pensar e escrever livremente acerca do ridículo dos políticos ou dos vícios do povo americano, caso fossem cidadãos dos Estados Unidos. Esse despotismo, contudo, aponta Tocqueville, é temperado pelos costumes em geral, pela divisão do poder, pela ausência de qualquer centralização administrativa, pela influência dos advogados, bem como pela ação do tribunal do júri. O nosso autor se perguntava se as leis e os costumes políticos imperantes na América, seriam suficientes para manter vivas as instituições democráticas, em qualquer outro lugar do planeta. Responde afirmativamente.

Tocqueville traçava um quadro bem dramático do relacionamento entre os três grupos raciais presentes na América: os índios, os negros e os brancos. Em relação aos índios, destacava, com perplexidade, que, justamente no país em que a liberdade dos cidadãos fez mais progressos, “os selvagens da América do Norte só tinham dois meios de escapar à destruição: a guerra ou a civilização”. Já que os aborígines não podiam fazer a guerra, em decorrência da sua evidente inferioridade numérica e técnica, Tocqueville analisava esta paradoxal questão: “por que não desejam civilizar-se, quando o poderiam fazer, e não mais o podem quando chegam a desejá-lo?”. O nosso pensador desenhava, com cores sombrias, outrossim, o futuro da problemática do negro. De forma irônica, numa sociedade em que tinha se realizado o ideal da igualdade, “o preconceito dos brancos contra os negros parece tornar-se mais forte à medida que se destrói a escravidão”. E, numa espécie de premonição acerca do futuro das relações internacionais no século XX, previa que russos e americanos elevar-se-iam até o primeiro lugar no contexto de todas as nações, pois um desígnio secreto da Providência os chamava a partilhar, um dia, o império do mundo.

Logo após ter estudado a influência geral que a democracia tinha sobre o desenvolvimento intelectual, moral, civil e político da sociedade americana, em face das outras sociedades da época, e após ter identificado as virtudes e os vícios da mesma, o nosso autor passava à conclusão do seu estudo. O individualismo, solidamente alicerçado na prática do livre exame, converteu-se em traço marcante da sociedade americana. No entanto, essa caraterística foi mitigada pelo influência da religião, que se estruturou separada da ordem política. As grandes verdades morais, destarte, conservaram o seu salutar império.

Porém, Tocqueville apontava, na sua conclusão, um paradoxo: a sociedade americana professava, paralelamente, um grande amor ao conforto e ao bem-estar material. Esse confronto entre religião e materialismo talvez se encontre solucionado graças à mediação, na sociedade americana, da ética do trabalho. O trabalho produtivo, quaisquer que fossem as condições em que era praticado, tinha alta relevância social. Na América, destacava o nosso autor, a indústria e o comércio predominam sobre a agricultura. Emerge daí uma aristocracia manufatureira que não chegaria, contudo, a ter a independência das antigas aristocracias de origem nobre, mas que possui grande destaque na opinião pública, em virtude do fato de contribuir, de forma definitiva, ao acréscimo da riqueza do país. No que tange à organização familiar, impressionava ao nosso autor o fato de que a tutela paterna, nos Estados Unidos, fosse abandonada facilmente. As crianças são, do ponto de vista social, quase iguais aos pais. Não se observam, na sociedade americana, esses traços de acentuado paternalismo do chefe de família, que se encontravam nas sociedades europeias do século XIX. Inferior na sociedade, a mulher, nos Estados Unidos, é elevada ao nível do homem, na intimidade. A noção de honra está, de outro lado, em franca decadência. O amor ao lucro sobrepõe-se ao espírito militar.

Diante dos graves problemas da democracia apontados na obra, Tocqueville não escondia as contradições presentes na sociedade americana. A mais importante delas, já mencionada, o risco do despotismo da maioria. Esse perigo era tanto menos forte, na América, quanto grande era, nessa sociedade, a tradição de defesa da liberdade. O nosso autor, evidentemente, chamava a atenção para o fato de tal risco ser maior numa sociedade que se esqueceu de lutar, ardentemente, pela liberdade, como a francesa do período da monarquia de Luís Filipe (1773-1850).

Na chamada Segunda Democracia, Tocqueville debruçava-se sobre aspectos mais abstratos. Quatro grandes problemas chamaram a atenção do nosso autor: em primeiro lugar, a influência da democracia sobre o movimento intelectual, nos Estados Unidos [Tocqueville, 1977: 321-382]. Em segundo lugar, a influência da democracia sobre os sentimentos dos americanos [Tocqueville, 1977: 383-426]. Em terceiro lugar, a influência da democracia sobre os costumes propriamente ditos [Tocqueville, 1977: 427-510] e, por último, a influência que as ideias e os sentimentos democráticos exercem sobre a sociedade política [Tocqueville, 1977: 5121-542]. No último item desta exposição, quando tratar acerca dos problemas da democracia segundo Tocqueville, será ampliado este ponto.

Aron debruçou-se, com dedicação, sobre a obra de Tocqueville, tendo-a estudado em Les étapes de la pensée sociologique. Não há dúvida, segundo Aron, de que os dois principais escritos tocquevillianos são a Démocratie en Amérique, bem como L’Ancien Régime et la Révolution. Se no primeiro encontramos desenhada, de forma completa, a arquitetura do que seria o edifício democrático dos tempos modernos, no segundo Aron descobre a crítica mais sistemática de Tocqueville às deformações sofridas, na França, pelo ideal democrático.

No que tange à Démocratie en Amérique, Aron centra a sua análise no método sociológico utilizado pelo autor. Tocqueville é, sem dúvida, em matéria de sociologia, discípulo de Montesquieu. Utiliza, como seu inspirador, dois métodos sociológicos: um, descritivo, que lhe permite identificar o espírito da nação americana nas suas várias manifestações; outro, analítico e conceitual, com ajuda do qual aprofunda no problema da democracia nas sociedades modernas. “Há em Tocqueville, – frisa Aron – como em Montesquieu, dois métodos sociológicos, sendo que um leva ao retrato de uma coletividade singular e o outro coloca o problema histórico abstrato de um certo tipo de sociedade” [Aron, 2000:214].

A utilização desses dois métodos sociológicos teve, para Tocqueville, um duplo resultado: em primeiro lugar, colocou-o entre os autores clássicos (Aristóteles e Montesquieu, por exemplo), que misturam as suas análises das várias formações sociais, com juízos de valor sobre as mesmas, conferindo, ao estilo da ciência social, uma abrangência genérica mais do gosto do grande público; em segundo lugar, ficou por fora da assepsia sociológica da tradição francesa, iniciada por Comte (1798-1857) e Durkheim (1858-1917), que impede, a qualquer preço, a formulação de juízos de valor. Apesar disso, ou talvez mesmo por causa da sua ousadia, a análise tocquevilliana conserva a sua atualidade, se colocarmos o nosso autor em face de dois grandes pensadores sociais do século XIX: Marx (1818-1883) e Comte.

A propósito deste ponto, escreve Aron, destacando a sua preferência por Tocqueville: “Na visão sociológica de Tocqueville, as desigualdades de riqueza, por maiores que sejam, nunca contradizem a igualdade fundamental das condições, característica das sociedades modernas. É verdade que, numa determinada passagem, Tocqueville indica que, na sociedade democrática, voltará a se constituir uma aristocracia, por meio dos líderes industriais. No conjunto, porém, não acredita que a indústria moderna leve a uma aristocracia. Prefere pensar que as desigualdades de riqueza tenderão a se atenuar à medida que as sociedades modernas se tornem mais democráticas. Crê, sobretudo, que as fortunas industriais e mercantis são muito precárias para originar uma estrutura hierárquica durável. Em outras palavras, ao contrário da visão catastrófica e apocalíptica do desenvolvimento do capitalismo, própria do pensamento de Marx, Tocqueville sustentava, desde 1835, a teoria semi-entusiástica, semi-resignada, mais resignada do que entusiástica, do welfare state, ou do aburguesamento generalizado”.

“É interessante – conclui Aron – confrontar essas três visões, a de Comte, a de Marx e a de Tocqueville. Uma era a visão organizadora daqueles que hoje chamamos de tecnocratas; a outra, a visão apocalíptica dos que, ontem, eram revolucionários; a terceira, a visão mitigada de uma sociedade em que cada um possui alguma coisa, e em que todos, ou quase todos, estão interessados na conservação da ordem social. Pessoalmente, creio que, dessas três visões, a que mais se aproxima das sociedades europeias ocidentais dos anos sessenta, é a de Tocqueville. Para ser justo, é preciso acrescentar que a sociedade europeia dos anos trinta tinha uma tendência a se aproximar da visão de Marx. Resta em aberto, portanto, a questão de saber qual das três visões se parecerá mais com a sociedade européia dos anos noventa” [Aron, 2000: 206-207].

VI – Despotismo e democracia na França, segundo Tocqueville e Aron .

L’Ancien Régime et la Révolution corresponde, na agitada vida intelectual de Tocqueville, à obra da maturidade. A sua elaboração foi, no espírito do nosso autor, um bálsamo para as feridas morais causadas pela atividade política. Tocqueville opôs-se, decididamente, ao golpe de estado desfechado pelo presidente Luís Napoleão (1808-1873), em 2 de dezembro de 1851. Junto com outros membros ilustres da Câmara dos Deputados, foi preso e conduzido, já doente, a Vincennes. Tão grande foi o desagrado que causou a Tocqueville esse atentado do absolutismo que, como frisa André Jardin [1988: 369] “(…) jamais perdoou ao seu autor a afronta feita à representação nacional e a perda das liberdades públicas”.

Assim exprimia Tocqueville o seu repúdio à aventura militarista, em carta dirigida a um conterrâneo seu, em 14 de dezembro de 1851: “O que acaba de acontecer em Paris é abominável, no fundo e na forma, e quando se conheçam os detalhes, parecerão ainda mais cruéis que todo o acontecimento. Quanto a este, já se encontrava em germe desde a revolução de fevereiro, como o pintinho no ovo; para fazê-lo sair, não faltava mais do que o tempo necessário de incubação. A partir do momento em que se viu aparecer o socialismo, devia ter-se previsto o reino dos militares. Um geraria o outro. Eu esperava isso há algum tempo e, embora sinta muita pena e dor pelo nosso país, e uma grande indignação contra certas violências ou baixarias, que vão além do aceitável, estou pouco surpreendido ou perturbado interiormente. (…). Neste momento, a nação está com medo louco dos socialistas e deseja, ardentemente, voltar a encontrar o bem-estar; é incapaz, digo-o com pena, e indigna de ser livre. (…). É necessário que a nação, que tem esquecido desde há 34 anos o que é o despotismo burocrático e militar (…) o prove de novo e, desta vez, sem o ornato da grandeza e da glória” [apud Jardim, 1988: 369].

Tendo abandonado a vida pública, segundo escreve André Jardin [1988: 389; 1984: 460], Tocqueville “encontra, na preparação ativa da obra projetada, o melhor remédio para a profunda tristeza que o invadia e, muito rapidamente, entrega-se a essa tarefa com paixão”. A defesa da liberdade, ameaçada pelo binômio despótico socialismo/militarismo, eis o verdadeiro motivo que levou Tocqueville a essa apaixonada luta. Motivo, aliás, que está presente na sua restante obra. Eis um testemunho claro dessa ampla motivação liberal, no prólogo de L’Ancien Régime [Tocqueville, 1988a: 93-95; 1989: 46-47]: “Alguns hão de acusar-me de mostrar, neste livro, um gosto muito intempestivo pela liberdade, a qual, segundo me dizem, é algo com que ninguém mais se preocupa na França. Só pedirei àqueles que me fariam esta censura, lembrar-se que esta tendência é muito antiga em mim. Há mais de vinte anos, falando de uma outra sociedade, escrevia quase textualmente o que vão ler aqui”.

“No meio das trevas do futuro, continua Tocqueville, já podemos descobrir três verdades muito claras. A primeira é que, em nossos dias, os homens estão sendo levados por uma força desconhecida, que temos a esperança de poder regular e abrandar, mas não de vencer, e que os impele suave ou violentamente a destruir a aristocracia. A segunda é que, em todas as sociedades do mundo, aquelas que sempre encontrarão as maiores dificuldades para escapar, por muito tempo, ao governo absoluto, serão precisamente estas sociedades onde não há mais e não pode haver uma aristocracia. A terceira é que em nenhum lugar o despotismo poderá produzir efeitos mais nocivos do que neste tipo de sociedade, porque mais do que qualquer outra espécie de governo, ele favorece o desenvolvimento de todos os vícios, aos quais estas sociedades são especialmente sujeitas, e assim as empurra em uma direção à qual uma inclinação natural já as fazia pender”.

“Só a liberdade – conclui o nosso autor – pode combater, eficientemente, nesta espécie de sociedades, os vícios que lhes são inerentes e pará-las no declive por onde deslizam. Com efeito, só a liberdade pode tirar os cidadãos do isolamento no qual a própria independência de sua condição os faz viver, para obrigá-los a aproximar-se uns dos outros, animando-os e reunindo-os, cada dia, pela necessidade de entender-se e de agradar-se mutuamente, na prática de negócios comuns. Só a liberdade é capaz de arrancá-los ao culto do dinheiro e aos pequenos aborrecimentos cotidianos (…), para que percebam e sintam sem cessar a pátria, acima e ao lado deles. Só a liberdade substitui, vez por outra, o amor ao bem-estar por paixões mais enérgicas e elevadas, fornece à ambição objetivos maiores que a aquisição das riquezas e cria a luz, que permite enxergar os vícios e as virtudes dos homens. (…). Eis o que eu pensava e dizia há vinte anos. Tenho de confessar que, desde então, nada aconteceu no mundo que me levasse a pensar e falar diferentemente. Tendo demonstrado a boa opinião que eu tinha da liberdade, num tempo em que alcançou o apogeu, não acharão ruim que nela eu persista quando a abandonam”. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma profissão de fé liberal, que constitui o ponto de partida de toda a obra tocquevilliana.  O período de maturação de L’Ancien Régime et la Révolution foi longo. Encontramos, aliás, um paralelismo muito significativo no processo de elaboração das duas grandes obras de Tocqueville. La Démocratie en Amérique foi precedida de longas reflexões que se estenderam de 1825 a 1835 e que, após a viagem de nove meses à América, tornaram-se mais sistemáticas. Em relação a L’Ancien Régime, Tocqueville pensou nos temas centrais da obra entre 1836 e 1850; neste último ano, ele amadureceu o projeto. Esses longos períodos de meditação prévia guiaram-no na elaboração do trabalho. Foram o momento de acúmulo de experiências e de conhecimentos sobre os quais o nosso autor se debruçou, para dar forma acabada às suas obras [cf. Jardim, 1984: 456-457].

O plano detalhado de L’Ancien Régime et la Révolution foi elaborado em dezembro de 1850, em Sorrento, na Itália, onde Tocqueville permaneceu até março de 1851, se recuperando de uma crise de tuberculose, doença que lhe causaria a morte anos mais tarde, em 1859. Ao longo de 1852, o nosso autor começou o seu trabalho de busca e organização de documentos, tendo realizado, também, uma enquete na Normandia. O trabalho de documentação continuou em 1853 em Tours, onde o nosso autor estudou os Arquivos da Intendência relativos ao século XVIII. Em 1854, entre os meses de julho e setembro, Tocqueville viajou à Alemanha, onde, em Bonn principalmente, estudou as características do feudalismo. Ao longo de 1855, o autor deu forma final à obra, que apareceu publicada, em junho de 1856, pelo editor Michel Levy, de Paris.

Frisei atrás que o período de maturação de L’Ancien Régime foi longo. Efetivamente, já em 1836, encontramos Tocqueville preocupado com os temas básicos da obra, conforme revela o artigo que publicou, a pedido de John Stuart Mill (1806-1873), na London and Westminster Review, sob o título de Political and social condition of France, que constituiu o primeiro trabalho de Tocqueville como historiador da França, e que foi, posteriormente, publicado em francês sob o título de État social et politique de la France avant et depuis 1789 [Tocqueville, 1988b; cf. Mélonio, 1988: 11].

Qual foi o método seguido pelo nosso autor em L’Ancien Régime? Poderíamos caracterizá-lo como de gênese histórica. As nações, como os organismos, possuem uma espécie de código genético que as caracteriza. Mesmo que aconteçam grandes movimentos revolucionários, não se perde a identidade primordial. As mudanças e as revoluções acontecem essencialmente vinculadas a essa identidade. Por isso, para entender a França de 1789, a França revolucionária, era necessário, no sentir de Tocqueville, interrogar a França do Antigo Regime. Ao estudar a França revolucionária, Tocqueville escreve, no Prefácio de L’Ancien Régime [1988a: 87-88; 1989: 43]: “Eu tinha a convicção de que, sem sabê-lo, (os franceses) retiveram do antigo regime a melhor parte dos sentimentos, dos hábitos e das próprias idéias que os levaram a conduzir a Revolução que o destruiu e que, sem querer, serviram-se de seus destroços para construir o edifício da nova sociedade. De modo que, para bem compreender tanto a Revolução como sua obra, era preciso esquecer, por um momento, a França que vemos e interrogar, no seu túmulo, a França que não existe mais. É o que tenho tentado fazer aqui”.

Essa ideia aparece clara em outros lugares do Prefácio, como, por exemplo, aqui: “À medida que progredia neste estudo, admirava-me ao rever, em todos os momentos da França dessa época, muitos traços que impressionam na França de hoje. Reencontrava um sem-número de sentimentos, que pensava nascidos da Revolução, um sem-número de ideias, que até então achava oriundas exclusivamente dela, mil hábitos que só a ela são atribuídos, e por toda parte encontrava as raízes da sociedade atual profundamente implantada nesse velho solo. Quanto mais me aproximava de 1789, percebia, mais distintamente, o espírito que fez a Revolução formar-se, nascer e crescer. Via, pouco a pouco, desvendar-se, aos meus olhos, toda a fisionomia desta Revolução. Já anunciava seu temperamento, seu gênio: era ela própria. Lá não só descobria a razão do que ia fazer no seu primeiro esforço, mas talvez, ainda mais, o anúncio do que devia fundar com o tempo”. [Tocqueville, 1988a: 90; 1989: 44].

Um pouco mais adiante, o nosso autor afirma: “(…) a Revolução teve duas fases bem distintas: a primeira, durante a qual os franceses parecem abolir tudo que pertenceu ao passado; e a segunda, onde nele vão retomar uma parte do que nele deixaram. Há um grande número de leis e hábitos políticos do antigo regime que desapareceram assim, repentinamente, em 1789, e que aparecem novamente alguns anos mais tarde, como certos rios que se afundam na terra para reaparecer um pouco mais adiante, mostrando as mesmas águas a novas margens” [Tocqueville, 1988a: 90; 1989: 44].

O modelo teórico que inspirou L’Ancien Régime foi a obra de Montesquieu intitulada: Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence. Em relação a este ponto, André Jardin [1984: 460] escreve: “(…) Montesquieu tinha uma tarefa mais cômoda, ao trabalhar sobre uma história longínqua, livre de todos os fatos secundários, enquanto, para uma época recente, e um período de dez anos, os fatos determinantes ficam atrelados aos detalhes”. Ainda segundo Jardim [1984: ibid.], Tocqueville pretendia realizar, na sua obra, “(…) um misto de história e de filosofia da história, intimamente ligadas”.

A obra divide-se, nitidamente, em três grandes partes: a) essência, finalidade e efeitos da Revolução Francesa; b) raízes da Revolução Francesa no Antigo Regime; c) como se desenvolveu o processo revolucionário. Qual foi o fenômeno fundamental observado por Tocqueville na vida política da sociedade francesa da segunda parte do século XVIII? Sem dúvida alguma que esse fenômeno consistiu na centralização. O nosso autor não deixa de constatar essa descoberta com surpresa: “(…) Um estrangeiro – escreve [Tocqueville, 1988a: 89] – ao qual fossem liberadas hoje todas as correspondências confidenciais que estavam contidas nos bilhetes do ministério do interior e das prefeituras, saberia muito mais sobre nós do que nós mesmos. No século XVIII, a administração pública já era (…) muito centralizada, muito poderosa, prodigiosamente ativa. Vê-la-íamos ajudar sem cessar, impedir, permitir. Ela tinha muito para prometer e muito para dar. Ela influenciava já de mil maneiras, não somente no andamento geral dos negócios, mas também na sorte das famílias e na vida privada de cada homem. De resto, ela permanecia sem publicidade, o que fazia com que as pessoas não tivessem medo de vir a expor, aos seus olhos, até as doenças mais secretas”.

O que mais incomodava ao nosso autor era o efeito político que o centralismo terminara causando na sociedade francesa: o despotismo. O centralismo tirava da sociedade a sua iniciativa e a transformava em eterno menor de idade perante o Estado todo-poderoso. O grande mal causado à França pelo centralismo era antigo, no sentir de Tocqueville. A substituição paulatina do velho direito consuetudinário germânico pelo direito romano, situava-se nas origens de todos os males e era como que a fonte jurídica do processo centralizador que se alastrou, depois, a todos os aspectos da vida social. O despotismo é, na sua essência, centralizador. Acaba com as solidariedades locais e torna insensíveis os cidadãos às comuns desgraças e necessidades. O nosso autor descreve, de forma detalhada, o efeito deletério do despotismo, naquelas sociedades que, como a francesa, foram niveladas pelo centralismo avassalador do rei e dos seus intendentes.

A propósito, escreve [Tocqueville, 1988a: 93-94; 1989: 46-47]: “Não havendo mais entre os homens nenhum laço de castas, classes, corporações, família, ficam por demais propensos a só se preocuparem com os seus interesses particulares, a só pensar neles próprios e a refugiar-se num estreito individualismo, que abafa qualquer virtude cívica. Longe de lutar contra esta tendência, o despotismo acaba tornando-a irresistível, pois tira aos cidadãos qualquer paixão comum, qualquer necessidade mútua, qualquer vontade de um entendimento comum, qualquer oportunidade de ações em conjunto, enclausurando-os, por assim dizer, na vida privada. Já tinham a tendência a separar-se: ele os isola; já havia frieza entre eles: ele os congela”.

O nosso autor prossegue, no mesmo texto, com a descrição das desgraças causadas pelo despotismo centralizador: “Neste tipo de sociedades onde nada é fixo, cada um sente-se constantemente aferroado pelo temor de descer e o ardor de subir e como o dinheiro, ao mesmo tempo que lá se tornou a marca principal que classifica e distingue os homens, também adquiriu uma singular mobilidade, passando sem cessar de mãos em mãos, transformando a condição dos indivíduos, elevando ou rebaixando as famílias, quase não há mais ninguém que não tenha de fazer um esforço desesperado e contínuo para conservá-lo ou adquiri-lo. A vontade de enriquecer a qualquer preço, o gosto pelos negócios, o amor ao lucro, a procura pelo bem-estar e os prazeres materiais, lá são, portanto, as paixões mais comuns. Estas paixões facilmente espalham-se em todas as classes, penetram mesmo naquelas até então mais alheias e conseguiriam, rapidamente, enervar e degradar a nação inteira, se nada viesse pará-las. Ora, faz parte da própria essência do despotismo favorecê-las e espalhá-las. Estas paixões debilitantes ajudam-no, desviam e ocupam a imaginação dos homens, mantendo-os longe dos negócios públicos, e fazem que a simples ideia de revolução os faça tremer. Só o despotismo pode fornecer-lhes o segredo e a sombra, que colocam a cupidez à vontade e permitem angariar lucros desonestos, ao desafiar a desonra. Sem ele teriam sido fortes, com ele reinam”.

Tão deletério, para a constituição política de um povo é o despotismo, no sentir de Tocqueville, que chega até a se esconder sob a aparência de honestidade da vida privada, tolhendo o surgimento de bons cidadãos. “As sociedades democráticas que não são livres – escreve nosso autor [Tocqueville, 1988a: 95; 1989: 47] – podem ser ricas, refinadas, adornadas e até magníficas e poderosas, graças ao peso de sua massa homogênea; nelas podemos encontrar qualidades privadas, bons pais de família, comerciantes honestos e proprietários dignos de estima; nelas veremos até mesmo bons cristãos, pois a pátria daqueles não é deste mundo e a glória de sua religião é produzi-los, no meio da maior corrupção dos costumes e debaixo dos piores governos: o Império Romano, na sua extrema decadência, estava repleto deles. Mas o que nunca se verá em sociedades semelhantes, ouso dizê-lo, são grandes cidadãos e, principalmente, um grande povo, e não tenho medo de afirmar que o nível comum dos corações e dos espíritos não cessará nunca de baixar, enquanto houver a união da igualdade e do despotismo”.

Pareceria, do exposto, que a liberdade é a condição menos natural ao homem e que o despotismo é o clima que melhor responde à sua natureza. Nada mais falso, no sentir de Tocqueville. A busca da liberdade é essencial ao ser humano. O despotismo ocorre, portanto, contrariando as tendências naturais humanas. Somente vinga ali onde o déspota quer, com mão de ferro, toda a liberdade para si e desconhece esse direito aos demais. A respeito, o nosso autor escreve [Tocqueville, 1988a: 95-96; 1989: 47]: “Qual o homem com uma natureza tão baixa que preferiria depender dos caprichos dos seus semelhantes, que seguir as leis que ele próprio contribuiu a estabelecer, caso considerasse que a sua nação tinha as virtudes necessárias para fazer bom uso da liberdade? Acho que este homem não existe. Até os déspotas não negam a excelência da liberdade. Somente que a querem só para eles e supõem que todos os outros não são dignos dela. Assim não é sobre a opinião que se deve ter sobre a liberdade, que existem divergências, e sim sobre a menor ou maior estima em que se tem os homens. E é assim que se pode dizer, a rigor, que o gosto mostrado para o governo absoluto está em relação exata com o desprezo que se tem para com o seu país”.

O que Tocqueville afirmava do centralismo despótico aplicava-se, em primeiro lugar, à França revolucionária. Em que pese o fato das juras libertárias dos jacobinos, a Revolução terminou sendo deglutida pelos velhos hábitos centralizadores e despóticos. O nosso autor cita, para confirmar esta apreciação, as palavras que Mirabeau (1749-1791) escrevia secretamente ao rei, menos de um ano depois de ter eclodido a Revolução: “Comparemos o novo estado das coisas com o antigo regime; lá nascem os consolos e as esperanças. Uma parte dos atos da Assembleia Nacional – a mais considerável – é, evidentemente, favorável ao governo monárquico. Não significará nada ser sem parlamento, sem governo de Estado, sem corpo de clero, de privilegiados, de nobreza? A ideia de formar uma só classe de cidadãos teria agradado a Richelieu (1585-1642): esta superfície igual facilita o exercício do poder. Alguns reinos de um governo absoluto não teriam feito tanto em prol da autoridade real quanto este único ano de Revolução” [apud Tocqueville, 1989: 56].

Arguto e crítico observador do fenômeno revolucionário, Tocqueville comenta as palavras de Mirabeau, destacando o caráter cosmético da Revolução de 1789, no que tange ao despotismo centralizador. O processo revolucionário fez ruir um governo e um reino, mas sobre as suas cinzas, ergueu um Estado muito mais poderoso que o anterior. “Como o objetivo da Revolução Francesa – escreve o nosso autor [Tocqueville, 1989: 56-57] – não era tão-somente mudar o governo, mas também abolir a antiga forma de sociedade, teve de atacar-se, ao mesmo tempo, a todos os poderes estabelecidos, arruinar todas as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os hábitos e esvaziar, de certa maneira, o espírito humano de todas as ideias sobre as quais se assentavam, até então, o respeito e a obediência. Daí provém o seu caráter tão singularmente anárquico”.

“Mas afastemos estes resquícios – prossegue Tocqueville – e perceberemos um poder central imenso, que atraiu e engoliu, em sua unidade, todas as parcelas de autoridade e influência antes disseminadas numa porção de poderes secundários, de ordens, de classes, profissões, famílias e indivíduos, por assim dizer espalhados em todo o corpo social. Não se tinha visto no mundo um poder semelhante desde a queda do Império Romano. A Revolução criou esta nova potência ou, melhor, esta saiu das ruínas feitas pela Revolução. Os governos que fundou são mais frágeis, é verdade, porém são cem vezes mais poderosos que qualquer um daqueles que derrubou. (…). Foi desta forma simples, regular e grandiosa que Mirabeau já entrevia, por trás da poeira das velhas instituições meio destruídas. Apesar de sua grandeza, o objeto ainda era invisível para os olhos da multidão: mas, pouco a pouco, o tempo foi expondo este objeto a todos os olhares”.

Quatro ideias centrais Aron destaca em L’Ancien Régime et la Révolution. A primeira consiste no fato de a Revolução Francesa ter se apresentado como uma grande revolução religiosa. Daí a sua radicalidade, bem como a sua universalidade. Considera que Tocqueville colocou, aqui, um tema definitivo para compreender os processos revolucionários do futuro. “Esta coincidência de uma crise política com uma espécie de revolução religiosa – frisa Aron – é, ao que parece, uma das características das grandes revoluções das sociedades modernas. Aos olhos de um sociólogo da escola de Tocqueville, a Revolução Russa de 1917 tem, igualmente, a mesma característica de ser uma revolução de essência religiosa. Creio que é possível generalizar a proposição: toda revolução política assume certas características de revolução religiosa, quando pretende ser universalmente válida e se considera o caminho da salvação para toda a humanidade” [Aron, 2000: 217].

A segunda ideia que Aron destaca em L’Ancien Régime é a que já tinha sido enunciada por Guizot e que, conforme reconhece Plekhánov (1856-1918), seduziu ao próprio Marx: os atores da política moderna já não são os indivíduos, mas as classes sociais. A respeito, escreve Aron: “Para esclarecer seu método, Tocqueville acrescenta: Falo de classes; só elas devem ocupar a história. Esta frase é textual, e estou certo, contudo, de que se uma revista a publicasse com a pergunta: quem a escreveu?, quatro entre cinco pessoas responderiam: Karl Marx. As classes cujo papel decisivo é evocado por Tocqueville são: a nobreza, a burguesia, os camponeses e, secundariamente, os operários” [Aron, 2000: 217]. Mesmo que Tocqueville não tenha formulado uma completa sociologia das classes sociais, não podemos negar a força sugestiva do seu pensamento.

A terceira ideia é que a centralização não é um fenômeno novo na França do período revolucionário: ela já tinha acontecido ao longo do Ancien Régime, por força do centripetismo da administração monárquica, solidamente costurada ao redor dos intendentes do Rei. “Sem dúvida – frisa Aron – a França do Antigo Regime apresentava extraordinária diversidade provincial e local, em matéria de legislação e regulamentação; contudo, a administração real dos intendentes tornava-se, cada vez mais, a única força eficaz” [Aron, 2000: 218].

A quarta ideia ressaltada por Aron na análise tocquevilliana do processo revolucionário é que ao centralismo real correspondia, na sociedade francesa, o insolidarismo das classes, que lhes tirava a força para lutar pela liberdade. Parece-me, aqui, que Aron não enfatiza devidamente a carência da representação política, que já tinha sido salientada como a grande causa da falta de força do tecido social, por autores como Madame de Staël, nas suas Considérations sur la Révolution Française, bem como por Benjamin Constant de Rebecque nos seus Principes de Politique e pelo próprio Guizot na sua Histoire de la Civilisation Européenne. Porque não houve, na França, um processo de construção da representação de interesses de baixo para cima (ao contrário do que Tocqueville observou na América, onde a representação emerge da comuna e percorre, gradativamente, todo o organismo social), as classes permaneceram dispersas e incapazes de se contraporem ao centripetismo real. Seja como for, Aron afirma a respeito: “Tocqueville faz uma descrição puramente sociológica do que Durkheim tinha chamado de desintegração da sociedade francesa. Não havia unidade entre as classes privilegiadas e, de modo mais geral, entre as diversas classes da nação, devido à carência de liberdade política. Subsistia uma separação entre os grupos privilegiados do passado, que tinham perdido sua função histórica, mas conservavam seus privilégios, e os grupos da nova sociedade, que desempenhavam um papel decisivo, mas permaneciam separados da antiga nobreza” [Aron, 2000: 219].

VII – Repercussão passada e presente da meditação de Tocqueville

A publicação do primeiro volume da Démocratie en Amérique granjeou a Tocqueville o reconhecimento da sociedade francesa. O nosso autor passou a ser convidado habitual dos salões mais exclusivos de Paris, como o da duquesa de Dino (que era frequentado pelo velho Talleyrand, além de importantes figuras como Royer-Collard, Berryer e o duque de Noailles); outros salões por ele frequentados foram o de Madame D’Arguesseau, o de Madame Ancelot, o de Madame Récamier, situado em L’Abbaye-au-Bois, etc.

Nada melhor para auferir a repercussão da obra de Tocqueville na sua época do que transcrever o parecer da Academia Francesa, quando da premiação do nosso autor, em 1836. O porta-voz da Academia, Abel-François Villemain (1790-1870), afirmou no seu discurso [apud Pierre Larousse, 1865a: vol. 6, pg. 408]: “Encontram-se reunidas aí a grandeza da matéria, a novidade das pesquisas, a elevação das perspectivas. De qualquer ângulo que se considere, o governo e a sociedade dos Estados Unidos são um problema curioso e inquietante para a Europa. Discutir esse problema, analisar esse novo mundo, mostrar as suas analogias com o nosso e as suas insuperáveis diferenças, ver transplantadas ao seu lugar de origem e desenvolvidas, num alto grau de crescimento, algumas das teorias que agitam a Europa e julgar assim o que, mesmo no meio de uma natureza feita expressamente para elas, falta ao seu sucesso ou tangencia a duração e as torna de entrada impossíveis, eis sem dúvida uma das mais graves lições que poderia dar o publicista amigo da humanidade, e tais são os resultados involuntários ou buscados do trabalho de Monsieur de Tocqueville. (…). Uma das belas caraterísticas do seu livro é a de ser um protesto contra toda iniquidade social, de qualquer um que a autorizar (…). Hábil apreciador dos grandes princípios da imprensa livre e do júri, lamenta-se de vê-los às vezes esvaziados na América, por essas correntes uniformes de opinião, que ele chama de despotismo intelectual da maioria e, por esse caminho, indica como seria conveniente um tipo de governo mais concentrado, menos popular para beneficiar esses mesmos princípios e lhes conferir força, encontrando neles apoio. Tal é o livro de Monsieur de Tocqueville. O talento, a razão, a amplitude de visão, a firme simplicidade do estilo, um eloquente amor ao bem caracterizam esta obra, não deixando à Academia a esperança de coroar tão cedo outras obras semelhantes”. Apreciação positiva, não há dúvida, mas cautelosa. Nada de projeções diretas da análise tocquevilliana sobre a realidade francesa da época.

Apreciação ponderada, porém mais aberta às suas teses fundamentais, fez da obra de Tocqueville, no Brasil, Paulino Soares de Souza (1807-1866), visconde de Uruguai [1960: 343-418]. O grande estadista do Império valorizava em Démocratie en Amérique a defesa da descentralização administrativa entre os americanos, mas considerava que essa prática, tal como existia nos Estados Unidos, pressupunha uma tradição política que era alheia ao Brasil. O self-government, não sendo uma praxe decantada na realidade brasileira, mal poderia ser um pressuposto no nosso meio, a fim de nele alicerçar a descentralização administrativa. No entanto, considerava Paulino [1960: 418], “há muito o que estudar e aproveitar nesse sistema, por meio de um esclarecido ecletismo. Cumpre porém conhecê-lo a fundo, não o copiar servilmente como o temos copiado, muitas vezes mal, mas sim acomodá-lo com critério, como convém ao país (…). Cumpre distinguir, acuradamente, quais sejam esses negócios para evitar confusão, usurpações e conflitos, e, a respeito deles, dar mais largas ao self government entre nós, reservada sempre ao poder central aquela fiscalização e tutela que ainda mais indispensáveis são em países nas circunstâncias do nosso”.

A obra de Alexis de Tocqueville, neste século, somente começou a ser valorizada na França a partir dos anos cinquenta. Segundo Françoise Mélonio [1993], podem-se distinguir três momentos na releitura que os franceses têm feito da obra de Tocqueville, ao longo do século XX: em primeiro lugar, os anos cinquenta, época em que Raymond Aron estimula uma reflexão sobre os regimes, centrada na leitura da primeira Démocratie en Amérique. Em segundo lugar, os anos sessenta, período no qual os sociólogos, filósofos e etnólogos focalizam a segunda Démocratie, aprofundando a concepção tocquevilliana acerca da cultura democrática. Em terceiro lugar, os anos setenta a noventa, período no qual François Furet (1927-1997) e o grupo dos seus colaboradores (entre os quais se situa Françoise Mélonio), reunidos no Centre de Recherches Politiques Raymond Aron (ligado à École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris), deram a L’Ancien Régime et la Révolution um lugar de destaque na interpretação da história da França.

A respeito do significado desse triplo enfoque por parte dos estudiosos franceses, Françoise Mélonio [1993: 274] escreve: “Três leituras que se sucedem, mas que também se inter-relacionam, pois pertencem ao mesmo universo intelectual. Todas nascem de um encontro frutífero com a cultura americana e colocam, como cerne da reflexão, a comparação entre Europa e América; todas elas buscam reintroduzir a liberdade como critério central nas ciências sociais, que se tinham constituído na hipertrofia de uma positividade cega”.

Raymond Aron, lembra com propriedade Françoise Mélonio, considerava que as sociedades ocidentais se polarizaram, ao longo do século XX, ao redor de dois modelos de democracia: o totalitário, que seguiu as pegadas de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e que terminou sendo encampado pelo pensamento de Marx, e o liberal, herdeiro dos ensinamentos de Tocqueville. Ao passo que o primeiro modelo seduziu a intelectualidade europeia até os anos trinta, o segundo passou a ser valorizado quando foram sentidas as catastróficas consequências do totalitarismo, ao longo das décadas de 40 e 50.

A indiscutível atualidade de Tocqueville, na cultura francesa hodierna, decorre, com certeza, da sua defesa incondicional da liberdade no contexto da tradição democrática. A respeito, Françoise Mélonio [1993: 304] conclui: “A obra de Tocqueville tem um alcance diferente pelo fato de ser um elo na história do liberalismo, depois de Montesquieu ou Constant e antes do liberalismo democrático moderno. (…). A obra de Tocqueville nos interessa, pois, menos pela linhagem na qual se insere do que pelo seu exotismo. Aristocrata por instinto e democrata por razão, na encruzilhada das duas culturas, a americana e a francesa, Tocqueville tem sido o esquecido da nossa tradição democrática”.

Poderíamos afirmar que, no universo luso-brasileiro hodierno e no mundo ibero-americano em geral, o pensamento de Tocqueville também merece aprofundado estudo, toda vez que descobrimos – como fez o grande pensador na França do século XIX – a falência do democratismo patrimonialista e do marxismo e passamos a valorizar uma versão de democracia consentânea com o exercício da liberdade e o funcionamento das instituições do governo representativo. De forma semelhante a como a reflexão de Tocqueville sobre a sociedade e as instituições americanas iluminou a trilha pela qual deveria enveredar a França no segundo pós-guerra, graças ao esforço de Raymond Aron atrás apontado, também podemos aproveitar a análise tocquevilliana acerca da democracia na América e no Velho Mundo para encontrarmos o caminho que devemos trilhar, neste início de milênio, na caminhada rumo à plena vida democrática.

VIII – Os problemas da democracia moderna segundo Tocqueville e Aron

Como foi apontado no início deste capítulo, Alexis de Tocqueville e Raymond Aron pertencem à mesma escola de pensadores que foi denominada, na França do século XIX, de “liberais doutrinários”. Tanto um quanto outro dão continuidade à reflexão/ação iniciada pelos precursores desse “estilo” de pensar a política desde dentro, Madame de Staël e Benjamin Constant de Rebecque. Ambos os pensadores, Tocqueville e Aron, retomam a herança dos doutrinários propriamente ditos, cujo representante foi Guizot (que influiu de forma eminente no Brasil na “geração de homens de mil”, identificada com Paulino Soares de Sousa e demais estadistas do Segundo Reinado). Tanto no que se refere à forma de pensar, fugindo dos dogmatismos que pretendem dizer a última palavra, quanto na maneira como se relacionam com o mundo dos fatos históricos, Tocqueville e Aron reproduzem as caraterísticas marcantes dos doutrinários franceses. Poderíamos dizer que o ponto marcante desse estilo de pensar consiste no engajamento. Não se trata de pensar a política como categoria abstrata. Também não é aceito o mergulho total na corrente da história, como se ela já estivesse predefinida pela roda cega do destino. Tocqueville e Aron encaram a história como soma de acontecimentos que, em parte, escapa à nossa ação, como tendência que não podemos ignorar e que herdamos dos séculos passados, mas que, de outro lado, pode ser abordada à luz da razão para lhe identificar os traços marcantes e influir no rumo da mesma, com o intuito de preservar a liberdade. Devemos tentar compreender a história, mas é nosso dever, também, influir nela, através da nossa participação consciente e sistemática nos fatos mutáveis, para tornar as instituições mais acordes com o ideal da dignidade humana.

Ora, essa participação, esse engajamento para corrigir os rumos da história e garantir a liberdade, processa-se, tanto para Tocqueville como para Aron, no contexto da atividade que no século XIX identificou-se como ação dos publicistas. Ou seja, mediante a participação direta no debate político, no parlamento ou na imprensa. Sabemos que Tocqueville optou pela primeira forma de participação, tendo deixado de lado, logo nos primeiros anos da sua vida profissional, o exercício da magistratura e sendo a sua ação no terreno da imprensa bastante limitada, embora tivesse tentado fundar um jornal para melhor firmar o seu ponto de vista político; mas o importante a ser destacado é que a meditação tocquevilliana de longo curso esteve finalizada por essa preocupação prática de tentar encontrar, para os Franceses, o caminho adequado à defesa da liberdade, no exercício da democracia. A rápida passagem de Tocqueville pelas funções de governo, quando da sua indicação para integrar o gabinete como ministro das Relações Exteriores da França, esteve claramente marcada pela preocupação doutrinária de tentar pôr em prática uma política meditada à luz dos princípios liberais por ele defendidos [cf. Jardin, 1984: 267-440].

O engajamento doutrinário de Aron acontece, sobretudo, na imprensa, atividade para a qual o pensador francês acordou, quando da sua participação na direção da Revista La France Libre, que apoiava a luta dos aliados contra o regime hitlerista. Pode-se dizer que a ação doutrinária de Aron estendeu-se à cátedra universitária e aos seus escritos sistemáticos, pois tanto numa quanto noutros encontramos a preocupação fundamental de debater os grandes temas da democracia no mundo contemporâneo, visando a abrir um caminho, na França, para a defesa da democracia liberal, em face da capitulação da intelectualidade diante do marxismo. O cerne da oposição entre Aron e o seu amigo de juventude, Jean-Paul Sartre, situa-se nesse contexto.

Tocqueville e Aron encaram a democracia moderna destacando, de um lado, os principais riscos que a ameaçam e, de outro, assinalando os caminhos pelos quais pode ser defendida a liberdade, por parte dos intelectuais engajados na defesa desta. Da leitura da segunda Démocratie en Amérique de Tocqueville e, no que tange a Raymond Aron, da République impériale – Les États-Unis dans le monde (1945-1972) ressalta a coragem de ambos os pensadores na abordagem do problema da democracia moderna, na terceira década do século XIX (Tocqueville) e no último quartel do século XX (Aron). Nenhum dos dois faz concessões às modas intelectuais imperantes na sua época. Ambos assinalam, com honestidade intelectual singular, os remédios a serem tomados para defender a versão de democracia (a liberal) que salvaguarda a liberdade, sem deixar de explicitar as perplexidades suscitadas por uma realidade altamente complexa e em estado de constante mutação. E ambos professam, no meio do fluir do rio da democracia, a sua fé inabalável na liberdade e na dignidade humanas. Oportuna lição para estes tempos de angústia e perplexidade, em face do novo inimigo que a todos ameaça, o terrorismo globalizado, diante do qual não poucos capitulam nas várias opções do irracionalismo pós-moderno, que se travestem de fanatismo religioso, de ressentimento terceiro-mundista, de fundamentalismo político ou de mimetismo politicamente correto.

Tocqueville destaca, no final do seu segundo volume da Démocratie en Amérique, que a democracia não é mais uma moda no mundo moderno. Na trilha das lições do seu mestre, Guizot, no curso dado por este na Sorbonne no final da década de 1820, Tocqueville considera que a tendência democrática constitui a marca registrada dos novos tempos. Uma variante que não foi objeto de escolha, mas que se impôs às sociedades europeias, de maneira inevitável, pelo evoluir da própria história. A melhor maneira de os franceses prepararem-se para a democracia é canalizando-a pelo caminho da defesa da liberdade. E aí o exemplo americano é importante. “Estou convencido – frisa nosso autor no capítulo VII da obra mencionada – de que fracassarão todos aqueles que, nos séculos em que entramos, tentarem apoiar a autoridade sobre o privilégio e a aristocracia. Fracassarão todos aqueles que desejarem atrair e conservar a autoridade no seio de uma só classe. Hoje em dia, não há soberano bastante hábil e bastante forte para fundar o despotismo restabelecendo distinções permanentes entre seus súditos; assim também, não há legislador tão douto e tão poderoso que esteja em condições de manter instituições livres se não tomar a igualdade como primeiro princípio e como símbolo. Por isso, é preciso que todos aqueles nossos contemporâneos que desejarem criar ou assegurar a independência e a dignidade de seus semelhantes, se mostrem amigos da igualdade; e o único modo de se mostrarem tais é serem tais: o êxito de sua sagrada empresa depende disso. Assim, não se trata, absolutamente, de reconstruir uma sociedade aristocrática, mas de fazer sair a liberdade do seio da sociedade democrática onde Deus nos faz viver” [Tocqueville, 1992: 841].

O principal risco que Tocqueville enxerga para as sociedades modernas é o fato de a consolidação da democracia enveredar pelo caminho do despotismo. Esta opção apresenta-se como algo de democrático, saído do voto popular. Os tutelados podem muito bem renunciar à sua liberdade, alegando que elegeram, à la Rousseau, o seu tutor. Ora, é necessário denunciar com claridade esse risco. Eis as palavras de Tocqueville a respeito: “(Os cidadãos) imaginam um poder único, tutelar, todo-poderoso, mas eleito por eles mesmos. Eles confundem centralização e soberania popular. Isso lhes traz uma certa tranquilidade. Consolam-se de estar sob tutela, imaginando que eles próprios escolheram os seus tutores. Cada indivíduo tolera ser acorrentado, porque percebe que não é nem um homem nem uma classe, mas o próprio povo que segura a extremidade da corrente” [Tocqueville, 1992: 838].

O despotismo, frisa Tocqueville, não aparece nas grandes declarações constitucionais, mas disfarça-se nas medidas administrativas do dia-a-dia. Por isso é fundamental, para a preservação da democracia, desmontar esse tipo de atentado miúdo à liberdade, impedindo que os administradores tomem conta da vida privada dos cidadãos. O caminho básico para se defender a sociedade desse vício do despotismo administrativo, é reforçar a soberania popular.

Cinco iniciativas identifica Tocqueville que devem ser postas em prática: o reforço às associações civis; o desempenho, pelas instâncias civis locais, das funções administrativas nos municípios; a liberdade de imprensa; a independência do poder judiciário em face dos outros poderes públicos e a preservação das formas e dos ritos jurídicos. Ora, neste terreno o nosso pensador retoma as lições de Benjamin Constant de Rebecque, claramente expostas na sua obra de 1806, intitulada Principes de politique [Constant, 1997], na qual destaca-se o princípio de que a soberania popular não constitui um dogma universal que deva acorrentar a vida dos cidadãos, mas é-lhe assinalado um claro limite: somente vale no relacionado à organização do Estado e das relações políticas. O princípio da soberania popular deve deixar intocada, portanto, a vida privada dos cidadãos.

As providências assinaladas por Tocqueville constituem, no sentir dele, os grandes reptos dos legisladores nas democracias modernas. A respeito, afirma: “Assinalar ao poder social amplos limites, mas visíveis e imóveis; dar aos particulares certos direitos e lhes garantir o gozo indiscutível desses direitos; assegurar ao indivíduo o pouco de independência, de força e de originalidade que lhe restam; reerguê-lo ao lado da sociedade e sustentá-lo em face dela: tal parece-me ser o primeiro objetivo do legislador na época em que nos encontramos” [Tocqueville, 1992: 848].

A meditação de Raymond Aron segue as pegadas abertas por Tocqueville. Interessa-lhe, sobretudo, a discussão acerca dos riscos que a liberdade sofre no contexto das democracias contemporâneas, notadamente na França. A Europa, após as duas Guerras Mundiais, terminou perdendo fôlego na defesa da liberdade, embalada pelo ambiente do “politicamente correto”. Aron lamenta, especialmente, a claudicação da intelectualidade francesa diante do comunismo. Para ele, como para Tocqueville, a História não está totalmente pré-determinada. É evidente que recebemos das épocas passadas tendências contra as quais seria infantil nos levantarmos. Mas, em face do que é fato consumado, há um horizonte de alternativas ainda não configuradas, nas quais abre-se espaço à liberdade. É aí que deve dar-se o nosso combate em prol da democracia liberal.

No lusco-fusco do confronto entre as forças profundas da História e as circunstâncias variáveis, deve intermediar a nossa ação livre. “Nós nos fazemos pelas decisões que tomamos – frisa Aron no seu depoimento na Universidade de Brasília, em 1980, acerca da sua atitude em face da Segunda Guerra Mundial -. E, na época, perseguidos pelo nacional-socialismo e pelo risco de uma França nacional socialista, eu dizia que se engajar numa política determinada é se engajar no seu próprio destino, pois a política, que nos períodos tranquilos é um divertimento para os homens políticos, nos períodos sérios, trágicos, implica que a decisão de cada um seja uma decisão existencial sobre si mesmo, sobre seu destino, sobre o que ele quer saber e sobre o que ele será. Essa filosofia histórica não era nem Hegel, pois eu não acreditava no saber absoluto, nem Marx, pois eu não acreditava na totalidade histórica, eu acreditava nos determinismos parciais mas não nas determinações do conjunto da sociedade, a partir das forças ou das relações de produção; não era nem Spengler (…) porque eu mantinha a esperança de uma humanidade una, logo, de uma história una, e eu me recusava a acreditar na impossibilidade de comunicação entre as culturas. Foi, pois, com esta teoria da ação política que eu enfrentei o período da guerra” [Aron, 1981: 66].

Aron não pretende resolver, de maneira teórica, o conflito entre moral e política. Para ele, é mais importante buscar a forma de preservar a dignidade humana nas decisões concretas a serem tomadas. O teórico puro faz abstração desta problemática e, à maneira dos enciclopedistas do século XVIII, imagina um tipo de homem que não existe. Em face do mundo da política, cabe ao homem de estudos se fazer a seguinte pergunta: o que eu faria, se tivesse a responsabilidade política de tomar uma decisão, em face dessas circunstâncias concretas? Não adianta dizer comodamente: “essa não é a minha função. Eu devo somente pensar”. Essa é, para Aron, a atitude dos acadêmicos, em geral. O seu conflito com a Universidade radicou, justamente, nesse engajamento. “Eu já estava, digamos – frisa Aron – um pouco marginalizado na Universidade francesa, pois eu vivia, ao mesmo tempo, na Universidade e no mundo” [Aron, 1981: 64]. Mahoney destacou esse traço doutrinário de Aron, da seguinte forma: “Ele oferece um poderoso antídoto à tentação da política literária ou metafísica. Os seus escritos ilustram a fecundidade de uma aproximação sociológica, que fica próxima dos fenômenos da verdadeira vida política. A sua vida e a sua obra constituem uma impressionante manifestação das possibilidades intelectuais e da grandeza moral inerentes ao raciocínio político e à sabedoria prática” [Mahoney, 1998: 16].

Para equacionar o grave problema da afirmação da liberdade no mundo contemporâneo, é necessário conhecê-lo em profundidade, a fim de descobrir os espaços que nele persistem para a construção de uma sociedade democrática e liberal. Aron retoma o projeto tocquevilliano de estudo das sociedades democráticas, para identificar as tendências que se desenham nelas. Nesse contexto situa-se o interesse de Aron pelo estudo das sociedades industriais, que constitui parte essencial da sua obra. A propósito, afirma, no seu depoimento na Universidade de Brasília, que representa uma espécie de testamento filosófico, pois viria a falecer três anos depois, em 1983: “Vocês sabem, as últimas páginas de Tocqueville são consagradas às sociedades democráticas do futuro. As sociedades democráticas do futuro, dizia ele, serão necessariamente democráticas porque o desenvolvimento em direção à igualdade das pessoas é irresistível, porém é possível que as sociedades democráticas sejam, umas liberais e prósperas e outras, despóticas e miseráveis. A reaproximação entre os dois tipos de sociedade industrial e as duas versões da sociedade democrática de Tocqueville, é preciso reconhecer, estas duas comparações eram tentadoras e eu não resisti à tentação. Foi a partir disto que tentei, se o posso dizer, elaborar uma teoria mais ou menos rigorosa destes dois tipos de sociedade” [Aron, 1981: 71].

A meditação tocquevilliana, assim como a de Aron, projetou-se, de forma sistemática, também sobre as relações internacionais. Os dois pensadores franceses estão preocupados com as perspectivas que se descortinam para o exercício da liberdade no mundo que tiveram de viver, e também com os riscos que a cerceiam. As relações internacionais constituem, para os dois pensadores, o pano de fundo ideal para a tomada de consciência dos valores típicos em que ancora a cultura nacional. Essa tendência de abertura já se desenha na meditação dos precursores dos doutrinários, Madame de Staël e Constant de Rebecque. Lembremos apenas o grande laboratório de confronto de culturas nacionais num ambiente de liberdade intelectual que constituiu Coppet, de onde surgiria, certamente, a primeira definição do que seria a cultura francesa, em face das culturas alemã e inglesa. Vale a pena recordar que é nesse ambiente de abertura em que ancora a formulação, por Constant, do termo liberalismo como “atitude de vigilância crítica em face dos poderes e de uma ameaça de retorno ao antigo” [Jaume, 1997: 14].

Pois bem: tanto Aron quanto Tocqueville abrem um capítulo importante, nas suas respectivas obras, para a meditação em torno das relações internacionais, tendo como preocupação fundamental a defesa da liberdade, ou do que viria a se chamar no século XX de “mundo livre”. Tocqueville deixou-nos precioso registro dessas reflexões no seu clássico livro La Démocratie en Amérique, nos seus discursos parlamentares, bem como nos cadernos de viagens, publicados estes últimos sob o título genérico de Voyages [Tocqueville, 1991: 3-1594]. Os cadernos tocquevillianos abarcam as observações feitas nas viagens à América, à Sicília, à Inglaterra, à Suíça e à Argélia, bem como o esboço de uma obra sobre a Índia.

Aron concentrou o seu pensamento sobre o tema das relações internacionais em várias obras como Les guerres en chaîne (Paris: Gallimard, 1951), La tragédie algérienne (Paris: Plon, 1957), Espoir et peur du siècle (Paris: Calmann-Lévy, 1957), La société industrielle et la guerre – Tableau de la diplomatie mondiale en 1958 (Paris: Plon, 1959), Paix et guerre entre les nations (Paris: Calmann-Lévy, 1962), Le grand débat: initiation à la stratégie atomique (Paris: Calmann-Lévy, 1963), De Gaulle, Israël et les Juifs (Paris: Plon, 1968), Histoire et dialectique de la violence (Paris: Gallimard, 1973), République impériale. Les États-Unis dans le monde 1945-1972 (Paris: Calmann-Lévy, 1973), Penser la guerre, Clausewitz. I: L’Âge européenn, II: L’Âge planétaire (Paris: Gallimard, 1976), Playdoyer pour l’Europe décadente (Paris: Laffont, 1977) e Mémoires, 50 ans de réflexion politique (Paris: Julliard, 1983).

Para Tocqueville, as relações internacionais, na modernidade, estão submetidas à tendência a um progressivo desenvolvimento da igualdade. As duas nações que, no decorrer do século XX, deveriam impor a sua dominação ao mundo, seriam aquelas em que a igualdade tivesse se materializado de forma mais completa. Essas nações seriam a Rússia e os Estados Unidos da América, mas o desenvolvimento da democracia percorreria caminhos diversos numa e noutra: na primeira, a igualdade seria conquistada a partir da centralização ao redor de um poder absoluto: o czarismo. Na segunda, desenvolver-se-ia a democracia alicerçada no exercício da liberdade e do self government. De outro lado, o nosso pensador considerava que as nações mais desenvolvidas econômica, política e culturalmente puxariam as menos desenvolvidas. Isso aconteceu, no contexto europeu, entre a Inglaterra e as nações do continente. Isso acontecerá, também, nas Américas, sendo os Estados Unidos o polo dinamizador desse processo de modernização.

Tocqueville, aliás, era otimista em relação à América Latina. Achava que o estado de atraso dos países do continente seria transitório e que, assim como a Inglaterra conseguiu influenciar positivamente nos países da Europa Continental na superação das mazelas da pobreza e do autoritarismo, de forma semelhante os Estados Unidos conseguiriam, mais cedo ou mais tarde, influenciar beneficamente os seus vizinhos do sul, fazendo surgir, neles, a valorização do trabalho, do desenvolvimento e da democracia, dinamizando os elementos de civilização cristã presentes nas tradições ibéricas. Antecipava o grande pensador francês a proposta da Aliança do Livre Comércio das Américas, que hoje os Estados Unidos tentam implementar na América Latina. Tocqueville talvez possa se aproximar da ideia de Nisbet [1969] no sentido de que as mudanças sociais não obedecem apenas a fatores endógenos, mas que são implementadas fundamentalmente por influências exógenas.

Vale a pena citar as palavras de Tocqueville a respeito, extraídas da última parte da primeira Démocratie en Amérique (capítulo X sobre as três raças que habitam nos Estados Unidos): “Os espanhóis e os portugueses fundaram, na América do Sul, grandes colônias que posteriormente se transformaram em impérios. A guerra civil e o despotismo desolam, hoje em dia, aqueles vastos territórios. O movimento da população se detém e o reduzido número de homens que os habita, preocupado com o cuidado de se defender, apenas experimenta a necessidade de melhorar sua sorte. Mas não será possível ocorrer sempre assim. A Europa, entregue a si mesma, chegou pelos seus próprios esforços a vencer as trevas da Idade Média; a América do Sul é cristã como nós; tem as nossas leis, os nossos costumes; encerra todos os germes das civilizações que se desenvolveram no seio das nações europeias e de seus rebentos; a América do Sul tem, mas do que nós, o nosso exemplo: por que há de permanecer bárbara para sempre?”

“Trata-se, evidentemente, neste caso, de uma questão de tempo: uma época mais ou menos distante chegará, em que os sul-americanos formarão nações florescentes e esclarecidas. (…). Não poderíamos duvidar que os americanos do norte da América venham a ser chamados a prover um dia às necessidades dos sul-americanos. A natureza os colocou perto deles. Forneceu-lhes, assim, grandes facilidades para conhecer e julgar as suas necessidades, a fim de estabelecer com aqueles povos relações permanentes e para se apoderar gradualmente do seu mercado. O comerciante dos Estados Unidos só poderia perder essas vantagens naturais se fosse muito inferior ao comerciante da Europa. Acontece que é, pelo contrário, superior a este em muitos pontos. Os americanos dos Estados Unidos já exercem grande influência moral sobre todos os povos do Novo Mundo. É deles que partem as luzes. Todas as nações que habitam o mesmo continente já se habituaram a considerá-los como os filhos mais esclarecidos, mais poderosos e mais ricos da grande família americana. Constantemente voltam os seus olhares para a União e, na medida do possível, assemelham-se aos povos que a compõem. Todos os dias vão buscar nos Estados Unidos doutrinas políticas e tomar-lhes leis emprestadas”.

“Os americanos dos Estados Unidos estão, perante os povos da América do Sul, precisamente na mesma situação que seus pais ingleses perante os italianos, os espanhóis, os portugueses e todos aqueles povos da Europa que, sendo menos adiantados em civilização e indústria, recebem das suas mãos a maior parte dos objetos de consumo (…)” [Tocqueville, 1992: 471-473].

O arrazoado de Raymond Aron em matéria de relações internacionais desenvolve-se a partir das linhas mestras assinaladas por Tocqueville. O aspecto fundamental da sua teoria consiste no paralelo que faz, de maneira sistemática, entre os dois modelos democráticos, o alicerçado na liberdade (Estados Unidos) e o fundamentado no despotismo (União Soviética). Aron dá um passo a mais: analisa essa realidade bipolar, à luz da categoria de sociedade industrial. Eis a forma em que ilustra a bipolaridade entre as duas potências que materializaram o ideal da igualdade, confirmando os traços gerais apontados pela precursora e genial análise tocquevilliana: “(…) Todos nós admitimos que a cena internacional tem sido dominada, desde 1945, por apenas dois atores: as duas Superpotências, os Dois Grandes, os Supergrandes, os Estados-Continentes (fiquemos com a denominação que mais nos agradar). Mas acontece que esses irmãos-inimigos nada têm de semelhante: sociedade aberta e sociedade fechada; oligarquia acessível ao público e oligarquia que se dissimula por trás dos mistérios do Kremlin; Washington, que é capaz de tudo, menos de guardar silêncio, e Moscou, onde a leitura da imprensa continua sendo para os embaixadores estrangeiros a principal fonte de informação” [Aron, 1976: 9-10].

A metodologia seguida por Aron ao elaborar a sua teoria das relações internacionais segue de perto o método de observação histórica seguido por Tocqueville. Nada de generalizações que não possam ser confrontadas com uma observação detalhada e minuciosa dos fatos históricos. Nada de categorias elaboradas de uma vez para sempre. Neste ponto, Aron é discípulo de Weber e dos seus “tipos ideais”. Eis a forma em que Aron explica o seu método: “Em decorrência dos excessos e lacunas de nossa documentação, devido à heterogeneidade dos Dois Grandes (cuja rivalidade domina as relações interestatais do atual pós-guerra), devido também à violência das paixões suscitadas por pessoas e fatos que pertencem ainda ao nosso presente, ou a um passado que temos vivido como atores e não como simples observadores… nem eu nem ninguém podemos pressupor que superaremos todos esses obstáculos e escreveremos um livro científico e sereno. Além disso, não possuo a formação do bom historiador (no sentido profissional do vocábulo), nem os recursos de tempo e de dinheiro necessários para conseguir uma informação exaustiva. Por tudo isso, limito-me a apresentar um ensaio ou um esboço; ensaio que pretende ser crítica, e não relato, da ação exterior dos Estados Unidos” [Aron, 1976: 11].

Aron destaca um fato novo e paradoxal nas relações internacionais na década de 1970: a supremacia americana. O nosso pensador enxergava maior dinâmica nos Estados Unidos, que levaria esta nação a dominar o mundo, tendo inclusive chegado a prever, com vinte anos de antecedência, a guerra do petróleo. O paradoxo da supremacia americana decorre do fato de a União americana nunca ter pretendido, nos seus primórdios, extrapolar os limites do continente por ela ocupado. Aron explicita esse paradoxo da seguinte forma: “Pela primeira vez na história (assim exprimiam-se os comentaristas há vinte e cinco anos), uma república elevou-se ao primeiro lugar sem ter aspirado à glória de reinar. Como preço da sua vitória, teve de se fazer cargo da metade do mundo, garantir a segurança dos europeus – débeis demais ainda para se defenderem por si sós – e se interessar por regiões inteiras do planeta que estavam prestes a cair no caos” [Aron, 1976: 16].

Essa não era, certamente, a percepção do general de Gaulle (1890-1970), que discernia, “entre os propósitos idealistas do presidente F. Roosevelt (1882-1945), uma vontade de poder tanto mais pronta a se afirmar quanto mais se ignorava a si mesma” [apud Aron, 1976: 17]. Também essa não era a percepção de Hegel, para quem os Estados Unidos chegariam, no final do século XIX, a ser a grande potência do futuro: “América do Norte – frisava o filósofo alemão – está ainda em estado de esboço; quando, como na Europa, tenha parado o crescimento dos agricultores e quando os seus habitantes, em lugar de se expandirem para fora, em direção a novos campos, se voltarem em massa sobre si mesmos, em direção às indústrias e ao comércio das cidades, e constituírem um sistema compacto, somente então sentirão a necessidade de se converterem num Estado orgânico… Estados Unidos é, pois, o país do porvir, e ali se manifestará, em tempos futuros, a gravitação da história universal, talvez mediante o antagonismo entre América do Norte e América do Sul. Num país de sonho para todos os que estão cansados com o vaivém da velha Europa. Assim o expressou o próprio Napoleão: Esta velha Europa me cansa. Os Estados Unidos devem se separar do terreno sobre o qual transcorreu até agora a história universal” [apud Aron, 1976: 30].

Aron considera que o pecado dos americanos nas relações internacionais não consiste propriamente em ter desempenhado a função de supremacia que a História lhes colocou nas mãos, mas em não ter sido conscientes claramente dessa responsabilidade. Isso os conduziu a administrar de forma pouco coerente a sua supremacia, tendo adotado atitudes imperialistas em determinados momentos, o que não nega o importante papel desempenhado por eles na libertação e posterior recuperação da Europa no segundo pós-guerra. “A ação exterior dos Estados Unidos – frisa Aron – tem pecado, não por anseio de poder, mas por inconsciência do papel que o destino lhes impunha, durante o transcurso do meio século que medeia entre a sua guerra contra Espanha, ocaso de um império cujos restos recolheram, a anexação das Filipinas – imitação do imperialismo europeu, sentida popularmente como uma falta, no duplo sentido da palavra – e a entrada na guerra contra o Japão e a Alemanha, em dezembro de 1941” [Aron, 1976: 30].

A análise aroniana das relações internacionais é permeada pela preocupação constante com a preservação da liberdade, num mundo polarizado e agressivo em que muitos conspiram contra ela. Poder-se-ia sintetizar da seguinte forma a sua contribuição à reflexão nesse terreno: “Atuando na imprensa periódica e vivenciando diretamente o problema da paz e da guerra, risco permanente na Europa em decorrência do expansionismo soviético, Aron compreendeu que este é um tema privilegiado na história do Ocidente e estudou-o com a profundidade que caracteriza as suas análises nestes livros: Paz e guerra entre as nações e Pensar a guerra: Clausewitz. Amostra expressiva do seu método de análise de temas da política cotidiana encontra-se nos Estudos políticos (1971). No ambiente intelectual francês em que viveu, Aron achava que a postura da intelectualidade francesa predispunha à derrota diante da União Soviética. Marcara-o profundamente a capitulação de Munique, quando o Ocidente consagrou a política de expansão de Hitler, admitindo ilusoriamente que se deteria no projeto de reconstituir as fronteiras alemãs tradicionais no chamado Terceiro Reich, e temia que a Europa se encaminhasse na direção do capitulacionismo diante do despotismo oriental, simbolizado pelo Império Soviético. Entendia também que o destino do Ocidente estava associado à Aliança Atlântica, onde defendia a presença dos Estados Unidos. O essencial dessa pregação reuniu-o no livro Em defesa da Europa decadente (1977). Aron é autor de uma distinção importante entre o que designou como liderança americana, a que Estados Unidos tinham direito, legitimamente, e o que chamou de república imperial, comportamento a que o país tinha sido empurrado em certas circunstâncias, por ambições imperialistas de correntes políticas ali existentes, como foi o caso da intervenção no Vietnã. Por sua combatividade e persistência, Aron conseguiu formar expressivo grupo de intelectuais liberais, que deram curso à sua obra, após a sua morte, em 1983. Presentemente esse grupo acha-se reunido em torno da revista Commentaire e da Fundação Raymond Aron” [Paim, 2001].

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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