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O Supremo Fundão

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No Brasil dos escândalos em série, nosso Parlamento protagonizou, no ano passado, um dos episódios mais escabrosos de todo o nosso panorama político recente, a saber, a propositura e a aprovação de um estratosférico aumento para o Fundo Eleitoral, o chamado “Fundão”. Como é de conhecimento público, em 2021, o Executivo enviou ao Congresso Nacional a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) contendo a previsão de despesas para o ano subsequente, e que alocava para o Fundão a verba de 2,1 bilhões de Reais. Após sua chegada às mãos dos Parlamentares, a LDO sofreu emendas que alteraram a fórmula de cálculo do Fundão, a ponto de elevá-lo ao patamar de 5,9 bilhões, quase o triplo empregado nas eleições de 2018 e mais que o dobro das corridas municipais em 2020.

O valor acima sofreu um veto presidencial e, em seguida, os Congressistas trataram de derrubar o veto e de restabelecer o montante de quase 6 bilhões. Porém, em mais um dos tantos arranjos espúrios com recursos públicos – que, entre nós, não são vistos como oriundos do bolso dos pagadores de impostos, mas como “dinheiro de ninguém”, disponíveis ao bel prazer dos Poderosos -, o Presidente da República finalmente sancionou a LDO com a fixação do Fundão em 4,9 bilhões[1]. Algo semelhante a um acordo de cavalheiros que, por desejo próprio, chegaram a uma média aproximada entre a soma inicial pretendida pelo Executivo e o valor aumentado pelo Legislativo.

Diante desse quadro, o Partido NOVO ingressou, no Supremo Tribunal Federal (STF), com uma ação questionando a constitucionalidade da LDO, com base nos seguintes argumentos principais: (i) a alteração do cálculo do novo montante violaria nossa Constituição Federal (CF), que atribui ao Executivo, em caráter de exclusividade, a iniciativa de desenhar a espinha dorsal da lei orçamentária[2]; e (ii) o aumento exponencial do Fundão afrontaria o princípio constitucional da moralidade, sobretudo no atual período de pandemia e reconhecida crise econômica.

Na última semana, pela esmagadora maioria de nove votos a dois, o Plenário do STF rejeitou a ação, sob a alegação precípua de que a estipulação do valor do Fundão caberia unicamente ao Legislativo, de modo que a apreciação do assunto pelo Judiciário implicaria um atentado à autonomia dos Poderes[3].

Caro leitor, conto desde já com sua habitual paciência diante do preâmbulo um tanto longo, porém indispensável à contextualização de um assunto complexo como esse, cuja abordagem açodada poderia dar margem a lacunas na compreensão e a reações apaixonadas, o que está longe de ser o nosso escopo. Afinal, o tratamento a certos temas delicados demanda tempo para sua absorção e um bom grau de temperança em prol da manutenção da objetividade.

Embora não tenha sido este o objeto propriamente dito da ação em análise, cumpre salientar, logo de pronto, a inconstitucionalidade do Fundão em si. Após a proibição pelo STF, em 2016, do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas, o Fundo Partidário já existente na época passou a ser insuficiente para bancar os custos milionários com publicidade e marketing políticos. Foi então que nossos parlamentares, em mais uma rápida mobilização em torno de seus interesses pessoais, aprovaram a Lei 13.487/17 para a instituição do Fundão.

No entanto, como bem acentuado pelo professor Modesto Carvalhosa em artigo publicado no Estadão[4], a criação da verba em si já teria sido inconstitucional, pois, sendo os partidos políticos entes privados, estes só poderiam receber fundos públicos por força de uma emenda Constitucional, e não de mera lei ordinária, como é o caso da supramencionada norma.

Nas palavras de Carvalhosa, o Fundão, criado por “uma lei inconstitucional, que legaliza a corrupção”, já padece do vício da inconstitucionalidade em sua própria origem. Assim sendo, como o aumento questionado pelo NOVO recai sobre o Fundão inconstitucional, sendo um acessório deste, é claro que a majoração só pode ser tão inconstitucional quanto a verba em si. Afinal, segundo o velho princípio jurídico, o acessório segue o destino do principal.

Contudo, os ministros se recusaram a apreciar o mérito da ação e pararam na etapa anterior a este, como se fosse “proibido passar dali em diante”, pois seria “passo demasiadamente largo conferir ao Supremo a tarefa de corrigir as opções legislativas feitas pelos representantes do povo no que toca tão somente ao estabelecimento das prioridades orçamentárias para o ano de 2022“, como manifestado no voto do ministro Nunes Marques[5], acompanhado em massa por seus colegas.

Como tem sido praxe na cúpula do nosso Judiciário, esse foi mais um caso em que os magistrados não resolveram a questão de fundo, tendo se omitido sobre esse tema relevantíssimo para nossas contas públicas. Afinal, a majoração do Fundão foi ou não constitucional? Eis aí mais uma questão mantida em suspenso por nossas Togas Supremas que tornaram a se omitir propositadamente, e deixaram de dirimir os litígios, e de atender às demandas de uma sociedade que aguarda respostas a questões prementes para o país. Eis aí novamente o sintoma do processualismo patológico que atinge em cheio o STF, como salientado pelo professor Joaquim Falcão[6] e tantas vezes reiterado nesta coluna.

Aliás, curioso deparar com tamanho pejo da nossa Suprema Corte diante da separação dos poderes. Logo ela, que não hesita em legislar em reiteradas ocasiões, usurpando amiúde atribuições privativas do Legislativo para a promulgação de normas sobre temas relevantes como, por exemplo, a criação de tipos penais[7] e a ampliação de rol de excludentes de ilicitude criminal[8]. Sem falar na já habitual instauração de inquéritos de ofício, como foi o caso do famigerado “inquérito do fim do mundo”, em visível desconsideração às atribuições do Ministério Público e das autoridades policiais.

Portanto, ao alegar, no caso em exame, uma suposta violação ao princípio da autonomia dos oderes, o Tribunal, além de adotar conduta incoerente com seus recentes arroubos à la Robespierre, torna a banalizar seus desvios. É como se transmitisse à população a seguinte mensagem explícita: estamos sempre prontos a legislar e a avocar para nós competências que não nos cabem, mas fechamos os olhos e os ouvidos a qualquer tipo de argumento que não nos convenha apreciar.

Viram as costas não apenas a considerações legitimamente apresentadas pelas partes litigantes, como ainda aos anseios do cidadão que custeia seus luxos. Tanto assim que o julgado ora discutido implicou visível menosprezo ao resultado de uma pesquisa promovida, poucos dias antes do julgamento, pelo prestigioso Instituto Milênio, e indicativa de que quase 90% dos Brasileiros se opõem ao uso do Fundão em seu valor majorado[9].

Não que a percepção popular deva se sobrepor ao tecnicismo jurídico, único elemento capaz de nortear, com segurança, decisões tomadas no âmbito de um Estado de Direito. Até porque, se os aspectos técnicos tivessem sido ao menos avaliados, possivelmente teria prevalecido a tese do partido autor da ação, pelo menos diante do teor explícito do já citado Art. 61 da CF, segundo o qual cabe privativamente ao Presidente da República a iniciativa de leis que disponham sobre matéria orçamentária. Ora, neste caso, tendo a majoração partido do Parlamento, não teria sido muito difícil, nem mesmo para as mentes mais fracas dentre as Togas, perceber que a elevação do valor implicou desrespeito direto e frontal à nossa Lei Maior.

Portanto, a par do tecnicismo discutido acima, o caso envolve um juízo moral em torno da conduta de legisladores que, lançando mão de seu poder, dispuseram em causa própria, assegurando um aumento exponencial às suas futuras campanhas. O quadro assume contornos ainda mais graves se pensarmos que essa manobra parlamentar foi urdida em plena pandemia e grave crise econômica, em que a sociedade civil como um todo se vê jogada em um abismo de miséria e desalento; ,as nossas Togas Supremas, não muito interessadas na aferição da moralidade pública, tornaram a se mostrar coniventes com mais esse escárnio aos olhos da população.

A ironia de todo esse enredo trágico reside na polissemia da palavra “fundo”, que pode significar tanto aquilo que está abaixo da superfície quanto uma quantidade de dinheiro disponível em um dado momento. Desse modo, medidas imorais como a majoração do Fundo Eleitoral nos conduzem rapidamente ao Fundo do Poço da irresponsabilidade fiscal e do descrédito.

Na obra José e Seus Irmãos de Thomas Mann, inspirada no relato do livro de Gênesis sobre a trajetória de José do Egito, o protagonista, vítima da inveja extremada de seus irmãos, é lançado ao fundo de um poço sujo e distante da casa paterna. Porém, abençoado que era, foi resgatado por comerciantes ismaelitas, e, daí em diante, trilhou sua jornada gloriosa, não sem antes experimentar as agruras de três dias e três noites no isolamento do seu fosso. Em relação ao Brasil, segue a incerteza sobre o modo e o momento em que seremos retirados do Fundo desse poço ao qual nos arremessam, dia após dia, nossos políticos e nossos Togados alheios aos escrúpulos.

[1] https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-sanciona-orcamento-com-fundo-eleitoral-de-49-bilhoes-25365138

[2] Art. 61, Parágrafo 1, b) da CF

[3] https://www.migalhas.com.br/quentes/360694/stf-mantem-fundo-eleitoral-de-r-4-9-bilhoes-para-2022

[4] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,inconstitucionalidade-do-fundo-eleitoral,70003789481

[5] https://www.conjur.com.br/2022-mar-03/supremo-tribunal-federal-valida-fundo-eleitoral-57-bilhoes

[6] https://ibre.fgv.br/blog-da-conjuntura-economica/artigos/hoje-o-supremo-coloca-o-brasil-em-suspenso

[7] https://www.migalhas.com.br/depeso/319644/stf-e-a-criminalizacao-da-homofobia

[8] https://www.conjur.com.br/2013-mai-13/leia-acordao-stf-autoriza-interrupcao-gravidez-anencefalo

[9] https://www.institutomillenium.org.br/quase-90-dos-brasileiros-sao-contra-fundo-eleitoral-de-r-49-bi-diz-pesquisa/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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