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O STF que cassa mandatos e caça a vontade popular

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Não é exagero afirmar que, no Brasil atual, vivenciamos riscos iminentes a todas as nossas liberdades, incluindo a de manifestação e a de votar e ser votado. Contrariamente ao ocorrido durante o sombrio período da Guerra Fria, tais ameaças não parecem advir das armas – pelo menos, não por enquanto -, mas das canetas de civis que deveriam envidar todos os seus esforços para salvaguardarem o império da lei e da ordem constitucional.

Como amplamente divulgado pela mídia, o deputado estadual Fernando Francischini (União Brasil/PR) havia tido seu mandato cassado, em 2021, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em virtude da divulgação, em uma transmissão ao vivo, de notícias supostamente falsas acerca de fraudes em urnas eletrônicas. Na época, a perda do mandato havia sido determinada pelos ministros Luís Felipe Salomão, Mauro Campbell, Sérgio Banhos, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso[1], como forma de sanção a um ato que teria representado abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação social.

Inconformado, o parlamentar levou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde o imbróglio jurídico foi marcado por etapas variadas, desde uma decisão monocrática do ministro Nunes Marques favorável a Francischini, passando pelo direcionamento ao plenário virtual composto pelos 11 ministros, até a chegada final dos autos à 2ª. Turma da Corte, que foi o órgão efetivamente responsável pelo julgamento. Em respeito a você, caro leitor, que não merece afundar na tempestade das estapafúrdias idas e vindas nos corredores dos nossos tribunais, omitirei os detalhes da tramitação de todo o processo perante o STF, contentando-me em sintetizar que, pelos votos dos ministros Fachin, Lewandowski e Gilmar Mendes, a referida Turma acaba de revogar uma liminar concedida por Nunes Marques, restaurando, assim, a cassação, sob as alegações de que as declarações de Francischini não estariam amparadas pela liberdade de expressão e de que o deputado teria incorrido em abuso de poder político[2].

Na era maçante das justificativas sobre a inexistência de viés politiqueiro nas opiniões, peço alguns segundos do seu tempo para reafirmar que não me proponho a fazer apologia ao parlamentar em questão ou aos seus aliados, e que meu foco consiste em esclarecer as distorções jurídicas praticadas ultimamente, em detrimento das liberdades. Como fiz, aliás, na semana passada, ao manifestar meu repúdio à censura imposta pelo ministro Alexandre de Moraes ao Partido da Causa Operária (PCO), de orientação ideológica diametralmente oposta à de Francischini e aos meus próprios ideais liberais.[3]

De volta ao caso em si, a primeira irregularidade gritante reside nas figuras dos julgadores, ou melhor, na coincidência de pelo menos um nome que apreciou o mesmo caso em duas instâncias diferentes. Refiro-me especificamente ao ministro Fachin, que votou pela cassação tanto no TSE quanto no STF, conduta esta inadmissível em qualquer Estado de Direito que se qualifique como tal.

Ora, até mesmo para os estranhos ao universo jurídico, é óbvio que a participação de Fachin na análise do litígio junto à corte eleitoral já o teria impedido de apreciar o mesmo assunto perante a corte constitucional, como dispõe, com todas as letras, o nosso Código de Processo Civil (Novo CPC)[4]. Caso contrário, de que serviria encaminhar o processo a outras instâncias, se a manutenção da cassação seria uma certeza a priori, em virtude da atuação, em grau de recurso, dos mesmos juízes que haviam proferido a decisão atacada?

Quanto ao mérito da decisão ora comentada, esta me parece mais uma das sucessivas afrontas das supremas togas à liberdade de expressão. A síntese do voto do ministro Gilmar Mendes, segundo o qual “(…) o discurso de ataque sistemático às urnas eletrônicas, mais notadamente no dia das eleições, não pode ser tolerado em um Estado Democrático de Direito (…)”, mostra que, no entendimento do togado, o regime democrático não poderia tolerar certos discursos. Considerando, porém, a definição de Democracia como sistema de institucionalização de conflitos ensejados por visões e interesses diversos, não seria a visão de Gilmar uma negação do próprio Estado Democrático de Direito, onde todos disporiam da faculdade de manifestar suas opiniões, por mais ridículas ou abjetas que pareçam?

A transformação da confiabilidade das urnas eletrônicas em verdadeiro dogma, insuscetível de questionamento, é um bom termômetro da timidez do espírito democrático entre nós. Ora, em uma sociedade plural, é tão lícito duvidar quanto o é confiar no sistema de votação, cabendo às instituições atuarem para se mostrarem cada vez mais legítimas em vez de calarem e punirem cidadãos cujas opiniões não se alinhem ao que certas autoridades desejam ouvir.

Assim, foi preocupante ver um discurso incrédulo sobre o sistema eleitoral convertido em fundamento para a cassação de um mandato parlamentar, sanção esta que deveria ser reservada a casos extremos. Nossa Constituição Federal (CF) contempla tal possibilidade diante de hipóteses excepcionais de comprovado abuso de poder econômico, corrupção ou fraude[5], que não me parecem ter sido demonstradas nos autos. De fato, o parlamentar não foi flagrado comprando votos, aliciando fiscais, transportando funcionários da administração pública/de empresas estatais ou quebrando urnas e móveis das zonas eleitorais, mas apenas suscitando dúvidas quanto à falibilidade do sistema.

Cumpre ter em mente, neste caso, que a cassação de um mandato importa em gravíssima ruptura da vontade popular manifestada pelo voto, razão pela qual só é admissível nos restritos casos mencionados acima. Quer admiremos ou execremos as opções por parlamentares liberais, centristas, ecologistas, marxistas, ou de outras inclinações, nossa opinião de nada importa diante da escolha do eleitor, que tem de ser soberana, sucumbindo tão somente em situações de comprovada fraude. Caso contrário, a interpretação mais ampla do dispositivo constitucional referente à cassação de políticos eleitos, como no processo Francischini, dará margem a arbítrios, possibilitando às togas virarem as costas aos anseios de quem vai às urnas, e apontarem, segundo seus próprios desejos, os mandatários que permanecerão e os que serão removidos de seus cargos eletivos.

Enquanto o verbo “cassar”, etimologicamente alusivo à noção de quebra ou ruptura, significa a revogação ou anulação de algo, “caçar” implica uma relação predatória entre o caçador e sua presa. No perigoso precedente envolvendo o parlamentar paranaense, nossas supremas togas conjugaram os homófonos de uma tacada só, pois não apenas romperam um elo constituído pelos eleitores, como também lançaram mão de suas canetas para aniquilarem a carreira política de alguém que ousou verbalizar sua descrença em relação às urnas.

Durante a Conferência Internacional da Liberdade, recentemente promovida pelo Instituto Liberal[6], o painel intitulado “O Judiciário e os riscos para a liberdade”, composto pelo professor Modesto Carvalhosa, pela procuradora Thaméa Danelon e pela juíza Ludmila Grilo, discutiu a atuação recente dos nossos tribunais superiores, notadamente do STF, como principal fator ensejador de insegurança jurídica entre nós. Após a fala de Carvalhosa sobre a recriação do “crime político”, desde a escandalosa instauração do chamado inquérito das fake news, Thaméa elencou diversas liberdades garantidas pela CF, a serem tuteladas pelo Poder Judiciário, e afirmou que nossa Suprema Corte tem sido a primeira a violá-las. “Quando o órgão é responsável por assegurar esses direitos, e o próprio órgão é o violador, de fato, nós não vivemos em uma ordem, nós vivemos no caos”, concluiu Thaméa, em tom desolado.

Constatada, assim, mais uma situação caótica representada pela cassação de Francischini, resta a pergunta: de que modo, às vésperas de uma eleição polarizada e dispondo de instituições tão frágeis e corroídas pelo personalismo e pela corrupção, começaremos a emergir das profundezas do abismo?

[1] https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Outubro/plenario-cassa-deputado-francischini-por-propagar-desinformacao-contra-o-sistema-eletronico-de-votacao

[2] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/segunda-turma-do-stf-restabelece-cassacao-do-deputado-francischini/

[3] https://www.conjur.com.br/2022-jun-03/alexandre-moraes-suspende-contas-pco-redes-sociais

[4] Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: (..) II – de que conheceu em outro grau de jurisdição, tendo proferido decisão

[5] Art. 14 (…) § 10 – O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude

[6] https://www.youtube.com/watch?v=erm0xMtlb08

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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