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O solitário papel do advogado criminalista na defesa da liberdade

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Com o meu abraço cordeal, trago-lhe duas notícias, que me parecem agradáveis para sua vida jornalística: o trânsito em julgado da sentença do Juiz da 9ª Vara Criminal, que o absolveu no caso da querela do General Mendes de Morais; e o próximo julgamento do Coronel Guilherme Telles Ribeiro, no Juízo da 10ª Vara Criminal, dia 17 do corrente, às 13 horas.”

Assim se inicia uma das inúmeras cartas enviadas pelo advogado criminalista Heráclito Fontoura Sobral Pinto ao seu fiel cliente, “amigo e confrade” – como se referia o advogado –, o jornalista Carlos Lacerda. Sabemos muito sobre Carlos Lacerda, sobre como enfrentou o governo de Getúlio Vargas, como se pôs vigorosamente diante da tribuna e por detrás da máquina de escrever, como se posicionou firmemente contra o comunismo que assolava e sempre assolou nosso país. Sabemos de Carlos Lacerda político, sabemos de Carlos Lacerda jornalista. Mas o que sabemos sobre quem garantiu que Carlos Lacerda se fizesse presente no plenário?

A política cheira a lados, sempre. Posição e oposição, todos falam de liberdade e de direitos, cada um acreditando saber mais que o outro sobre um ou outro. Armados com conceitos e teorias, se põem a discursar sobre seus pontos de vista, arrastam multidões, representam multidões. Mas, às vezes, me ponho a perguntar: saberiam os políticos estar sozinhos e, ainda assim, manterem-se corajosos diante da injustiça? Saberiam, os políticos, conviver com a solitude da verdadeira liberdade? Saberiam eles tirar suas forças de um só voto?

Não importa. O que sei, no entanto, é que, em certos tempos, tempos em que liberdade e direitos se definem e se confundem entre si por suas ausências e por suas urgências, eles sempre terão uma mão amiga que lhes toca os ombros e lhes diz para continuar a sua caminhada.

A política, hoje, é a arte de tentar criar um mundo sem males – por pior que seja essa concepção, mas, sejamos realistas. Uns dizem que, para acreditar e lutar por um futuro melhor, é preciso coragem. Saberiam eles, entretanto, lutar por um futuro melhor mesmo sem acreditar nele?

Injustiça; uma palavra que, para todos aqueles que atuam com o crime, é quase inerente à própria existência humana. Crime, a injustiça par excellence, normalmente enfrentada por policiais relapsos, promotores vaidosos e juízes que abandonam suas togas para sucumbir ao sedutor poder de salvar o mundo. Crime, a corrupção das breves e belas intenções humanas, que pode ser cometido não só pelo criminoso, mas também pelos nossos heróis. Como acreditar em um futuro melhor assim? Erros judiciais, investigações incompletas, acusações infundadas. Não muito raro, as condenações que tantos comemoram são só mais um capítulo neste livro, na quase eterna história dos crimes, da corrupção, da sujeira que é o homem. Como acreditar em um futuro melhor assim, quando juízes e bandidos se confundem? Mas, pensando bem, o que mais se pode fazer que não lutar?

Sobral Pinto, católico fervoroso, anticomunista, udenista, viria a defender os abjetos Luiz Carlos Prestes e Harry Berger (Arthur Ewert), ambos comunistas declarados, adoradores das mais nojentas ideias e práticas, contra os domados tribunais da Era Vargas e, após, Prestes novamente, e Graciliano Ramos, contra o Tribunal de Segurança Nacional, órgão máximo de segurança do período da ditadura militar brasileira. Defendeu também Juscelino Kubistchek, inimigo político de seu amigo Carlos Lacerda, assim como atuou na repatriação de Anita Prestes, filha de Prestes e Olga Benário, trazendo-a de volta dos braços do governo nazista. Pôs-se, por toda sua vida e carreira, contra a opressão dos poderosos, como mandariam não só os pressupostos liberais, mas também os princípios eternos do cristianismo:

Quaisquer que sejam as minhas divergências com o comunismo materialista — e elas são profundas —, não me esquecerei, nesta delicada investidura que o Conselho da Ordem me impôs, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada, a defesa. Espero que Deus me ampare nesta hora grave da minha vida profissional, dando forças ao meu espírito conturbado para mostrar aos juízes do Tribunal de Segurança que Luís Carlos Prestes e Arthur Ernest Ewert ou Harry Berger são membros, também, desta vasta e tão atribulada família humana”, declarou Sobral Pinto em uma carta.

Crime: definição dada a todo ato que se quer ver punido, seja ele crime ou não. Criminoso: nome dado a todos aqueles que são indesejáveis aos olhos do poder, sejam eles criminosos ou não. Nesta hora tão íngreme, em que alguém é acusado de um crime, que toda a sociedade se põe ao lado contrário por instinto de massa, por autopreservação, mas também – a história bíblica já nos conta – por expiação, por diversão e por prazer, é que haverá aquele que, acostumado, estará também, mais uma vez e sempre, ao lado dos excluídos. Há uma cadeira no tribunal indistinta, miserável, sempre ocupada por alguém – seja quem. Não distingue pobre de rico, bem-nascido de mal-nascido, homem de família de criminoso profissional: o banco dos réus. Ao seu lado, tão baixa quanto, há uma cadeira com nome e sobrenome, exigente, porém sem status algum. Ali, se senta a defesa.

Mas não confundam o advogado criminalista com seus clientes, mesmo que ele mesmo por muitas vezes não consiga distanciar seus interesses dos daqueles que representa. O apreço pela liberdade, muitas vezes repetitivo como um cacoete, que o faz vagar atormentado por noites, enroscado em dilemas morais, coloca-o em um ponto tão próximo do criminoso, mas tão distante, que já não sabe mais a quem representa, se o criminoso, se o crime, ou ele mesmo.

Quis custodiet ipsos custodes? Quem vigia os vigilantes? Quando promotor e juiz confabulam, quando saem de seus papéis públicos de acusar dentro da lei e o de julgar imparcialmente, quando buscam punição acima de tudo, muitas vezes sob os uivos da multidão frenética sedenta por mais um espetáculo, é neste cenário que a espada da justiça pode apontar para qualquer um – seja inocente, seja culpado. E é na tribulação do palco dos foros que triunfa solitário e anônimo aquele que vigia os vigilantes.

Mas infelizmente, como tudo o que é virtude, a advocacia criminal e os princípios imutáveis de sua atuação criminal foram tomadas pelo pensamento materialista, pela esquerda. Hoje, repito, infelizmente, o espírito que se fazia cheio da liberdade é ditado por aqueles que, mentirosos, se utilizam da liberdade para planejar a sociedade; que, diante de indivíduos, veem classes; que defendem a prisão de uns e a soltura de outros sem julgamento algum. Infelizmente, a advocacia criminal se tornou uma profissão povoada pela covardia e pela baixeza: pela esquerda.

O próprio Sobral Pinto, erigido a herói da esquerda – muito às custas da ignorância da direita. De fato, amava Prestes como um irmão – pois amava o pecador. Mas odiava o pecado, e fazia questão de dizer isso sempre que pudera. A esquerda, a filosofia do pecado, no entanto, não anuncia esta parte, e isso deve-se entender: não há virtude alguma, não há crescimento algum, não há nada que tenha valor, no materialismo, estéril por definição. De lá nada que preste sai. É por isso que a tudo maquia, a tudo engana, a tudo subverte. Estúpidos, como são, precisam de ídolos, mas, carentes de virtudes, só produzem mais e mais homens mesquinhos. Então, se utilizam do que não produziram, de nossos heróis, nossas virtudes e nossas conquistas.

Como diria Nelson Werneck Sodré: “o advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá o sustento e à sua família. Não é advogado.”

Vestem-se como advogados, atuam como advogados, ganham montanhas de honorários advocatícios; mas onde estão quando aqueles que julgam seus inimigos estão à deriva do poder constituído? Onde estão, aqueles que disseram ser o julgamento do Lula um julgamento político, agora que Alexandre de Moraes se utiliza da judicatura para esmagar opositores políticos? Estão fazendo mais e mais acusações contra seus inimigos, estão elogiando o Supremo Tribunal Federal, estão do lado do poder. Criticavam a Lei de Segurança Nacional – hoje, apoiam o uso dos crimes contra a democracia.

Os erros do povo são os erros do povo. Que errem. Jogarão uns e outros à fogueira e, após, se jogarão também. Fará o que o povo faz – errar. Uma multidão de cães, famintos por frenesi, insaciados, ávidos por destruição e caos. Não sabem o que fazem. Eis a democracia. O advogado criminalista errará – mas errará sozinho. Seus erros e seus acertos são seus, só seus.

Não existe advogado pela democracia. Não existe democracia, especialmente no direito criminal. Para um advogado, só há o império da lei, e a lei deve ser o império da justiça. Não há espaço para o consenso da democracia, para as paixões coletivas, o furor de manada, no coração daquele que ama o Direito e a Liberdade – são seus maiores inimigos. Ama o povo – mas o povo o odeia. O advogado criminalista não se mistura. Ele não compactua, ele não se associa. Atua sozinho. Não há nenhuma democracia na advocacia, há só solidão. É o individualismo em carne e osso. Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, como pode alguém que defende a liberdade se mostrar tranquilo ao se posicionar ao lado de uma multidão? A marca da defesa da liberdade é, muitas vezes, uma certa intranquilidade no trato, uma desconfiança para com a maioria e a minoria, é o paranoico ato de cobrir as próprias costas.

É incompatível o exercício da advocacia criminal com uma ideologia de tomada de poder como é a do materialismo histórico-dialético. É inconcebível o exercício da advocacia criminal com uma visão do mundo que separa oprimidos e opressores por classes, que dá um cheque em branco à sociedade para a utilização do Estado como forma de punição desses opressores. É impraticável o exercício da advocacia criminal através de uma filosofia que acredita na culpa coletiva, e, portanto, na responsabilização de pessoas sem culpabilidade e no perdão social como ferramenta de reparação histórica. Todos aqueles que assim o fazem não advogam – militam. Utilizam-se do Direito como forma de instrumento de poder, politizam a arte jurídica, destroem o Direito. Mercantilizam e politizam a vocação, esvaziam-na.

Se há um preconceito dos liberais e dos conservadores com os advogados criminalistas, um dos grandes motivos é que, de fato, é uma área tomada atualmente pela irracionalidade e pelo proselitismo. É realmente difícil descolar de nossas mentes ambas as imagens, a do advogado criminalista e a do intelectual que tenta culpar o sistema capitalista pelos crimes cometidos. E isso é uma vitória da esquerda – conquistar o imaginário das novas gerações, vinculando valores e virtudes tão importantes para a manutenção de nossa civilização a uma filosofia estéril e pútrida.

Mas há também o preconceito daqueles que acham que só eles sujaram as mãos pela liberdade, daqueles que acham que não há algo mais nojento do que fazer salsichas e fazer leis. Mal sabem eles que a existência de charcuteiros e de legisladores pressupõe a de magarefes e advogados criminalistas. Há sim coisas muito mais sujas do que uma charcutaria ou o Congresso e, por incrível que pareça, há nobreza em meio à imundice de nossos ofícios – uma delas é que garante as mãos limpas de outras pessoas.

De quatro em quatro anos, o povo elege alguém para lutar pela liberdade dele. Todos os dias há alguém que luta pela liberdade de todo aquele do povo que se vê perseguido pela justiça sanguinária que, muitas vezes, ele mesmo ajudou a armar. Demora muito pouco para que a imunidade de discurso que sustenta a coragem do parlamentar se torne caso de polícia. Já a imunidade do discurso do advogado criminalista, essa nunca existiu. Ainda assim, ele falará, a todo custo.

Sobral Pinto, já idoso, aos seus 75 anos de idade, ao receber voz de prisão de um major um dia após a promulgação do AI-5, assim o desobedeceu: “o senhor é major, portanto, tem o dever de cumprir as ordens de um general. Mas eu sou um paisana e não devo cumprir ordens de um major.” No alto de sua debilidade física, resistiu à prisão, tentou lutar, mas foi arrastado ao cárcere. Foi solto poucos dias após – nada que não fosse comum ao seu atuar.

Em tempos de paz, a fala tranquila, a oposição elegante do político e dos outros tipos de advogados se cria e se faz reverberar. Acostumados a terem espaço, a terem liberdade, a serem chamados de cidadãos, a burocracia e a oficialidade da tribuna são sua arena, com seus ternos cinza e suas gravatas impecáveis. Mas é quando o ar se faz denso demais, quando decretos e ordens judiciais prendem a voz na garganta, quando os bons são tratados como escória, que um tipo diferente de coragem se faz necessário. A coragem daqueles que sempre foram e sempre serão paisanas, dos que não se filiam a nada que não à liberdade crua, dos desobedientes, dos que desrespeitam fardamentos. São os tempos dos ternos pretos e das gravatas afrouxadas.

Vivemos tempos terríveis; terríveis, mas nem tão diferentes de outros tempos. Vivemos aqueles tempos em que injustiças que sempre foram cometidas se fazem mais evidentes – mas, para o criminalista, não mais urgentes do que sempre foram. É em tempos como estes, em que a injustiça de todo dia perde a vergonha, quando a injustiça que antes se fazia pelas sombras passa a caminhar à luz do dia, que aqueles que não tem medo do escuro se fazem tão importantes.

Sinto-me no dever de comunicar (…) que os argumentos ora invocados para combater o comunismo foram os mesmos que Mussolini invocou na Itália em 1922 e que Hitler invocou em 1934 na Alemanha. (…) Vivo da advocacia, pela advocacia e para a advocacia, por entre dificuldades financeiras e profissionais que só Deus conhece. Só tenho uma arma, senhor presidente: a minha palavra franca, leal e indomável.”, escreveu Sobral Pinto ao presidente Castello Branco.

Se aqueles que dizem lutar pela liberdade realmente sabem a gravidade do tempo em que vivemos, se realmente temem, está na hora de assumir que já não há mais espaço para discursos pacíficos e transigentes. O tempo da diplomacia já foi. É hora de assumir que a questão da liberdade voltou para casa, de onde veio, onde nasceu; liberdade, hoje, já é, mais uma vez, uma questão criminal – como era no princípio, agora e sempre.

É hora de assumir que a liberdade deixou de ser assunto para moleques mimados ganharem fama ou o primeiro emprego. É hora de assumir que defender a liberdade, de verdade, sempre foi e sempre será temer perdê-la ao fim do dia, enfrentar perigos imensuráveis, colocar a si mesmo em risco, o tempo todo. É hora de assumir que liberdade não é um assunto político, não é um assunto para os que se escondem em multidões, não é um assunto partidário: é uma questão de caráter, é uma questão individual.

Maldito seja o dia em que toda uma sociedade precisa de um advogado criminalista. Maldito, sim; mas esse dia sempre chega. Que tenhamos coragem.

*Igor Damous é advogado criminal.

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