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O que é o liberal conservador?

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O crescente movimento que contesta a hegemonia esquerdista no pensar nacional parece alimentar um curioso prazer por contendas de menor envergadura. Liberais e conservadores, por exemplo, parecem se deleitar em disputar campeonatos de preciosismo linguístico, numa competição para saber quem detém o monopólio do verdadeiro significado do liberalismo ou do verdadeiro significado do conservadorismo.

Nunca gostei muito desse tipo de discussão de um dogmatismo doutrinário absoluto que mais me parece um monte de afirmações de ego e que obras como O Liberalismo Antigo e Moderno de Merquior demonstram fazer pouco sentido histórico; os termos têm um entendimento geral que pode ser identificado em seu desenvolvimento prático e teórico no transcorrer do tempo, mas nem o pensamento liberal, nem o pensamento conservador são abstrações perfeitas e unívocas, sem subdivisões e nuances internos contrastantes, variando em grupo, tempo e lugar; nem um nem outro tem um cânone absoluto, tal como o pensamento marxista tem a obra de Marx ou o Budismo tem o Dharmapada. Adam Smith, Locke, Hayek, Rothbard, Mises são semelhantes e, ao mesmo tempo, diferentes entre si; há liberalismos, no plural, tal como há conservadorismos.

Sendo assim, transformar essa realidade em uma discussão meramente idealista, como se estivéssemos em uma religião avaliando a ortodoxia ou a heterodoxia dos demais, é para mim um esforço surreal por singularizar o que é plural. De todo modo, uma das expressões que pessoalmente mais aprecio, por transparecer um significado mais específico e amplo, e que é tratada como “patinho feio” por todos os lados, é a alcunha de “liberal conservador”. Alguns articulistas, até bastante respeitáveis, já a trataram como uma aberração, um oximoro, supostamente inventado por brasileiros; outros dirão que o liberal conservador é na verdade um falso liberal querendo preservar seu “autoritarismo antiquado em costumes e valores”; outros ainda dirão que é um liberal querendo emporcalhar as nobres tradições do “conservadorismo católico”.

Fiel ao meu costume de entender esse assunto, frise-se, como plural e sujeito a diferentes abordagens vocabulares dependendo da fonte e do momento histórico, já encontrei a expressão em portais e publicações estrangeiros, em Raymond Aron e em Alexis de Tocqueville, para ficar em alguns exemplos. Porém, minha grande surpresa foi constatar que a definição mais detalhada do rótulo e, o que é melhor, contextualizada na trajetória do pensar político brasileiro, está na obra do célebre historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, de cuja erudição na área ninguém ousará duvidar.

“Poderíamos chamá-los de liberais conservadores, utilizando a expressão que Victor Hugo empregou para caracterizar o liberalismo da Restauração, sintetizado na figura de Guizot. A expressão é, sem dúvida, apropriada, pois Guizot era um dos autores prediletos de Uruguai, que o citava extensamente para justificar o Poder Moderador (‘o rei reina, governa e administra’) e como fonte para a história política e constitucional da França. Os liberais conservadores tornaram-se particularmente influentes sob a Monarquia de Julho. Seu principal objetivo era completar a revolução, construir uma França nova a partir da demolição da antiga. Sobretudo, construir instituições de governo, resgatar a política do domínio da paixão a que a tinham confinado os homens de 1789, e recolocá-la dentro do círculo da razão. (…)

Os liberais conservadores eram exatamente isso, liberais conservadores. Seu conservadorismo não eliminava o liberalismo. Seu modelo de sociedade, ou sua utopia política, continuava sendo a sociedade liberal e a política liberal.”

A maior diferença estava em que entre os saquaremas se encontravam aqueles que, valorizando a unidade histórico-conceitual de pátria e a identidade nacional, desconfiavam de simples transplantações abstratas do figurino institucional de outros países, como o federalismo puro, colocando nas mãos dos senhores regionais, em um país pouco povoado, o comando de aspectos como a segurança e a justiça. Já os luzias como Tavares Bastos primavam pela defesa do federalismo total e por enxergar o Brasil, mesmo que com a melhor das intenções, como se já fosse uma Inglaterra ou os Estados Unidos. Depois de dizer que a expressão “liberal conservador” nasceu com Victor Hugo na França e readaptá-la a um pensamento marcante em um dos dois grandes partidos do Império brasileiro, berço de nossa cultura política como pátria independente, José Murilo explica o cerne da questão: tanto os conservadores (saquaremas) quanto os luzias (liberais) compartilhavam convicções centrais do liberalismo institucional do século XIX. Queriam o governo representativo, a Constituição, uma maior autonomia para as garantias de direitos individuais. Todos princípios eminentemente liberais, no sentido histórico da expressão – não no sentido ideológico de alguns radicais modernos para quem Roberto Campos, por exemplo, não seria liberal em acepção alguma do termo, apenas porque discordava de Rothbard e Friedman ao ser contra a legalização da maconha.

Vejamos este outro trecho:

“A posição tradicional dos liberais, desde a década de 1830, foi a de que a liberdade exige descentralização, despotismo requer centralização. (…). Nesta postura, o poder central é visto sempre de maneira negativa, ele é inimigo das liberdades civis, mata a iniciativa das localidades e dos indivíduos, impede o desenvolvimento da prática da cidadania. (…). Para os conservadores, a relação era mais complicada. Falo, naturalmente, de conservadores preocupados com o problema da liberdade, daqueles que Victor Hugo chamava de liberais conservadores, a geração que veio após a Revolução e a criticava sem a negar, como Tocqueville, Benjamin Constant, Guizot, Thiers. No Brasil, esse grupo foi representado principalmente pelo visconde de Uruguai, político e teórico do Partido Conservador, um dos principais engenheiros do Regresso e depois seu crítico. (…).

Para conservadores liberais como Uruguai, a liberdade era ameaçada não só pelo Estado como também pelos particulares. A experiência da Regência, segundo ele, tinha ensinado essa lição. O aumento do poder das assembleias provinciais tinha permitido o fortalecimento das facções locais, germe das revoltas. Isso ameaçava, é certo, a unidade do país, que ele prezava. Mas ameaçava também a liberdade do cidadão. A vitória de uma facção local significava o fim da liberdade dos partidários da outra, significava o reino do arbítrio, o fim do governo civilizado.”

Naquela época, como hoje, os fatos concretos e a pluralidade humana denunciavam a limitação de certos preciosismos vocabulares e de conceitos fixos no maravilhoso e simples mundo das teorias. José Murilo mostra que muitos dos apaixonados luzias e mesmo dos republicanos, defensores argutos do federalismo e da descentralização de todas as esferas (administrativa, econômica, política) no Brasil do século XIX não tinham qualquer interesse, por exemplo, em abolir a escravatura.

Entre os conservadores saquaremas, igualmente havia aqueles que, como o patriarca José Bonifácio, defendiam um movimento de criação de uma ordem jurídico-institucional, de cima, que encaminharia o fim da escravidão, enquanto outros usavam o argumento da ordem social, da necessidade econômica e dos costumes, como Bernardo Pereira de Vasconcelos, para defender a tragédia escravocrata.

Saindo do Brasil, entre os liberais históricos, destacava-se Locke como defensor da tolerância religiosa, mas ele não enxergava os ateus com a mesma condescendência. Dir-se-ia anacronicamente ou por preciosismo ideológico que Locke, vejam só, não era liberal? Temos ainda Edmund Burke; irlandês que inspirou Guizot, Tocqueville, e no Brasil, boa parte dos saquaremas, e também conservadores anteriores à fundação do partido, como o visconde de Cairu, era um Whig – o protótipo do Partido Liberal na Inglaterra -, adversário dos tories, defensores de uma visão mais tradicionalista e agrária. Burke era liberal ou conservador? A que resposta a nossa direita atual no Brasil chegaria depois de se engalfinhar quando interrogada sobre isso? É preciso haver uma resposta absoluta e exata?

Burke era adepto do livre comércio e defendeu os colonos americanos e os indianos, mas construiu o argumento mais famoso e consistente contra a revolução abstratista, Reflexões sobre a Revolução na França, considerado um marco para o conservadorismo inglês e para o pensamento conservador mundo afora. Em contrapartida, existe na Inglaterra também uma tradição conservadora mais protecionista, menos afeita às pregações liberais do livre comércio, representada, por exemplo, por Benjamin Disraeli – o que derruba um outro argumento que já encontramos por aí, o de que a expressão “conservador”, em qualquer tempo, autor e lugar, designaria automaticamente uma corrente de pensamento que aceita as principais teses institucionais e econômicas do liberalismo.

Será que essa longa coleção de exemplos e excertos vencerá algumas resistências teimosas de vozes que se creem monopolizadoras do significado dos termos, que taxam outros usos vocabulares de imbecis simplesmente porque não conhecem a fonte teórica donde foram tirados? Parece-me que o mais sábio para conceituar as palavras é procurar características predominantes e constantes no seu sentido ao longo do tempo, mas também com uma filtragem relativa à realidade de cada país e cultura e às questões que preocupam em cada momento histórico.

Se o conservador é aquele que valoriza uma unidade histórico-conceitual pátria, um gradualismo de transformações, o ensejo a certo valor da ordem e das instituições historicamente construídas, e reage ao abstratismo revolucionário, tal como Burke e também os “reacionários” franceses – ao contrário de Burke, defensores do Antigo Regime – reagiram contra as pretensões totalizantes da Revolução Francesa; e se o liberal é aquele que adota, com essa ou aquela nuance, esse ou aquele grau, a convicção no valor de uma maior autonomia ao indivíduo, em liberdades de expressão e mercado, em constitucionalismo e representatividade – se assim é, historicamente, em diversas bibliografias sérias, o liberal conservador é alguém que estabelece um casamento entre essas duas preocupações, o que, na essência, já era a posição de Burke, como Merquior reforça em O Liberalismo Antigo e Moderno. Também é, em essência, a posição de Hayek, da Escola Austríaca, que se considerava afeito às teses de Burke.

Com esse texto, não me dirijo, é certo, aqueles radicais do anarquismo capitalista para quem Mises era socialista só por defender a existência do Estado (!), ou aos tradicionalistas para quem o fim da Idade Média é a maior tragédia da história humana. Dirijo-me a quem esteja disposto a averiguar a questão com todos os seus matizes e começar a pensar em não reagir de automático com gritarias ou vitupérios diante de um suposto contendor apenas por usar termos de maneira diferente, sem nenhum aprofundamento no assunto. Isso só cria divisões desnecessárias e nos afasta da serenidade e prudência de que tanto precisamos neste momento.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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