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O país da “democracia para sempre”

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Nem bem guardamos os enfeites natalinos e já ecoam notícias que, embora provenientes de instâncias de poder diversas, soam como um só tema musical executado por diferentes naipes de instrumentos da mesma orquestra. Fenômenos distintos na exteriorização e em seu modo de implementação, mas idênticos em sua essência repressora.

Acaba de ser divulgada uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, no último mês de dezembro, determinando, no âmbito das investigações sobre os eternamente enigmáticos “atos antidemocráticos”, uma quebra de sigilo telefônico e dados que, segundo a reportagem, “dá amplos poderes aos investigadores da Polícia Federal que atuam sob seu comando e pode alcançar dimensões monumentais[1]. Conforme a peça jornalística, a deliberação abrange também a escuta de todas as pessoas que tiverem se comunicado com os investigados, “o que amplia indefinidamente o número de alvos”, nas palavras do jornalista. Moraes determina ainda a localização geográfica de todos os envolvidos e dos contatos telefônicos destes, e, no auge de sua inquietação diante dos tais ofensores da ordem democrática, ordena às companhias telefônicas o fornecimento dos registros de ligações desde 2017, em uma retroatividade inédita de mais de longos 5 anos.

A partir da matéria, deduzo que essa nova operação alavancada pelo autointitulado arauto da nossa democracia seja, em sua natureza, idêntica àquela desencadeada contra os ditos “empresários golpistas de whatsapp”, sobre a qual já teci comentários neste espaço, e que apenas ora reitero, para não abusar da sua já exaurida paciência[2]. Com a sutil diferença de que, à medida que se aperfeiçoam as estratégias alexandrinas, maior o raio de alcance de suas decisões, de modo que, abrangendo um número indeterminável de pessoas grampeadas durante mais de um quinquênio, dessa vez, o rigor da toga de Moraes se fará sentir por um grupo infinitamente mais amplo que a meia dúzia dos “golpistas” de outrora.

A privacidade é valor relativamente recente na humanidade, pois, até poucos séculos, nossos ancestrais, confinados com famílias numerosas, e atrelados muitas vezes a trabalhos braçais em populosas coletividades, sequer concebiam o que fosse intimidade. Nem mesmo aos monarcas era dado o privilégio de desfrutar de um círculo íntimo, cercados que eram por criados integrados às suas atividades diárias, como os cuidados com a higiene e até a realização das necessidades fisiológicas. Com a fragmentação dos núcleos familiares por unidades habitacionais autônomas, o enriquecimento dos povos e, sobretudo, com a invenção dos meios de comunicação de longa distância, começamos a nos tornar intransigentemente zelosos do nosso âmbito privado, restrito a poucos humanos por nós escolhidos para o compartilhamento dos nossos momentos mais sensíveis.

Como o Direito, mais cedo ou mais tarde, atende às demandas sociais, os ordenamentos jurídicos do mundo civilizado passaram a resguardar o sigilo, que, entre nós, se acha amparado pela Lei Maior[3]. Tal proteção, de tão robusta, só pode ser deixada de lado em condições excepcionalíssimas, tais como a existência de indícios de crime ou a impossibilidade de identificar o fato delituoso por outros meios de prova[4]. Afinal, não se admite que a privacidade seja ardilosamente usada com o fim de maquiar condutas de grande potencial lesivo para uma sociedade inteira.

No entanto, como já debatido no tocante aos empresários de 2022, saliento que as condutas de opinar, criticar ou até xingar não são descritas como crimes, a menos que o alvo da manifestação se sinta ofendido, caso em que cabe a este, e apenas a ele, ajuizar ações por eventuais crimes contra a honra. Muito menos se percebe qualquer relevância na escuta de conversas travadas dentro do amplíssimo espectro temporal de mais de um quinquênio, durante o qual muitos envolvidos já podem ter falecido ou até deixado o país. Se grampos telefônicos se destinam ao rastreamento de delitos no momento de sua prática, ou em curtos intervalos de tempo a partir desta, até para permitir ao braço punitivo estatal uma atuação longe da sombra da prescrição, qual pode ser a utilidade da decisão de Moraes, com efeitos retroativos de tão longo prazo? Não teria sido mais um abuso da caneta para fins de revanchismo político, corroborado pelos gritos de “sem anistia” ouvidos durante a recente posse presidencial? Anistia para quais condenados, e por quais crimes? O juízo fica por sua conta, caro leitor.

Por falar em presidência, logo no alvorecer de 2023, o então recém-empossado se apressou em baixar o Decreto 11.328/23, que dispõe sobre uma restruturação da Advocacia-Geral da União (AGU), órgão cuja principal função é representar a União Federal em juízo ou fora dele, tanto como autora quanto como ré em ações. Nessa medida tomada pelo Executivo, sem intervenção do Parlamento, talvez o dispositivo mais notável seja a criação de um novo estamento burocrático, a Procuradoria de Defesa da Democracia, encarregada, dentre outras tarefas, de atuar no “enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas[5].” Esse trecho em particular, plágio crasso de uma Resolução editada no ano passado pelo TSE (também comentada aqui[6]) que resultou em muita censura, suspensão de contas em redes sociais e até prisões políticas, deverá produzir os mesmos efeitos deletérios que sua irmã mais velha.

Sem muitas delongas neste espaço cujo foco é o Judiciário, pensemos que a nova norma confere a mais um ente público atribuições indeterminadas, que giram em torno de dois conceitos carentes de definição legislativa. Ora, “enfrentamento” pode, em seu largo espectro semântico, variar desde mera reprovação pública até medidas bem mais invasivas, tais como revogação de concessões, modificação aleatória do resultado de licitações, mordaça ou até a privação da liberdade. Mais desafiador ainda é lidar com “desinformação”, passível de assumir o feitio de reprodução de falas alheias, manifestações opinativas, notícias e tantas outras formas de comunicação. Em suma, palavras prontas a vestirem a roupagem que o governante de plantão determinar. Tudo sempre em prol da democracia, é claro.

E onde fica o Legislativo nessa mixórdia? Quando não está dormente, enterra as escassas iniciativas como a CPI do Judiciário encabeçada pelo deputado Marcel Van Hatten (NOVO/RS), também comentada nessa coluna[7], ou alardeia a futura prisão do ex-mandatário, não se sabe bem por quais crimes, muito menos por meio de quais processos[8].

No icônico posfácio à sua Constituição da Liberdade, Hayek refuta sua classificação como um “conservador”, por inúmeras razões que não poderei esmiuçar aqui. Dentre elas, destaco as considerações do autor sobre o receio do conservadorismo em relação a mudanças espontâneas na estrutura social, e sobre o apreço pela autoridade, já que “para os conservadores, a ordem resulta da atenção constante da autoridade que, para tal, deve poder fazer o que é exigido pelas circunstâncias específicas, e não estar presa a normas rígidas[9](grifamos).

Outra crítica se refere à caracterização do conservador como alguém incapaz de lidar com pessoas cujos valores morais se diferenciem dos seus próprios, “por uma ordem política na qual todos possam seguir suas convicções.” Segundo Hayek, a posição conservadora parte de uma premissa em torno da existência de indivíduos reconhecidamente superiores, que deveriam influir mais que os outros nos assuntos públicos. Por fim, em comentários ainda mais ácidos, o pensador austríaco reprova a desconfiança conservadora no tocante ao novo e ao estrangeiro, terreno fértil para um nacionalismo radical, e capaz de tolher a evolução das ideias, processo internacional em essência. Com que perfeição se encaixam essas linhas hayekianas ao Brasil da polarização, do “nós contra eles”, e de uma casta de “puros e amorosos”, alçada ao poder para redimir um país inteiro do flagelo do ódio, e de um pseudo desmonte da máquina pública.

Vivemos um Zeitgeist de forte repressão à autonomia do cidadão, de atuação policialesca de órgãos que deveriam apenas zelar pelo respeito à Constituição e às leis, de indevida invasão estatal em nossa esfera de intimidade e, por mais paradoxal que pareça, de permissividade em seu sentido mais amplo. Nessa nova ordem, como ficamos nós, adeptos aguerridos das liberdades individuais? Somos andorinhas iconoclastas que, segundo o velho ditado, em número restrito, não fazemos verão. Em compensação, se nos multiplicarmos em voos cada vez mais longos e ousados, poderemos vir a anunciar um novo período estival de respeito às nossas individualidades e de cobrança das condutas devidas pelos agentes públicos, nossos servidores.

[1] https://www.metropoles.com/colunas/rodrigo-rangel/exclusivo-superquebra-de-sigilo-ordenada-por-alexandre-de-moraes-mira-o-coracao-do-bolsonarismo

[2] https://www.institutoliberal.org.br/blog/autoritarismo-escancarado/

[3] Artigo 5º, inciso XII da CF

[4] Artigo 2º da Lei 9296/96

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11328.htm

[6] https://www.institutoliberal.org.br/blog/superpoderes-para-uns-asfixia-para-outros/

[7] https://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/em-busca-da-seguranca-juridica-perdida/

[8] https://pleno.news/brasil/politica-nacional/renan-diz-que-sem-protecao-da-pgr-jair-bolsonaro-sera-preso.html

[9] Ed. Avis Rara, 2022, pg. 383

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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