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O filme ‘O Poço’ é uma justa analogia ao egoísmo humano e ao capitalismo?

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Finalmente assisti ao filme O Poço, produção espanhola da Netflix. O filme atingiu certa popularidade no ano passado e suscitou diversas interpretações apontando que há uma crítica social contida nele. Não pretendo proceder aqui a uma resenha do filme, mas me debruçar sobre este ponto: se a crítica, assumindo que esta tenha sido a intenção dos criadores, faz sentido. Deixo o alerta de spoilers.

O Poço conta a história de uma prisão vertical com diversos níveis/andares. Descobrimos no decorrer do filme que há um total de 333 níveis. Em cada nível se encontram dois prisioneiros. A “cela” é muito peculiar, tendo um grande buraco retangular no centro, por onde, diariamente, desce a plataforma com a comida. A questão central do filme é que de início a plataforma será abastecida com a quantidade de comida necessária para atender a todos os prisioneiros, assumindo que cada nível consuma apenas a sua porção. Como se pode imaginar, não é exatamente isso que acontece e os primeiros níveis acabam consumindo muito além de sua justa parte, de modo que os níveis mais baixos recebem cada vez menos comida, chegando ao ponto de não receber comida alguma. No entanto, a dupla de prisioneiros permanecerá por um mês no nível em que se encontra, podendo então amanhecer em qualquer um dos outros níveis. Desse modo, alguém que em um mês esteve no nível 147, por exemplo, poderia no mês consecutivo ir para o nível 7, ou mesmo para um nível ainda mais baixo. Da mesma forma, alguém que em um mês gozou o privilégio de estar no nível 4 poderia ir para o nível 200 no próximo.

Muitos enxergam o filme como uma crítica ao egoísmo humano, egoísmo aqui entendido no sentido negativo comumente dado ao termo. Aquele que come desenfreadamente sem se preocupar com o que sobrará para os próximos níveis seria egoísta, não apenas porque é pessoalmente egoísta, mas porque isso seria algo inerente aos seres humanos. Ora, é evidente que é natural que as pessoas coloquem seu bem-estar em primeiro lugar, mas o caso em tela vai além disso: satisfaz-se mais a gula do que a saciedade em si, sendo a solidariedade a rara exceção. Esta é uma visão demonizadora da humanidade – e uma que está muito em voga ultimamente. Não vejo razão para crer que os seres humanos, de uma forma geral, sejam criaturas que só visem a seu bem-estar e totalmente indiferentes ao sofrimento alheio. O ser humano, como animal social que é, é capaz de louváveis atos de abnegação e solidariedade.

Isso significa que, se um experimento real com base n’O Poço fosse feito, o resultado seria diferente e a distribuição da comida se daria de forma igualitária? Acredito que os resultados poderiam ser diferentes dos resultados grotescos do filme, mas ainda assim não seriam totalmente eficientes, com a comida talvez não chegando aos níveis mais baixos. Como já disse, não faz sentido imaginar que as pessoas sejam sempre sem empatia e egoístas, mas também seria ingenuidade pensar que sejam todas imaculadas. O mais provável é que, entre os 666 participantes do experimento, houvesse pessoas de todos os tipos, algumas mais altruístas, outras mais egoístas. Não há como presumir homogeneidade. Além disso, há fatores alheios ao caráter dos participantes que poderiam impactar os resultados.

Imaginemos alguém que deu a sorte de estar no primeiro nível. Essa pessoa teria, ao menos nos poucos minutos em que a plataforma estivesse em sua cela, uma farta refeição à sua disposição. Ela poderia comer desenfreadamente sem maiores considerações. No entanto, ela permanecerá nesse nível por apenas um mês, podendo acordar em um nível muito mais baixo no próximo. Ela poderia então pensar que gostaria de receber a quantidade razoável de comida estando em um nível mais baixo, o que dependeria dos andares de cima e, estando no primeiro nível, agir da forma por que gostaria que agissem com ela. Por outro lado, ela também poderia considerar que talvez os ocupantes dos níveis acima dela não fossem ter a mesma consideração no mês consecutivo, decidindo, assim, consumir acima do necessário para compensar uma potencial escassez de alimentos. O mesmo raciocínio se aplica a alguém que, estando por um mês em um nível muito baixo e recebendo pouca, ou nenhuma, comida, fosse para um dos primeiros níveis no mês seguinte. Essa pessoa poderia consumir excessivamente, de forma a compensar a fome que passou ou, justamente por ter passado fome, ter empatia suficiente para consumir apenas o suficiente.

Notem que a escolha dos agentes não depende apenas de suas considerações pessoais e caráter, mas da expectativa em relação ao que os demais agentes farão. Mesmo com uma maioria de prisioneiros altruístas, pelo fato de os agentes não terem como saber o quão altruístas os demais são, um consumo ineficiente e desigual poderia ainda assim ser o resultado. Estivessem todos os prisioneiros confinados no mesmo espaço e uma tentativa de coordenação poderia ser realizada, mas n’O Poço essa coordenação é impossível, haja vista que entre uma cela e outra há uma distância de 6 metros, sendo possível se comunicar apenas, e ainda assim de forma precária, com o nível imediatamente abaixo ou acima. Devido ao elevado número de níveis, a opção da mesma mensagem ser passada de nível para nível se torna inviável – lembram-se da brincadeira do telefone sem fio? Além disso, o cálculo da fração de comida se tornaria difícil, ainda que todos fossem abnegados. As necessidades energéticas podem variar de indivíduo para indivíduo: uns podem ser mais resilientes à fome do que outros, uns tem maior imunidade e são mais saudáveis, etc.

Em linha com a crítica ao egoísmo, muitos viram no filme uma crítica ao capitalismo, sendo os diferentes níveis representantes de uma hierarquização de classes sociais, e o descaso dos ocupantes dos primeiros níveis como uma analogia a uma suposta indiferença das camadas mais abastadas com o sofrimento dos menos afortunados. Se tiver sido essa a intenção dos criadores, se trata de uma crítica reducionista e extremamente apelativa. Não apenas o poço não serve como uma analogia para a economia de mercado, como acaba demonstrando o inverso: a falibilidade das crenças distributivistas daqueles que mais demonizam o capitalismo.

Como já disse anteriormente, a quantidade de comida contida na plataforma é sempre a suficiente para alimentar todos os prisioneiros, pelo menos com uma refeição ao dia. Se tomarmos a comida como uma analogia para a riqueza, temos que esta se apresenta de forma estática. É verdade que a população carcerária também é estática – os prisioneiros que morrem são prontamente substituídos por outros -, mas, mesmo que a distribuição se desse de forma igualitária, não lhes restaria opção se não se conformar com a fração diária. Os “moradores” do poço, por razões óbvias, não dispõem de meios para aumentar a “riqueza” disponível, diferentemente dos agentes de uma economia de mercado. Esse é sempre o erro, pueril e fatal, de muitos socialistas: tomar a riqueza como dada e pretender a sua distribuição como cura para a pobreza. Dentro do poço só resta a distribuição igualitária como forma de aumentar o bem-estar geral, mas, em uma economia de mercado, o bem-estar só pode ser expandido com uma expansão da riqueza. Tampouco em uma economia real há uma autoridade central capaz de fornecer sempre a mesma quantidade de comida para todos.

Em conclusão, a despeito de outros atributos do filme que fogem do escopo deste artigo, não acredito que faça sentido tomá-lo como um retrato justo do egoísmo humano, ignorando fatores alheios ao caráter, tal como as expectativas dos agentes, bem como não serve como analogia para a economia de mercado, onde a riqueza não é estática e pode ser expandida, concorrendo assim para o bem-estar geral. Isso não é para dizer que a expansão da riqueza trará fatias iguais para todos, o que seria utópico e injusto, já que a participação na formação da riqueza também se dá de forma desigual.

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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