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Meira Penna e a nossa psicologia do subdesenvolvimento

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Entre os autores brasileiros recentemente salvos do ostracismo, destaca-se o nome do diplomata e ensaísta José Osvaldo de Meira Penna. Natural do Rio de Janeiro, o escritor morreu em julho de 2017, com admiráveis 100 anos. Suas principais obras apresentam ideias e projetos para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil. São livros atentos às urgências da conjuntura econômica e às características definidoras dos brasileiros.

Meira Penna dedicou-se à difusão do pensamento liberal e à crítica da cultura patrimonialista encrustada em nossos políticos e empresários. Com vasta experiência diplomática, o autor conheceu de perto diversos países em todo o globo, das potências desenvolvidas do Atlântico Norte e da Europa central até as nações africanas e asiáticas pauperizadas pela anarquia social e pela debilidade econômica. De sua experiência no Itamaraty, Meira Penna obteve as informações necessárias para pensar o Brasil no quadro mundial. Dessas considerações, o autor concluiu que os brasileiros possuem uma mentalidade refratária ao desenvolvimento econômico e social, de modo que, para tornar nossa economia pujante e nossa sociedade civilizada, seria necessária uma mudança de atitude diante do mundo globalizado e diante de nós mesmos.

Vamos analisar o livro Psicologia do Subdesenvolvimento, publicado em 1973 e reeditado em 2017 pela Vide Editorial. O argumento de Meira Penna é o seguinte: somos um povo marcado pela cordialidade nas relações interpessoais, pelo patrimonialismo nas relações institucionais, e, finalmente, pela irracionalidade no planejamento e na execução de projetos econômicos. É evidente que essas características se combinam na vida em sociedade e se condensam no caldo cultural em que a psicologia individual do brasileiro é formada. Como bom sociólogo, Meira Penna sabia que esses três aspectos se ajustam mutuamente na composição do tipo brasileiro, assim como Max Weber via as relações necessárias e complementares entre a economia, a política e a sociedade. A partir da comparação sistemática com outros povos, o autor se dedica a analisar os elementos psicológicos que determinariam nossas propensões ao desenvolvimento socioeconômico. Em outras palavras, Meira Penna tenta captar em nossa psicologia social aqueles aspectos que possam favorecer ou atrasar o nosso desenvolvimento. Mas o autor não pretende reduzir a complexidade do Brasil a fórmulas psicologizantes. Não recorre a nenhum chavão do tipo “Freud explica”. Sua abordagem é poliédrica e, se privilegia a psicologia social, não deixa de considerar outros fatores sociológicos e históricos. Nas palavras de Roberto Campos, prefaciador da obra.

“O autor, porém, não reduz toda sua argumentação à pura psicologia. Não cai no determinismo oposto do psicologismo. A análise da mentalidade coletiva apenas serve para melhor caracterizar certos tipos de comportamento de nosso povo que explicariam o ritmo e forma diferentes que entre nós segue o desenvolvimento, contrastando-os com os de outras nações. (…) O homem, em última análise, com suas crenças, seus hábitos, suas tendências, seu comportamento é o que interessa ao autor. A psicologia cultural é para ele a chave da compreensão sociológica.”

Nesse sentido, a análise psicológica de Meira Penna identifica no tipo brasileiro as qualidades que não combinam com a postura coletiva exigida pelo desenvolvimento capitalista. A cordialidade interpessoal e a irracionalidade econômica dificultam a compatibilização do Brasil com a sociedade comercial. Sua crítica é de raiz culturológica, não economicista. É por isso que Olavo de Carvalho elogia Meira Penna como um dos poucos pensadores que ousaram fugir do método economicista enraizado nas ciências sociais do Brasil. Herança da hegemonia intelectual de esquerda, o economicismo reduz as questões sociais a problemas econômicos, sujeitando as manifestações culturais predominantes à ação financeira das “classes dominantes”. Segundo o filósofo, porém, Meira Penna não analisa a “sociedade brasileira a partir do Produto Nacional Bruto ou da distribuição da propriedade territorial, mas a partir da alma”.

Enquanto a sociologia marxista analisa a sociedade a partir da economia, Meira Penna realiza o percurso inverso e analisa a economia a partir da sociedade. Entende-se que a produção econômica é condicionada pela mentalidade dominante na sociedade, de modo que a produção da riqueza não funciona à parte da vida social, mas dentro dela, sujeita aos determinantes psicológicos e culturais mais do que às cotações da bolsa de valores ou às taxas de câmbio. Embora o capitalismo globalizado crie uma relativa uniformidade de interesses econômicos, ele não suplanta nunca a mentalidade coletiva. É por meio dela apenas que se pode explicar por que, por exemplo, não existe um mercado legal de pornografia infantil. Certamente, há gente degenerada o bastante para consumir esse material, mas o mercado dificilmente poderá registrar demandas moralmente proibidas pela sociedade. O método psicossociológico de Meira Penna encara o brasileiro de frente e encontra um “tipo afetivo e intuitivo”, segundo Roberto Campos.

Acontece que as nações desenvolvidas possuem outra mentalidade dominante. Os britânicos são tipos fleumáticos e calculistas, os franceses são sóbrios e cuidadosos, os alemães são também rigorosamente disciplinados, os suíços são racionalíssimos e educados no mais estrito respeito à rotina. Essas características psicológicas de racionalidade e lucidez são mostras do tipo mental das nações mais prósperas do mundo. Isso porque o desenvolvimento capitalista depende de qualidades mentais tais como a racionalidade dos projetos econômicos, o trato impessoal entre negociantes, a disciplina cotidiana, etc. É fácil perceber como essas qualidades são necessárias em qualquer contexto capitalista. Um pequeno-empreendedor, por exemplo, precisa calcular racionalmente sua receita e mantê-la sempre acima de suas despesas, precisa contar com empregados tecnicamente qualificados cujo trabalho valha por seus próprios méritos, precisa oferecer a seus clientes um serviço regular, o que implica manter horários de funcionamento e respeitar a solicitude de clientes e parceiros comerciais. Já o nosso empresário frequentemente tem de lidar com desequilíbrios orçamentários, com empregados escolhidos por seu parentesco, e por aí vai. Meira Penna faz um mapa psicossociológico e nos faz ver que os povos latinos, diferentemente dos anglo-saxões e germânicos, possuem outro temperamento: são coléricos, intempestivos, apaixonados, vibrantes e pouco afeitos à disciplina mental ou cotidiana. Essas qualidades mentais encontradiças entre os povos latinos dificultam o ajustamento da sociedade aos padrões socioeconômicos exigidos pelo capitalismo modelar.

Originada dos portugueses, nossa sociedade padece das más qualidades mentais dos latinos. É claro que essas qualidades não determinam integralmente o brasileiro porque nós temos nossa própria história. Nossa cordialidade no trato interpessoal e nossa irracionalidade econômica são apenas algumas características psicológicas do Brasil, definido por Meira Penna como uma “sociedade erótica”, orientada pela sensualidade instintiva de Eros. Já os povos anglo-saxões e germânicos, tomados como tipos exemplares do homo aeconomicus, são definidos como “sociedades lógicas”, orientadas pela racionalidade própria do Logos. Somos uma sociedade festiva e carnavalesca, agitada por vibrações orgiásticas e com nervos à flor da pele. Temos mais apreço à estética que à ética, o que importa numa atitude contemplativa e passiva perante o mundo. Apreciamos a luxúria e o vinho mais que a prudência e o chá. Dessa genética latina derivamos nossas próprias características mentais, como a cordialidade e a irracionalidade econômica. O homem brasileiro é apropriadamente chamado por Meira Penna de homo ludens, isto é, de bicho lúdico e bonachão, em contraste ao homo faber da civilização industrial. O homo aeconomicus planeja todos os passos necessários à inauguração de sua empresa, sempre com visão de médio e longo prazo, cuidadoso e metódico. Já o homo ludens se joga à aventura econômica com a cara e a coragem, abre e fecha empresas da noite para o dia, trabalha com fé na prosperidade e no sucesso do negócio, sem frieza nenhuma.

O homem cordial é velho conhecido nas ciências sociais do Brasil. A expressão se tornou mais popular na obra histórico-sociológica de Sérgio Buarque de Hollanda, especialmente no livro Raízes do Brasil. Mas o que significa a cordialidade do brasileiro? Significa a tendência a levar a vida em sociedade ao terreno afetivo do coração e não ao patamar lógico do cérebro. Não por acaso, cordial possui parentesco etimológico com coração. Sérgio Buarque estudou o fenômeno e nos mostrou que o brasileiro tem dificuldades de manter vínculos impessoais porque gosta de tratar a todos como amigos ou familiares, quer tornar-se íntimo de alguém para confiar nela. É por isso que o brasileiro rústico chama a seus semelhantes de “padrinho”, “compadre”, e, nos meios urbanos, de “meu camarada” ou “meu amigo”. Na cidade do Rio de Janeiro, não é difícil ouvir um motorista de ônibus desejando que seus passageiros “tenham uma boa semana”, os vendedores ambulantes nas ruas se aproximam do transeunte na maior desfaçatez e logo se desdobram a falar longamente sobre seus produtos, a uma distância mínima do cliente. Não por acaso, os comerciantes de rua são os microempresários por excelência da capital fluminense.

Mas Meira Penna não dedica o livro à depreciação do homem brasileiro. Não é nenhum autor ressentido por ter nascido na América do Sul e não nos Alpes suíços. Porque acredita no Brasil, o diplomata deseja vê-lo desenvolvido econômica e socialmente à altura das potencialidades nacionais. Por isso, Meira Penna não recomenda a extinção das qualidades mentais típicas do povo brasileiro – mesmo porque isso seria psicologicamente absurdo. Ele recomenda, por exemplo, o equilíbrio da cordialidade interpessoal com a frieza do planejamento empresarial. É possível que o brasileiro seja simpático com seus colegas de trabalho, mas ele necessita tomar cuidados para não falir seus negócios em pouco tempo. É necessário combinar a coragem e a parcimônia, equilibrar o senso aventureiro com o pé-no-chão. Meira Penna cita os bandeirantes como exemplo histórico de como o tipo aventureiro pode servir ao desenvolvimento econômico. Os bandeirantes desbravaram as matas fechadas do país sem temores e sem objetivos fixos. Alguns iam às bandeiras apresar índios ou negros fugidos, outros iam buscar terras férteis para se instalarem, etc. Foi o ímpeto aventureiro das bandeiras que abriu os caminhos do território nacional. Por outro lado, as bandeiras poderiam ter empreendido a colonização efetiva de terras virgens e contribuído para a expansão da economia cafeeira, se houvessem planejado isso.

É difícil para esse humilde colunista resumir as propostas de Meira Penna a poucas páginas. Entretanto, podemos concluir o seguinte: o diplomata elaborou um proveitoso ensaio com proposições baseadas nos fundamentos psicossociológicos do homo ludens brasileiro. Não somos nenhum país arcaico da Ásia ou do Oriente Médio, recebemos os elementos civilizacionais necessários para a edificação do capitalismo nacional. Devemos, porém, corrigir na medida do possível a mentalidade erótica e intuitiva que herdamos dos portugueses. Podemos, inclusive, aproveitar o senso aventureiro e a coragem típica do brasileiro para estimular o empreendedorismo. Note-se que, nos últimos anos, o número de pequenos empreendedores aumentou expressivamente. Temos força de trabalho, capacidade inventiva e vitalidade para incentivar a economia sem perder de vista o bem-estar social. Afinal, só a economia não faz a felicidade geral do país.

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Rafael Valladão

Rafael Valladão

Licenciando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Colunista do Burke Instituto Conservador, coordenador do Students for Liberty. É professor voluntário de Sociologia em pré-vestibular desde 2014.

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