Liberalismo, pobreza e miséria
Uma questão moral
A obrigação de todos os seres humanos – e, entre eles, os economistas, que são os que mais têm a dizer sobre o assunto – é fazer o que estiver ao seu alcance para eliminar a miséria e reduzir os diversos graus de pobreza.
Nenhum liberal ou conservador nega o problema da pobreza e do flagelo da miséria, pelo esfacelamento da atividade econômica produtiva, pelos perigos que representa para a ordem política e, sobretudo, pela degradação da dignidade humana que impõe às pessoas. As tarefas de reduzir a pobreza e eliminar a miséria são, mais do que qualquer outra, imposições de caráter moral, a que nenhum de nós deve fugir.
Há, contudo, dois modos de escapar a esse dever de solidariedade humana. O primeiro é por omissão e revela más intenções, egoísmo, preguiça, ódio e outras deformações do espírito. O segundo, embora muitas vezes lastreado em boas intenções, caridade, solidariedade, amor e outras virtudes morais, consiste no erro de julgar-se que se pode combater a pobreza e erradicar a miséria sem que se tenha conhecimento adequado do processo gerador da riqueza, da prosperidade e do progresso. As causas da pobreza e da miséria são as recíprocas às da riqueza e da prosperidade; quando não se está bem fundamentado quanto às segundas, agrava-se, mesmo a contragosto, as primeiras. Eis aí uma fonte de muitas frustrações.
A estratégia dos “progressistas” de vincular o liberalismo com a falta de preocupação com as condições de vida dos pobres, juntamente com os falsos diagnósticos da questão da pobreza, têm provocado efeitos devastadores. A primeira, por sua faculdade de mexer com a sensibilidade das pessoas bem intencionadas, tem o efeito de adiar a aceitação das soluções liberais por parte dos eleitores, que se mostram receosos de dar seu apoio a ideias que – segundo foi subliminarmente incutido em suas cabeças – são “contrárias aos interesses dos pobres”. Os segundos, porque apresentam uma tendência natural para gerar falsas soluções de natureza distributivista, como as práticas do Estado provedor. Gera-se, assim, o círculo vicioso latino-americano, em que, paradoxalmente, quanto mais o afastamento do liberalismo agrava os problemas econômicos e sociais, mais se acredita que esses problemas são atribuíveis ao liberalismo.
A esperança dos liberais, contudo, está na força da evidência dos fatos: não há como continuar a não enxergar, por muito tempo, a relação inequívoca que existe entre liberdade individual e prosperidade. Aliás, os eleitores, em 2018, deram uma prova de que já compreenderam o problema. Todos os países que têm conseguido institucionalizar a liberdade têm obtido como resultado a prosperidade.
Sempre haverá pobres no mundo, o que significa que a luta contra a pobreza é e será uma batalha permanente de todas as sociedades. De fato, também existe pobreza nos países desenvolvidos, só que em graus inferiores à pobreza existente nos países atrasados, o que nos leva a concluir que a vitória contra esse mal, do ponto de vista de uma sociedade como a brasileira, está em reduzir a pobreza relativa existente: muitos pobres americanos, por exemplo, seriam facilmente incluídos na classe média brasileira. Reduzir a pobreza relativa consiste em fazer com que nossa pobreza absoluta caia mais rapidamente do que a das sociedades desenvolvidas.
Não é uma tarefa fácil, mas é possível, desde que abandonemos as práticas comprovadamente equivocadas que sempre adotamos e tenhamos a coragem e a capacidade para institucionalizar as reformas que nos coloquem, depois de tantos anos, no caminho certo.
A necessidade de atacar os males da pobreza e da miséria é tão grande e premente no Brasil que, a priori, se deve admitir a conveniência da divisão da terapia em dois tempos: o curto e o longo prazo. No curto prazo, trata-se da adoção de medidas de urgência que, contudo, não podem ser tomadas apenas com o coração e com olhos nas urnas, mas também com o cérebro e com vistas às gerações futuras, porque devem ser compatíveis com as medidas estruturais de longo prazo, preparando o caminho para estas últimas.
Menos centralização
Além disso, a ação oficial deve, para ser eficaz, fundamentar-se em dois blocos de informações. As primeiras são de natureza teórica, a saber, o conhecimento acumulado sobre as causas da pobreza e da sua recíproca, a prosperidade. As segundas remetem-nos não apenas à convencional montagem de um programa de ação, com a indispensável adequação dos meios aos fins, mas também à cuidadosa análise de experiências realizadas em outros países, tanto as que foram bem sucedidas como as que fracassaram. Se isto não for considerado e o Estado, mesmo movido pelas melhores intenções (considerando que isso seja possível), lançar-se em programas meramente assistencialistas e sem compromissos com metas corretamente definidas para o longo prazo, os custos monetários desses programas só serão ultrapassados pelos custos dos fracassos e das frustrações de esperanças, bem como pelos custos imprevisíveis que a desorganização social costuma acarretar.
O transcorrer dos séculos mostra sobejamente que, se o objetivo é promover o bem comum e a prosperidade geral, o melhor meio é encorajar os indivíduos a fazer os seus próprios juízos racionais e práticos, dentro do campo de ação de cada um, ao invés de forçá-los a ser “caridosos”, impondo-lhes um comportamento de abelhas, formigas e cupins em prol dos “interesses de toda a sociedade”. A resposta, desde antes de Adam Smith, quando os pós-escolásticos de Salamanca se debruçaram sobre os problemas econômicos, e com a qual concordam os liberais é a de que, no conjunto, os indivíduos são capazes de promover o bem e a prosperidade geral com maior solidez, continuidade e efetividade pelo primeiro método do que pelo segundo.
Esse resultado decorre do princípio católico da subsidiaridade, em que se baseou Abraham Lincoln para decretar seu “Homestead Act” em 1862, com vistas a povoar o oeste americano e que foi consagrado por Pio XI, em 1931, em sua encíclica Quadragesimo Anno e reafirmado por João Paulo II, em 1991, na Centesimus Annus. Tal princípio refere-se ao fato de que aqueles diretamente envolvidos nas atividades que executam estão em posição melhor para realizar julgamentos mais prudentes. Além disso, esses atos de inteligência individual, somados, constituem uma gigantesca massa de sabedoria social. Os romanos condensavam este princípio na máxima do pintor Apeles (Séc. IV a.C) – “ne sutor supra crepidam” (não suba o sapateiro acima das sandálias) – pronunciada a um sapateiro que, depois de olhar um de seus quadros e criticar a pintura das sandálias, pôs-se a criticar outros pormenores. Uma atitude sem dúvida imprudente, semelhante à do Estado, ao pretender criar riqueza e distribuí-la, algo que ele tem dado provas cabais de que não entende…
Decorridos mais de dois séculos desde que Adam Smith identificou as causas do crescimento econômico, a teoria econômica, embora tenha crescido enormemente em sofisticação, avançou pouco neste campo do conhecimento. Os progressos obtidos, contudo, foram importantes e podem ser condensados em duas grandes contribuições. A primeira, formada a partir do trabalho pioneiro de Bastiat, ainda no século XIX e complementada com invulgar brilhantismo por Friedrich Hayek, Ronald Coase, Bruno Leoni e James Buchanan, refere-se à compreensão do papel de determinadas instituições, das relações da economia com o direito, mostrando as vantagens da common law sobre o direito positivo representado pela civil law e ressaltando as diferenças entre lei e legislação.
A segunda contribuição refere-se à teoria do capital humano, atribuída a Theodore Schultz e Gary Becker, mostrando que os investimentos em educação, saúde e nutrição, ao melhorarem a qualidade dos seres humanos, contribuem simultaneamente para a geração e a distribuição da riqueza.
Eis, portanto, os ingredientes básicos do processo gerador de riqueza: nas palavras de meu saudoso ex-professor Og Francisco Leme, “um cenário compatível com a liberdade individual e bons atores, isto é, saudáveis e educados. Que falta para um bom espetáculo? Falta apenas uma boa história, um scriptcompetente”. A diferença entre os liberais e os falsos “progressistas” é que os últimos, embriagados pelo construtivismo racionalista, desejam que o Estado, direta ou indiretamente, se aposse do espetáculo, impondo a todos o cenário, o script, a r distribuição dos papéis e os preços dos ingressos referentes a uma peça cujo teor e resultados são pré-concebidos e impostos a todos. Já os liberais não creem em histórias pré-concebidas, por saberem que o script é uma consequência imprevisível, baseado em desempenhos individuais autônomos. Tal como em um concerto de jazz, em que os músicos improvisam sobre um tema, respeitando sua estrutura harmônica e criando melodias e figuras rítmicas, os agentes econômicos agem livremente, respeitando os acordes institucionais e dando vazão à sua criatividade.
A evidência empírica, em todas as partes, vem dando suporte às teses liberais que, desde Adam Smith, vêm sustentando que a ação livre, autônoma e espontânea dos agentes econômicos, em um pano de fundo institucional que lhes garanta liberdade e segurança, é muito mais adequada à formação e distribuição natural da riqueza do que aquilo que Hayek chamou de “pretensão fatal” de algumas pessoas, as quais se consideram em condições de determinar “o quanto se vai crescer”, “como se vai crescer”, “quem vai ganhar ou perder”, “quanto se vai ganhar ou perder”, etc.
Com base nessas considerações e examinando-se as experiências de diversos países, algumas bem sucedidas, outras fracassadas, o que pode ser feito para colocar o Brasil na estrada da riqueza, reduzindo sua pobreza, eliminando sua miséria e, portanto, devolvendo a dignidade a milhões de brasileiros?
A resposta liberal é bastante clara: Reduzindo os poderes do Estado, recolocando-o no seu devido lugar, nas suas autênticas tarefas, entre as quais se inclui a indução de investimentos em saúde pública e educação básica.
O assistencialismo puro têm problemas crônicos: seus programas de combate à pobreza, além de não reduzirem a penúria material, agravam a pobreza comportamental, o que significa que aumentam a pobreza, são lesivos e desagregadores, o que, aliás, já fora temido pelo próprio Roosevelt, o presidente do “New Deal”, que se referia aos “efeitos narcóticos” da beneficência. Além disso, são devoradores contumazes do dinheiro dos pagadores de impostos.
Menos Estado!
Segundo a ótica da Escola Austríaca, esses programas, além de serem necessariamente emergenciais, devem inserir-se em um quadro amplo, com pelo menos cinco componentes: (a) reforma radical do Estado, caracterizada pela privatização, desregulamentação e descentralização; (b) reforma do comércio exterior, com eliminação de proibições e regulamentações, redução drástica das tarifas alfandegárias, extinção de quotas e autorizações e abertura da economia para o comércio internacional; (c) reforma radical do sindicalismo, com a adoção da liberdade sindical e das negociações coletivas; (d) reforma mais profunda da previdência social, com a passagem para o regime de capitalização (e) abertura da economia ao capital externo, em condições idênticas às concedidas ao capital nacional, sem penalizações e sem privilégios.
No que se refere à melhoria da qualidade do capital humano e ao combate à pobreza, embora as iniciativas possam ser do governo, as ações, sempre que possível, devem ser deixadas a cargo dos agentes particulares e das forças de mercado. Além disso, devem subordinar-se ao critério da subsidiariedade, com descentralização administrativa e priorização do papel dos municípios. Os chamados “gastos sociais” devem ser direcionados para a parcela efetivamente carente da população, com a minimização dos gastos que beneficiam os menos carentes (como a educação universitária, por exemplo) e a preocupação de exigir-se, como contrapartida, algum esforço da parte dos beneficiários diretos, para resguardar e fortalecer a ética do trabalho e os valores morais mais sólidos.
O programa educacional deve estimular o setor privado, pelo sistema de vales-educação ou “vouchers” (cupons), em que as contribuições por aluno são iguais para as escolas particulares e públicas e, para a educação superior, um sistema de créditos financeiros para os universitários carentes.
No campo da saúde, deve-se priorizar os grupos mais necessitados e vulneráveis da zona rural, onde as deficiências são maiores. Os serviços sanitários, privatizados e descentralizados, dando-se maior autonomia às iniciativas municipais e sistema securitário de saúde deve proporcionar a opção entre os serviços públicos e os privados.
Na área habitacional, a ênfase deve ser, também: (a) os beneficiários mais pobres, com a substituição dos subsídios indiretos (taxas de juros inferiores aos níveis de mercado) por subsídios diretos, endossáveis e pagáveis em moeda; (b) a substituição do Estado, que deve se ater à fixação de normas, ao financiamento das construções e à seleção dos beneficiários, pelo setor privado, que se incumbirá da construção de casas, da intermediação financeira, da provisão dos serviços urbanos e da habilitação dos terrenos.
O homem tem o privilégio de aprender com as experiências, suas e alheias. Olhar o que deu certo e copiar, adaptando; espiar o que deu errado, verificar os motivos do fracasso e afastar tais experiências.
São longos e difíceis os caminhos do crescimento, do progresso e da prosperidade. Além disso, jamais deixará de haver – o próprio Cristo o declarou – pobreza relativa, pelo simples fato de que os homens diferem entre si. Reduzir a pobreza absoluta e eliminar a miséria são exigências morais; logo, tentar aprender o que deve ser feito para tal é, também, uma tarefa moral.
Um desses fatos é que se deve harmonizar uma estratégia de longo prazo com medidas emergenciais para aliviar a situação dos mais carentes. Outro, é que essas medidas de emergência, válidas em situações de desespero, não podem ser mantidas indefinidamente, como defendem os adeptos do Estado do Bem-Estar.
*Artigo publicado originalmente em dezembro de 2021 no blog do autor.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorgeiorio