Soberania: nova arma retórica do regime de exceção

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No início, era tudo pela “democracia”. À sombra da narrativa judiciária endossada por segmento majoritário da mídia, a abertura de inquéritos de ofício, a censura em massa, as levas de prisões fora do devido processo legal e tantos outros arbítrios dignos de distopias eram enaltecidos como mecanismos legítimos para o freio de um pretenso movimento golpista, deflagrado durante a gestão Bolsonaro, culminado no 08/01 e mantido em latência por hordas de extremistas atuantes no ambiente digital. Porém, diante da injustiça do sofrimento imposto a milhares de perseguidos políticos e da parcialidade cada vez mais escancarada de uma cúpula togada politiqueira, a sociedade acordava, e alguns veículos, até então coniventes com os desmandos, começavam a publicar textos críticos ao injustificável. Até que o establishment vislumbrou um possível refazimento de rota, com a substituição da narrativa sobre os já desacreditados “atentados à democracia” por imaginárias ofensas a outro valor de mesma grandeza.

O oportunismo de nossos potentados mostrou as garras a partir do retorno de Donald Trump à Casa Branca. Conhecido por seu alinhamento a Bolsonaro e reeleito ao governo dos EUA também na esteira de pautas como a garantia plena à liberdade de expressão e o anti-identitarismo, Trump voltou a ser demonizado pela mídia hegemônica. Em seu novo mandato, passou a ser retratado como cúmplice do “golpismo” bolsonarista, mas, dessa vez, na perpetração de violações à nossa soberania. Por óbvio, a narrativa atingiu seu ápice no último dia 9 de julho, quando do anúncio de uma possível tarifação às exportações brasileiras e, nas palavras de Trump, imposta, em boa medida, como sanção ao processo injusto contra Bolsonaro e às ações autoritárias do STF. Estava lançado, ali, o pretexto para a gritaria dos fariseus da nossa unidade nacional e das cores da nossa bandeira.

O inquérito contra o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro acaba de ganhar um novo capítulo, tão inconstitucional e ilegal quanto sua própria abertura: a inclusão, nas “investigações”, de Jair Bolsonaro, e a imposição ao ex-presidente de medidas cautelares, dentre as quais o uso de tornozeleira, a interdição à saída do domicílio em certos horários e a vedação ao acesso a redes sociais. Em ótimo português, um início de cárcere, típico de regimes autoritários em que o caminho entre a casa e o presídio não é traçado pelas leis, mas pelo desejo dos poderosos.

Travestidos de defensores da nossa soberania, togados da 1ª Turma do STF, em caso sob a “relatoria” de Alexandre de Moraes, impuseram restrições a um terceiro (Bolsonaro) e voltaram a excluir seu alvo da interação nas redes, em uma cautelar não prevista no rol taxativo do artigo 319 do Código de Processo Penal e, portanto, arbitrária. Ainda aproveitaram o mote para bravatearem autênticas declarações de guerra aos EUA, como o fez Flávio Dino, ao acusar o governo estrangeiro de “coação” aos poderes constituídos, mediante o fenômeno por ele designado como “sequestro da economia de uma nação”. O comunista só fingiu esquecer sua incompetência para se imiscuir em assuntos políticos internacionais e na apreciação de falas de um ex-presidente sem foro, assim como a impossibilidade de uso de hipérboles, por tratar-se de linguagem incompatível com o seu dever de isenção. Afrontas crassas à Constituição, mas tornadas irrelevantes sob a aleatoriedade ditada pelos mandachuvas.

Não satisfeito com a imposição a Bolsonaro de uma tornozeleira e do banimento da vida digital, Moraes extrapolou sua própria canetada e, atuando novamente de ofício, ameaçou o ex-mandatário de prisão, em caso de transmissão de suas entrevistas em redes sociais. Repetindo abuso já praticado contra Filipe Martins, o togado tornou a contemplar a possibilidade de sanção criminal ao mais famoso de “seus” réus por eventual fato de terceiros, em menosprezo ao princípio constitucional da responsabilidade penal individual, por força do qual cada indivíduo só pode responder pelas próprias condutas.

Togados que, nos últimos meses, têm avocado para si a condição de pretensos defensores de um Brasil soberano não hesitam em atentar contra a soberania alheia. Prova disso é a sequência de despachos sigilosos proferidos por Moraes contra a Rumble, nos quais o todo-poderoso magistrado ordenou e segue ordenando à plataforma americana a censura de contas de nacionais e/ou de residentes nos EUA. Tão flagrante foi a antijuridicidade das determinações alexandrinas que a empresa propôs ação contra o togado perante uma corte da Flórida, em cujos autos já obteve a declaração de inexequibilidade das ordens no hemisfério norte. O mero juízo liminar foi suficiente para convencer a togada americana sobre a incompatibilidade entre os decretos de Moraes e as normas constitucionais e legais vigentes na terra dos pais fundadores.

Aliás, nossa elite judiciária vem atentando contra a própria soberania brasileira ao violar incessantemente a nossa Constituição, tornando sem efeito o consenso político fundamental que sela nossa unidade sociopolítica e nos consagra como nação no plano internacional. Mais grave ainda é a constatação de que as infrações não atingem as inúmeras firulas de uma Constituição longa e verborrágica, mas a própria espinha dorsal desta, ou seja, suas cláusulas pétreas, insuscetíveis de emenda.

Se tivermos em mente a crueza da masmorra à qual foram atirados os presos políticos nos últimos 6 anos, não poderemos nutrir dúvida sobre as violações, por togados, aos direitos e garantias fundamentais de indivíduos por eles enxergados como inimigos. Na onda dos arbítrios, o STF também jogou por terra a separação dos poderes, arrogando-se a redigir normas jurídicas, como acabou de fazer com o artigo 19 do Marco Civil da Internet, apenas uma dentre as diversas ilustrações da atuação legiferante indevida da corte. Da mesma forma, relativizou o pacto federativo, ao tomar para si a atribuição de formular políticas públicas de competência dos estados, como vimos, por exemplo, na ADPF das Favelas e no processo que redundou no plano Pena Justa. Por fim, e não menos importante, a cláusula pétrea relativa ao voto tem sido fragilizada por resoluções censoras emanadas do TSE e por decisões manifestamente politiqueiras de cassação de mandatos e de declaração de inelegibilidade.

Como se não bastassem as afrontas às cláusulas pétreas da Constituição que lhe caberia guardar, é digna de menção nada honrosa a adesão, pelo STF, à chamada Agenda 2030 da ONU, mediante a edição da resolução 710/20, assinada pelo ministro Fux. A par do teor no mínimo “duvidoso” de um documento de viés progressista, fato é que o povo brasileiro não foi consultado, mediante seus representantes eleitos, sobre a conveniência da adoção das metas traçadas pela organização em âmbito global e impostas aos jurisdicionados nacionais pelo mero desejo de autoridades desprovidas de votos. É essa a “soberania” tão alardeada por supremos frente à democracia americana?

Deixamos de ser uma nação plenamente soberana desde a instauração do Inquérito das Fake News e a oficialização da imprevisibilidade jurídica. Só voltaremos a sê-lo se e quando o atual império dos homens voltar a dar lugar ao primado da Constituição e das leis. Ao custo de sacrifícios incertos, sabe-se lá por quanto tempo. Porém, parafraseando fala recente de uma das protagonistas do atual regime, inaceitável mesmo é seguir sob o capricho de uma dezena de “grandes tiranos”.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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