Que ninguém diga que foi por falta de aviso
Sobre a decisão do STF, por 8 votos a 3, de tornar o artigo 19 do Marco Civil da Internet “parcialmente” inconstitucional, derrubando, na prática, a necessidade de decisão judicial prévia para a retirada de conteúdos, não tenho nada a dizer que já não tenha dito em artigos precedentes. É suficientemente simbólico que a decisão não tenha sido unânime e os três votos divergentes, dos ministros André Mendonça, Nunes Marques e Edson Fachin, vão ao encontro do que tenho dito desde a primeira hora sobre o tema: o referido artigo é constitucional, posto que foi feito para nos proteger da censura prévia.
Foi feita, por via judicial, a tal “regulamentação das redes”, negada antes pela vontade soberana do povo, por meio da recusa majoritária dos congressistas por ele eleitos em aprovar o PL da censura. Só conheceremos o alcance completo após a publicação do acórdão, onde talvez conste a qual órgão competirá a tarefa de fazer a “fiscalização”.
A partir de então, o que podemos esperar é uma autocensura disseminada. Diante da possibilidade de serem punidas por não retirarem proativamente e sem decisão judicial prévia conteúdos os mais subjetivos possíveis, as plataformas tendem — já afirmaram isso com todas as letras — a retirar conteúdos com temas polêmicos, ainda que perfeitamente lícitos, apenas para evitar uma possível punição. Ora, como esperar que, num país onde um humorista é condenado a oitos anos de cadeia por contar piadas, possamos ter uma definição sã e sensata do que diabos é “discurso de ódio”? Bastando que a grita de militantes bitolados seja alta o suficiente (e talvez nem precise ser tão alta), nada nem ninguém estará a salvo. Aliás, aos esquerdistas entusiastas da geringonça, excitados com a possibilidade de extirparem a tal “extrema-direita” das redes, lembrem-se de que a polêmica vai em ambas as direções e que o que vocês escrevem também é passível de ser visto como “ofensivo” pelo outro lado.
Não tenho dúvidas de que dentro em breve muitos vão encontrar ocasião para se arrependerem do apoio que prestaram à censura disfarçada de regulamentação, ainda que talvez fiquem muito encabulados de dar o braço a torcer e admitir publicamente o equívoco. Aos que trabalham por meio das redes e dependem da criação de conteúdos, preparem-se, pois seus trabalhos se tornarão muito mais difíceis. A consequência mais indigesta, contudo, não é nem essa.
Bastando uma notificação extrajudicial para a retirada de um sem número de conteúdos, podemos esperar que a AGU, convertida na matilha de pitbulls particular do governo, certamente o órgão que mais apoio e “colaboração” prestou e que, como não poderia deixar de ser, logo festejou a decisão majoritária da suprema corte, e que conta com um órgão interno dedicado ao monitoramento das redes — a tal Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia —, tome mão do expediente das notificações extrajudiciais para banir conteúdos que desagradem ao governo.
Percebam que a coisa foi tão bem amarrada que, na prática, sequer é necessário que estabeleçam um órgão para fazer a fiscalização; e, ainda que nomeiem outro órgão, isso não impossibilitará a AGU (leia-se: o governo) de usar o novo grau de responsabilização das redes para promover a censura oficial. Parimos um monstro, cuja paternidade, no seu devido tempo, muitos se negarão a reconhecer.
Se, nos últimos seis anos, desde a instauração do inquérito das fake news, a censura foi uma realidade, mas operando ainda de forma desigual, pesando sobretudo em alvos específicos, calando os demais antes pelo amedrontamento, não peco pela hipérbole ao dizer que agora está possibilitada a censura geral. Que ninguém diga que foi por falta de aviso.