Projeto de novo Código Civil: oficialização dos abusos togados?

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Indenizar significa tornar indene, restituir a esfera jurídica de alguém à situação anterior à prática de um ato ilícito ou de um descumprimento contratual. No plano dos bens tangíveis, a responsabilidade civil se reflete na obrigação de recompor o patrimônio da parte lesada mediante o ressarcimento de perdas por esta sofrida. Mais recentemente e, no Brasil, a partir da promulgação da Constituição de 88, o dever de indenizar foi ampliado para abranger também os prejuízos imateriais ou danos morais, consistentes nas reações emocionais adversas provocadas por uma ofensa.

Em democracias liberais, a autonomia dos indivíduos só pode sofrer algum tipo de intervenção estatal por força de regras claras e pré-estabelecidas pelo poder legislativo. À luz do princípio constitucional da legalidade estrita, eventuais agentes de ilícitos e/ou de violações contratuais somente podem ser forçados a fazer algo (indenizar outrem) em virtude de dispositivos legais que definam os contornos precisos de sua responsabilidade, assim como as formas de compensações às partes prejudicadas e os parâmetros de cálculo das indenizações devidas. No entanto, a recente praxe judiciária tem colocado por terra avanços civilizacionais alcançados ao longo de séculos, priorizando sua própria cosmovisão, em detrimento dos pilares dos estados de direito.

Essa triste constatação pode ser ilustrada pela lista dos “critérios objetivos” fixados pelo STJ, no último dia 5, para a aferição de danos morais coletivos em casos de lesão ambiental (nos autos do Recurso Especial nº 2200069 – MT). Extrapolando as funções institucionais de uma corte de justiça, o tribunal dito “da cidadania” legislou, arrogando-se a impor suas próprias “normas” sobre ressarcimento devido pela dor das comunidades atingidas por sinistros ambientais. Outrossim, o anúncio dos tais critérios na página oficial do STJ e no próprio corpo do julgado em questão foi feito em autêntica novilíngua orwelliana, pois classificou como “objetivos” parâmetros nos quais transborda um subjetivismo capaz de dar margem às mais diversas interpretações.

Para que você, caro leitor, não me enxergue como detratora leviana da jurisprudência da corte, sintetizo, abaixo, cada um dos 7 novos “mandamentos” do STJ, ao lado das respectivas críticas:

1 – Para a configuração do dano moral coletivo, o tribunal exige a constatação de “injusta conduta ofensiva à natureza”. A introdução, por togados, do adjetivo “injusta” leva à conclusão de que certas ofensas à natureza não ensejem a verba indenizatória, a depender do seu grau de “justiça”. Ao lançar mão de conceito tão vago como requisito à caracterização do dano, o tribunal impede que os indivíduos prevejam se suas condutas possivelmente lesivas ao meio-ambiente poderão lhes valer condenações por danos morais coletivos.

2 – Segundo o tribunal, o dano moral coletivo é aferido de forma objetiva, sendo presumido, independentemente de “análises subjetivas” do sofrimento da coletividade. Contudo, a responsabilidade objetiva, que prescinde da prova de culpa do agente infrator, somente pode ser estipulada por lei; jamais pelo desejo de togados. O mesmo raciocínio se aplica às presunções, que consistem na imposição, tão somente por lei, da veracidade de fatos, sem necessidade de apresentação das respectivas provas.

3 – A corte alude a uma “alteração adversa das características ecológicas” como supostamente geradora de uma presunção de “lesão intolerável ao meio ambiente”. Mais uma vez, abusa de conceitos indeterminados e cria uma presunção desprovida de fundamento legal.

4 – De acordo com o STJ, a possibilidade de recomposição do ambiente não é passível de afastar a existência de prejuízos morais à coletividade. Nesse enunciado, a corte concebe uma inevitabilidade na incidência de danos morais em sinistros ambientais, ainda que o terreno afetado tenha sido restituído ao estado anterior, e a lesão patrimonial sanada.  Contudo, não é dado a um colegiado julgador determinar, em abstrato, uma cumulatividade necessária de danos materiais e morais. Tal atribuição compete aos grupos sociais prejudicados e/ou ao ministério público, autores das ações ambientais, aos quais cabe definir a natureza das verbas indenizatórias a serem pleiteadas nas iniciais das medidas por eles propostas e comprovar a ocorrência efetiva dos prejuízos alegados.

5 – A corte determina a avaliação da lesão imaterial com base no “exame conjuntural” dos atos ilícitos e impõe a todos os corresponsáveis por uma “macrolesão ambiental” o dever de reparar os danos morais causados na medida de suas culpabilidades. Togados tornam a apostar em expressões de sentido indefinido e estipulam uma responsabilidade conjunta, sem amparo legal e até passível de contrariar normas em pleno vigor. Suponhamos, por exemplo, que uma certa “macrolesão ambiental”, seja lá o que isso signifique, tenha sido ocasionada por indivíduos atuando como empregados de um empreendedor rural. Nos termos do artigo 932, III do Código Civil, o empregador responde pela reparação dos danos (inclusive morais) causados por seus empregados, enquanto, na forma do julgado do STJ, empregador e empregados respondem conjuntamente. É possível que uma determinação judicial se sobreponha à legislação civil vigente?

6 – Uma vez configurado o dano moral, o STJ estipula os seguintes parâmetros para sua quantificação: a contribuição do infrator para a lesão e a situação socioeconômica deste; a extensão e a permanência do dano; o grau de culpa e o proveito obtido com o ilícito. Mais uma vez, o tribunal atua como legislador “de fato”, e ainda o faz mediante o uso de conceitos genéricos, incompatíveis com a segurança almejada pelos jurisdicionados.

7 – Segundo a corte, os biomas mencionados como patrimônio nacional pelo artigo 225, parágrafo 4º da Constituição merecem proteção “mais robusta”, razão pela qual o dano imaterial decorre necessariamente de condutas “que os descaracterizem ou afetem sua integridade”. Sem amparo em qualquer lei que torne a Amazônia, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira biomas mais “protegíveis” que os demais, o STJ insiste em empregar conceitos vagos como fontes de supostas obrigações de ressarcimento de danos morais.

Tramita no congresso nacional o PL 04/25, que se destina a legar ao Brasil um novo Código Civil, sem a transparência e o vagar necessários à implementação de uma lei capaz de revolucionar todos os setores da nossa vida privada. O texto do projeto, abundante em expressões genéricas do calibre de “função social”, “proteção à dignidade” e tantas outras disparadoras de insegurança, entrega à discricionariedade ampla dos magistrados tudo o que o legislador falha em definir. Bem distante do estrito rigor esperado de uma lei que ponha indivíduos a salvo do arbítrio de poderosos, o projeto mais parece uma positivação de julgados como o do STJ ora comentado.

Uma boa ilustração da incerteza em nosso porvir reside no artigo 927-B do PL 04/25, que dispõe sobre os casos de responsabilidade objetiva, sem necessidade de prova de culpa. Em seu parágrafo 2º, por exemplo, prevê que, na fixação do valor do dano, também seja levada em conta uma eventual classificação do risco da atividade pelo poder público. Contudo, o uso do advérbio “também” deixa margem à adoção de outros critérios de quantificação, não especificados pelo projeto e que, por isso, ficarão a cargo das preferências dos togados aplicadores da norma.

Na mesma toada de imprevisibilidade, vale menção “honrosa” ao artigo 944-A, parágrafo 1º do mesmo projeto, que deixa a fixação do dano moral ao sabor de “parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais” e de outros critérios supostamente adequados “às peculiaridades do caso concreto, em confronto com outros julgamentos”. Em suma, um projeto assustadoramente vazio de conteúdo, que terceiriza ao poder não-eleito o peso de definições que teriam de ser legislativas!

Nos anos 90, na esteira das privatizações e da estabilidade monetária, aprovamos a Lei de Propriedade Industrial – LPI (Lei 9279/96), que muito contribuiu para conferir proteção às marcas, patentes, desenhos industriais, indicações geográficas e aos contratos de transferência de tecnologia. No plano da responsabilidade civil, notadamente da quantificação dos danos causados por violações aos bens intangíveis, a LPI trouxe segurança jurídica ao permitir ao lesado optar pelo critério mais favorável a ele, dentre os seguintes, em rol taxativo: os benefícios que o prejudicado teria auferido, se a infração não tivesse ocorrido; os benefícios auferidos pelo infrator; e a remuneração que teria sido paga pelo infrator ao titular do direito, em caso de licença de uso do bem. Certeza na objetividade das escolhas oferecidas pelo legislador, sem espaço para “inovações” por parte de autoridades não-eleitas.

Na contramão dos avanços legislativos do final do milênio, hoje corremos o risco iminente de promulgação de um novo Código Civil “para inglês ver”, que pode vir a oficializar os abusos já praticados no meio togado. Diante das acusações legitimamente dirigidas contra um judiciário que legisla, o estamento ora assentado no comando do país parece apostar em um novo jogo de cena, empenhando-se na aprovação de um código cuja indefinição no conteúdo conceda a magistrados, na prática, uma “permissão” para legislar.

Na vida pública, o advento do novo Código corroborará a inutilidade de uma maioria parlamentar que, de tão acovardada, transfere a juízes deliberações que caberiam tão somente aos portadores do voto popular. No âmbito privado de nossas relações interpessoais desde o nascimento até após a morte, trará uma insuportável insegurança aos negócios e aos atos da vida civil em geral. Como indivíduos livres, dispomos de faculdade de nos insurgir contra a atrofia do legislativo e a consequente hipertrofia do judiciário; como operadores do Direito, nos cabe o dever de oposição a uma codificação geradora de incertezas e capaz de elevar sobremaneira o chamado “custo Brasil”. Sob nenhuma hipótese, podemos nos dar ao luxo de um silêncio conivente com a tragédia anunciada para o nosso amanhã.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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