O menino chorão quer mais impostos
O governo vem recorrendo a um expediente que denota total falta de compromisso com a democracia: quando alguma de suas medidas é rejeitada no Congresso, comporta-se como um garoto mimado que, depois de um coleguinha tomar o seu brinquedo, sai correndo em busca do pai para defendê-lo e apressa-se em pedir ao Judiciário para anular a decisão dos representantes do povo e fazer valer a marretadas a nova regra germinada nas cabeças baldias de sua elite burocrática, por mais estapafúrdia que seja.
O mais recente desses pedidos de socorro ao STF é para que restaure a validade da medida que aumentou a cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), após essa proposta descabida ter sido rejeitada pelo Congresso, que impôs uma derrota acachapante ao governo. Infelizmente, apelos como esse à proteção paterna, que configuram a tentativa de transformar o Judiciário em um mecanismo de compensação para derrotas políticas no Legislativo, têm sido cada vez mais frequentes.
A tentativa comandada pelo ministro da Fazenda de aumentar a receita por meio do IOF, sob as justificativas fajutas e populistas de financiar programas sociais e de taxar “o andar de cima” — quando todos nós sabemos que o objetivo é apenas arrecadar mais para bancar sua farra orçamentária —, além de ser um desrespeito à inteligência dos cidadãos, macula a função regulatória desse tributo, estabelecida no artigo 153, inciso V, da Constituição. É certo que o parágrafo 1º desse artigo dá margem a alterações de alíquotas por decreto do Executivo, porém condicionando sempre essas mudanças a limites e finalidades legítimas e jamais permitindo que sejam usadas como subterfúgios para aumentar a arrecadação.
Como tem sido dito e escrito à exaustão, o IOF é um imposto regulatório, cuja função primária é intervir no mercado financeiro, sem o objetivo de arrecadar, mas que se transformou, na prática, em mais uma fonte permanente de receita. De fato, tem sido usado muito mais como mecanismo de arrecadação do que de regulação, conforme a própria Receita Federal admite nos relatórios de execução fiscal. Em 2023, esse imposto gerou uma arrecadação de R$ 56 bilhões, sendo menos de 10% desse valor relacionado a operações ligadas à política monetária ou cambial. Isso significa que, na prática, estamos falando de um imposto de fato, com todas as características de qualquer tributo, mas sem os freios constitucionais aplicáveis aos demais.
Como mencionamos, as alíquotas desse imposto podem ser alteradas pelo presidente da República por decreto, mas desde que “atendendo às condições e aos limites estabelecidos em lei”. É de conhecimento geral que a tentativa de elevação do IOF sobre operações de crédito e câmbio, com impacto direto no setor produtivo, foi rejeitada politicamente e tecnicamente por parlamentares, economistas e setores empresariais, e é também mais do que sabido que o pretenso argumento de fazer “justiça social” e taxar “os mais ricos” não passa de um papo mais furado do que peneira. Mas o governo, em vez de buscar construir maioria legislativa, novamente busca escorar-se no Judiciário, como um garoto paparicado faz chamando os pais.
O Congresso, mesmo com todos os defeitos que sabemos possuir, atendeu ao clamor popular que rejeita veementemente toda e qualquer elevação de tributo e negou a proposta de ampliação, mas ainda assim o governo optou — primeiro, de modo disfarçado, na forma de pedido de um dos partidos da base de apoio, e em seguida sem qualquer dissimulação — por recorrer ao STF por meio da Advocacia-Geral da União, configurando mais uma vez a tentativa de obter no Judiciário o que não conseguiu politicamente. É evidente que tal estratégia, embora possa ter amparo em instrumentos legais, desperta preocupações relevantes quanto à erosão do princípio da separação de Poderes. Definitivamente, não é para socorrer o Executivo (ou o Legislativo) que o Judiciário existe, mas para defender o império da lei.
Não é redundante frisar que o governo tem sido recorrente nessa má prática. É preciso recordar, por exemplo, que em 2023, depois que o Congresso derrubou o veto presidencial à prorrogação da desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia, o governo ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.633, e o STF, por decisão liminar de um único ministro, suspendeu o que a ampla maioria parlamentar havia aprovado. A decisão provocou forte reação política, levando à sua revisão, após negociação direta com o Congresso — mas uma revisão parcial, o que significa que o povo foi atendido, mas não totalmente.
É preciso também lembrar do caso, naquele mesmo ano, do Marco Temporal das Terras Indígenas, em que o Congresso aprovou projeto de lei fixando como referência a data da promulgação da Constituição de 1988, e o governo federal, contrário à tese por motivos claramente ideológicos, apoiou a condução da questão ao STF, que, por sua vez, julgou a tese inconstitucional, contrariando a decisão do Legislativo.
Situações semelhantes ocorreram com o Marco do Saneamento e em diversas decisões orçamentárias. O Congresso aprovou o novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020), que proibia a renovação de contratos diretos com estatais sem licitação. Mas Lula, em 2023, editou decretos de modo a tornar mais “flexíveis” determinados pontos da lei para favorecer estatais. Isso levou à reação do Congresso, que derrubou os decretos por ampla maioria, porém a subsequente resposta do governo, ignorando a decisão do Legislativo, foi acionar o STF, que, apesar de a decisão ainda estar em julgamento, já deu sinais de receptividade ao pleito.
Parece existir uma convergência recorrente entre os interesses políticos do Executivo e decisões favoráveis a esses interesses no STF, o que leva a incertezas no que diz respeito à independência funcional entre os Poderes e ao papel da Corte Constitucional como instância guardiã da lei — e não, como pode estar parecendo para muitos, de mera substituição da vontade legislativa, como o pai protetor pronto a aplicar surras em quem puser a mão no brinquedo do filho. É incontestável que essa insistência do governo em buscar no STF o que não consegue no Congresso evidencia uma modalidade de “governança por substituição” que é alheia aos requisitos preceitos democráticos: quando o Legislativo não atende ao projeto político do Executivo, este passa a bola para o Judiciário, que o executa. Trata-se do famoso “plano B”, em que o governo atravessa correndo a Praça dos Três Poderes e bate á porta do Judiciário após cada derrota no Congresso. O resultado é um enfraquecimento institucional generalizado, que inverte atribuições e desgasta progressivamente a confiança na democracia representativa.
Mas não é só isso. A insistência do governo em pedir ajuda ao Judiciário configura uma prática que enfraquece a função representativa do Congresso Nacional. Ao governar por meio de decisões judiciais, especialmente em assuntos tributários e orçamentários, o Executivo está simplesmente desrespeitando a essência de qualquer regime democrático autêntico, em que a multiplicidade de interesses da sociedade está representada, por maiores que sejam as imperfeições do sistema eleitoral. A consequência desse desrespeito é óbvia: o Legislativo é desautorizado e o Judiciário é politizado. Ou seja, consagra-se a famigerada “democracia relativa”.
No caso da tentativa de restaurar a ampliação do IOF por meio judicial, o governo não só está ultrapassando os limites constitucionais ao seu poder de tributar, como está insistindo na tendência de governar por decisões da Justiça, em vez de tentar construir consensos políticos, o que não apenas é uma anomalia institucional, mas um risco real à democracia. O caso do IOF, embora aparentemente técnico, desnuda um fato bastante incômodo, que é a adoção de um modelo de poder que não mostra nenhum acanhamento para impor a sua vontade, mesmo que para isso tenha que burlar os freios e contrapesos conhecidos por todos e constitucionalmente estabelecidos. Quando a caneta de um membro do Judiciário traz de volta um imposto, os pagadores perdem mais do que o seu dinheiro: perdem soberania.
Não se trata de desmerecer o papel do Judiciário nem a sua importância institucional, que é fundamental para a boa saúde de qualquer democracia, mas apenas de recordar que sua função primacial é zelar pela Constituição, e não substituir o Congresso (ou o Executivo). Recorrer ao Judiciário para manter de pé o que o Legislativo derruba é mais do que um erro político, é um vício institucional que fere o princípio da representatividade e que, se persistir, pode transformar o Judiciário em instrumento de poder — e não de equilíbrio, como deve ser.
Por fim, cabe um alerta: em teoria, o limite para o qual tende um Executivo que governa exclusivamente por medidas judiciais, sem precisar de sustentação política, é uma situação em que não existe mais representação democrática e em que o Judiciário deixa de ser exclusivamente árbitro para transformar-se também em jogador. Esse limite é o caminho da servidão, é a ditadura, é a tirania exercida por poucos contra 213 milhões. Saindo da teoria e indo para a realidade, isso não é o que se deve desejar para o Brasil.
*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.