O 08 de janeiro de 2023 e a Anistia (segunda parte)
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Apresentei os pontos que julgo mais graves nos julgamentos dos atos do 08 de janeiro, mas certamente existem outros tantos mais que juristas mais esclarecidos que este simples colunista estariam mais aptos a apontar. O que fica claro é que ninguém em sã consciência pode afirmar que tudo está correndo dentro da normalidade — tanto é que os acólitos da corte, bem como seus próprios membros, vivem a defender tudo como uma “exceção”, um produto da “necessidade”, o que não passa de um argumento de conveniência, casuístico e, sobretudo, enganoso, pois a lei nunca foi silente sobre crimes do tipo, não se justificando, em momento algum, a “criatividade punitivista” ou o estabelecimento de um tribunal de exceção, que é basicamente no que se converteu o STF.
Ainda assim, pode ser que alguém pergunte: mas o que eu tenho a ver com isso? Por que deveria me importar? E daí que os processos não seguem uma forma convencional? Os atos de depredação foram reais, todos vimos, então, que me importa o destino desses bandidos? Estas não são considerações de quem defende o estado de Direito, que sempre verá na violação dos direitos do outro, ainda que um criminoso, um ataque à segurança dos seus próprios direitos. Não obstante, farei um esforço aqui. É muito fácil afastar os argumentos aqui apresentados como meras “tecnicalidades” e posar de bom moço gritando “Sem anistia” enquanto trata os potenciais beneficiários como uma massa homogênea de extremistas indignos de empatia ou, pasmem, do direito a um julgamento justo. Apresento, então, o perfil de alguns dos vários implicados nos atos do 08 de janeiro, em uma tentativa sincera de mostrar as consequências reais da não observância dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Débora Santos: o caso da cabeleireira de 39 anos, recentemente condenada pela primeira turma do STF a 14 anos de prisão, é provavelmente o mais conhecido e mais sintomático da perversidade punitivista que justifica um debate sobre a anistia. Como todos sabem, a única ação de Débora naquele 08 de janeiro foi escrever a frase “Perdeu mané” (uma alusão à frase proferida pelo ministro Luís Roberto Barroso) com batom em uma estátua. Notem que uma condenação pela pichação teria pena máxima de um ano de prisão, o que, convenhamos, por si só, já seria um exagero, haja vista que a inscrição de batom era facilmente limpável com água e sabão, o que ocorreu no dia seguinte. Presa em março de 2023, ela ficaria mais de 400 dias na cadeia sem haver denúncia. Atualmente em prisão domiciliar, ela passou dois anos e 11 dias presa em regime fechado, perdendo o crescimento de seus filhos de sete e dez anos. Ou seja, ela passou mais que o dobro do tempo na cadeia do que a pena máxima para pichação, mas, para o STF, Débora é culpada de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa armada.
Miguel Fernando Ritter: o homem de 62 anos (59 na época dos fatos), pai de Gabriella Ritter, que é presidente da chamada Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de janeiro (Asfav), foi condenado a 14 anos de prisão pelo STF. Contudo, um laudo da Polícia Federal aponta que a única informação constante sobre ele é que seu nome estava em uma lista de passageiros de um ônibus que saiu de Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, com destino a Brasília, não havendo nenhuma prova de que ele tenha cometido qualquer ato de depredação. Em sua mochila, a única coisa que a polícia encontrou foi uma garrafa de água, roupas, um terço e um guarda-chuva.
Marco Alexandre Machado de Araújo: ainda não há sentença contra o vigilante e ex-PM de 54 anos, mas seu caso é sintomático de um modus operandi indefensável. Apenas em abril deste ano, quase dois anos após o início da prisão preventiva, Moraes autorizou Marco a ir para a prisão domiciliar. Mesmo tendo sido preso em abril de 2023, a denúncia só foi apresentada em julho de 2024, isto é: ele ficou mais de um ano preso sem sequer haver uma denúncia. Marco diz que foi à capital federal com a intenção de se manifestar pacificamente e que não apoiou os atos de vandalismo. Contra ele, pesa a mesma denúncia genérica, estilo Ctrl C + Ctrl V, apresentada pela PGR contra diversos outros implicados: “No mesmo dia 8.1.2023, Marco Alexandre Machado de Araújo, no período da tarde, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, de maneira livre, consciente e voluntária, em unidade de desígnios com outras centenas de pessoas, tentou depor, por meio de violência e grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
Agustavo Gontijo Ferreira: o homem de 56 anos foi condenado a 225 horas de serviços comunitários, pagamento de multa, a participar do tal curso sobre democracia do MPF, entre outras medidas. A quem possa pensar que a menção a Agustavo está deslocada aqui, já que sua pena foi consideravelmente branda, se comparada aos demais, tenham em mente que ele é vendedor ambulante de rodos e vassouras, que alega não ter acampado em frente ao quartel-general do Exército, não ter participado dos atos, mas sim que ia ao local (acampamento) aos domingos para participar de cultos evangélicos que eram realizados ali, acabando preso no fatídico dia (por azar, um domingo).
Jeferson Figueiredo: apesar de ter sido um raro episódio de absolvição, o caso do morador de rua e andarilho de 31 anos é emblemático. Jeferson foi preso no Quartel-General na manhã do dia 09 de janeiro. Desde o princípio, ele alegou em depoimento que apenas foi ao local em busca de abrigo e comida. Ele foi solto no dia 18 de janeiro, mas preso novamente em dezembro do mesmo ano por descumprimento de medidas cautelares (como diabos um andarilho vai cumprir medidas cautelares?). Mesmo sem qualquer prova de que ele tenha participado dos atos de depredação, a PGR se manifestou inicialmente por sua condenação pelos crimes de associação criminosa e associação ao crime. A PGR só “mudaria de ideia” um ano depois, reconhecendo o estado de vulnerabilidade social de Jeferson, bem como a ausência de provas. O andarilho foi finalmente absolvido em janeiro de 2025, mas apenas após passar mais de um ano indevidamente encarcerado.
Jean de Brito da Silva: o catador de recicláveis de 28 anos ficou preso por seis meses até meados de julho de 2023, quando começou a usar tornozeleira eletrônica. Mesmo tendo problemas mentais e sendo autista, a PGR só se manifestaria pela absolvição em fevereiro de 2024, após a defesa provar, por meio de um laudo pericial que concluiu que, à época dos fatos, ele era “totalmente incapaz de entender o caráter ilícito de seus atos”. Para a absolvição, ele teria que aguardar ainda mais de um ano. Mesmo absolvendo-o em março de 2025, por aquiescer com sua inimputabilidade, Moraes determinou que, por dois anos, ele deveria ser submetido a tratamento ambulatorial, período após o qual “deverá ser apurada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade”. Não fosse o laudo pericial, provavelmente Jean seria mais um a ser condenado a mais de uma década de prisão, já que, inicialmente, não obstante seus claros problemas mentais, a PGR o denunciou por tentativa de golpe de Estado, dano ao patrimônio, entre outros crimes.
Ademir da Silva: o vendedor ambulante de 54 anos foi um dos réus a recusar o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) oferecido pela PGR. Sua defesa alega que ele “sequer é bolsonarista”, que foi para Brasília com a esperança de comercializar suas mercadorias. Destaca-se que ele chegou a Brasília por volta das 18h00 no dia 08 de janeiro de 2023, o que por si só já comprova que ele não poderia ter participado dos atos de depredação, ocorridos mais cedo naquela tarde, salvo se pudesse estar em dois lugares ao mesmo tempo. Não obstante, ao passar pelo Quartel General, foi impedido pela polícia de deixar o local, sendo preso no dia seguinte. Não obstante, ainda, Ademir foi condenado a um ano de prisão, pagamento de multa, prestação de serviços, entre outras medidas.
Nathan Theo Perusso: o jovem de 23 anos foi declarado incapaz e a própria PGR se manifestou por sua internação em um hospital psiquiátrico, pedindo que a ação contra ele fosse encerrada. O laudo, que serviu de base para a manifestação da PGR, atesta que ele já era “inteiramente incapaz” de entender a ilicitude de seus atos ao se tornar réu, sendo diagnosticado com “transtorno de desenvolvimento intelectual”. Não obstante o laudo e o pedido da PGR, Moraes determinou que o processo contra Nathan seguisse, bem como que ele continuasse preso.
Claudinei Pego da Silva: o homem de 43 anos teria ido a Brasília a convite de um amigo. É o único provedor de uma família de quatro filhos e, antes da prisão, trabalhava como lanterneiro e pintor. Como noticiado na época, ele tentou suicídio na penitenciária da Papuda em dezembro de 2023, sendo contido por agentes penitenciários. Claudinei foi condenado a 16 anos e seis meses de prisão. Sua advogada relatou, antes da condenação, que pedidos pelo relaxamento da prisão preventiva foram negados por Moraes, com a alegação de que haveria um vídeo comprovando que Claudinei participou do quebra-quebra. Contudo, à defesa apenas foram fornecidas fotos e, como de praxe, não houve acesso aos autos. Mesmo que o vídeo seja verdadeiro e ele tenha realmente participado do vandalismo, não há depredação que justifique uma pena tão elevada.
Flávio Beltrão Soldani: o morador de rua de 58 anos frequentava os acampamentos para comer e dormir, acabando como um dos detidos no dia 09 de janeiro de 2023. Depois de 11 dias na Papuda, ele foi liberado mediante o uso de tornozeleira eletrônica. A liberdade provisória acabou revogada ainda em 2023 por Moraes devido ao descumprimento das medidas cautelares. Voltou a ser preso, durante manifestação pela Anistia na avenida paulista, em março deste ano, onde foi, segundo ele, com o intuito de conseguir ajuda. Foi um dos que acabou aceitando o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) para não ir para a cadeia. Sobre o descumprimento anterior das medidas cautelares, ele alegou não ter endereço fixo justamente por morar na rua e que teve problemas com a tornozeleira eletrônica, impossibilitando até mesmo sua recarga. Devido a esses fatores, inerentes à sua situação social, a Defensoria Pública da União (DPU) solicitou que ele pudesse cumprir o acordo sem restrições como o uso da tornozeleira ou o pagamento de multa. Na audiência de custódia, Flávio pediu que pudesse permanecer na carceragem da Polícia Federal até a conclusão do acordo: “Sinceramente, eu me conheço muito bem e temo pela minha segurança emocional e física se eu sair daqui para outro lugar. Eu não sei se o senhor me entende. Aqui eu me sinto relativamente tranquilo e bem”.
Diovana Vieira da Costa: a balconista, que, em março deste ano, enquanto aguardava o julgamento, estava grávida de 8 meses e que teria ido a Brasília para acompanhar sua sogra, foi mais uma das implicadas por simplesmente estar no acampamento. A defesa diz que há uma testemunha, o motorista do ônibus que levou Diovana a Brasília, que pode corroborar que ela só chegou na capital no final da tarde, entre 17h00 e 18h00, sendo impossível que ela tenha participado dos atos de depredação. Contudo, Moraes simplesmente negou a intimação dessa testemunha chave e votou para condená-la a um ano de prisão e pagamento de multa. Como houve um pedido de vista do ministro André Mendonça, o caso será levado ao plenário físico. É interessante notar que, ainda que Moraes tivesse aquiescido com a intimação da testemunha, isso certamente não teria alterado seu voto. Ele não votou para condenar Diovana por ela ter estado na praça dos três poderes (teria imposto uma pena muito maior se fosse este o caso), mas simplesmente por se encontrar no acampamento, entendendo que a mera presença das pessoas ali constituiu incitação ao crime e associação criminosa. Ora, como bem lembra a própria DPU, o acampamento ocorria com “a absoluta tolerância” do poder público.
Jaime Junkes: o professor aposentando, de 69 anos, foi condenado a 14 anos de prisão. Após a publicação do acórdão, Jaime foi preso, não obstante seu quadro de saúde, que inclui câncer de próstata em estágio avançado, além de outras comorbidades. No dia da prisão, ele sofreu um infarto, tendo que ir para a UTI do Hospital Araucária, em Londrina. Ainda assim, um pedido de sua defesa para a concessão de prisão domiciliar foi inicialmente negado por Moraes, antes que ele recuasse e permitisse que Jaime cumprisse a sentença em casa, sujeito àquela lista de descalabros que inclui desde a proibição de usar reses sociais até a vedação de entrevistas.
Vildete da Silva Guardia: condenada a 11 anos e 11 meses de prisão, a idosa de 74 anos teve finalmente a prisão domiciliar concedida por Moraes no fim de abril devido a graves problemas de saúde e locomoção. Contudo, malgrado o artigo 117 da Lei de Execução Penal garantir a possibilidade de prisão domiciliar a maiores de 70 anos ou acometidos com doenças graves (duas circunstâncias nas quais ela se encaixaria), Vildete esteve presa desde junho de 2024 com a alegação de que haveria risco de fuga: na ocasião da prisão, ela estava em sua residência, passando por tratamento médico e se recuperando da retirada de um tumor. De acordo com seu advogado, no fatídico dia, Vildete estava diante no Palácio do Planalto com uma amiga, para ondem correram para fugir das bombas de efeito moral. Como de praxe, não há individualização de conduta, prevalecendo a estapafúrdia tese do crime multitudinário.
Encerro essa parte da análise citando uma manifestação da Defensoria Pública da União, no âmbito de uma das ações penais do 08 de janeiro: “Assim, tal como visto nas outras ações penais em que se trata dos acontecimentos dos dias 8 e 9 de janeiro de 2023, a denúncia foi apresentada como um formulário, citando apenas os mesmos eventos genéricos sem indicar as condutas realizadas subjetivamente por cada acusado, de modo a meramente trocar seus nomes.”
Fontes:
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/04/25/julgamento-debora.htm
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/moraes-absolve-e-solta-morador-de-rua-preso-no-8-de-janeiro/
https://www.metropoles.com/colunas/tacio-lorran/morador-de-rua-8-de-janeiro
https://revistaoeste.com/politica/8-de-janeiro-moraes-mantem-prisao-de-jovem-declarado-incapaz/
https://www.poder360.com.br/justica/preso-pelo-8-de-janeiro-tentou-suicidio-na-papuda/
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=527107&tip=UN
https://www.poder360.com.br/poder-justica/moraes-viola-direito-defesa-re-8-janeiro-defensoria/
https://revistaoeste.com/politica/supremo-vai-julgar-pelo-8-de-janeiro-gravida-de-8-meses/
https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11690084/artigo-117-da-lei-n-7210-de-11-de-julho-de-1984