O 08 de janeiro de 2023 e a Anistia (conclusão)
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Creio poder afirmar com tranquilidade que todos os pontos apresentados até então atestam não só a pertinência, mas a necessidade de uma discussão sobre a anistia no parlamento brasileiro. A bem da verdade, se todos os abusos e desrespeitos ao devido processo legal elencados tivessem ocorrido em uma instância inferior, o caminho natural seria a anulação dos julgamentos em tribunais superiores. Ocorre que o Congresso Nacional não é corte revisora e não lhe compete anular julgamentos, o que, aí sim, seria uma via inconstitucional. O que, sim, é de incumbência do Congresso, é a faculdade de legislar sobre a concessão de anistia, como bem lhe garante o artigo 48 da Constituição Federal. A anistia, aliás, não é apenas uma das opções para corrigir a injustiça perpetrada pelo STF; é, como procurarei demonstrar, a única opção viável.
A análise poderia terminar aqui, pois é certo que violações às garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros são razões suficientes para que clamemos por uma correção, sendo a questão antes humanitária do que política. Contudo, não podemos nos dar ao luxo da ingenuidade e é preciso outrossim se debruçar sobre o aspecto político da coisa.
Argumenta-se que a anistia serviria de encorajamento a quem no futuro possa pensar em atentar contra a democracia. O erro desse argumento é insistir na lorota de que o que houve no 08 de janeiro de 2023 foi uma tentativa de golpe de Estado, o que julgo já ter demonstrado exaustivamente que não foi. De qualquer forma, esse argumento ignora que, se pensarmos assim, nenhuma forma de anistia seria legítima, já que sempre poderia ser entendida como um encorajamento ao cometimento do crime anistiado. A tese se torna ainda mais contraditória quando defendida por políticos que foram beneficiados com a anistia no passado.
Argumenta-se que os entusiastas da anistia usam os pobres coitados condenados pelo 08 de janeiro de forma oportunista, visando, verdadeiramente, a beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Vamos por partes aqui. Bolsonaro só estaria implicado no 08 de janeiro de forma indireta, devido ao vínculo que a Polícia Federal/PGR/Moraes tentou estabelecer entre as tratativas golpistas empreendidas em 2022 e os atos de vandalismo ocorridos já sob a presidência de Lula. Ocorre, como argumentei detalhadamente em um longo artigo, que, malgrado seus esforços, a PF não logrou estabelecer um nexo de causalidade entre uma coisa e outra, isto é, não provou que os atos do 08 de janeiro foram orquestrados por Bolsonaro e seus companheiros de outrora. Argumentei ainda que parte do esforço que temos que empreender no plano cultural para desmentir a narrativa de que aquilo foi uma tentativa de golpe passa por atestar essa falta de nexo, demonstrando o caráter espontâneo, desorganizado e até mesmo tosco dos atos ocorridos no fatídico dia, um domingo, quando sequer havia autoridades presentes para serem “depostas”. Nesse sentido, estender a anistia para os atos do 08 de janeiro aos implicados nas tratativas golpistas de 2022 é um contrassenso que só serviria para reforçar a narrativa oficial. Sim, é verdade que também os réus nesse outro processo, o que inclui Bolsonaro, terão um julgamento injusto pela frente, acusados de uma tentativa de golpe que sequer teve início, mas incluí-los na anistia poderia inviabilizar o benefício para a massa de cidadãos afetados. Além do mais, se há congressistas que argumentam que votariam contra a anistia para não beneficiar Bolsonaro, que razão dariam para votar contra se Bolsonaro não fosse beneficiado? Devemos, certamente, nos preocupar mais com a sorte dos vendedores ambulantes e cabeleireiras do que com a do ex-presidente, que, se tiver o mínimo de grandeza, aquiescerá em ficar de fora da anistia.
Por fim, há os que, reconhecendo o exagero nas condenações, argumentam que, em vez de uma anistia, deveríamos discutir a redução das penas. Nesse grupo, encontram-se ministros do STF, que, em uma tentativa de contrapor o Congresso e controlar a narrativa, tentam capitanear essa iniciativa. Ora, as penas para os que estavam presentes na Praça dos Três Poderes só foram tão elevadas devido à tese dos crimes multitudinários que os fez serem condenados por crimes como abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e associação criminosa armada. Para abrir mão dessas tipificações penais, o STF deveria abandonar a narrativa de que o 08 de janeiro foi uma tentativa de golpe, o que os ministros não estariam dispostos a fazer, mesmo porque precisam manter essa tese para condenar os envolvidos nas tratativas golpistas de 2022, já que a dita tentativa seria a suposta execução do plano golpista.
Além do mais, a manutenção da condenação por tais crimes é incompatível com uma efetiva redução das penas. Invoquemos a matemática: a pena mínima para abolição violenta do Estado Democrático de Direito é de 4 anos; por tentativa de golpe de Estado, também de 4 anos; por associação criminosa armada, de 1 ano. Sem incluir os crimes de vandalismo, já temos um mínimo de 9 anos de cadeia. Se adicionarmos as penas mínimas para dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, respectivamente de 6 meses e 1 ano, temos um mínimo de 10 anos e meio de prisão. Mesmo se eliminarmos a condenação por abolição violenta do Estado Democrático de Direito (tese defendida pelo ministro Barroso em seus votos), ainda temos uma pena mínima de 6 anos e meio de reclusão, consideravelmente acima das penas para atos de vandalismo.
A solução para o impasse, conforme os defensores da redução das penas, seria alterar a lei e reduzir as penas no texto legal. Ora, o problema não está nas penas para crimes contra o Estado e a democracia — diria até que são bastante brandas; o problema está no fato de que essas pessoas não cometeram os crimes imputados, com exceção dos relacionados a vandalismo (sendo que nem todos se envolveram em tais atos), haja vista que, mesmo que tivessem âmago golpista, não dispunham dos meios para concretizar o tal golpe, configurando-se assim o crime impossível, que é inimputável. Dessa forma, o único compromisso possível para evitar a aprovação da anistia seria a absolvição por tais crimes, o que, além de não ter chance de acontecer, seguiria sendo uma injustiça (ainda que menor), já que as condutas seguiriam sem individualização e pessoas que não quebraram nada seguiriam punidas, perdendo o réu primário, simplesmente por estarem ali. Além disso, chega a ser contraditório que aqueles que se dizem tão preocupados em desestimular o cometimento desses crimes advoguem a alteração da lei e redução da punição.
Para concluir, temos que o aspecto político da anistia, para além do que concerne ao Direito, é que o Congresso tem a oportunidade de corrigir uma grande injustiça e, ao mesmo tempo, desmentir a ficção de que houve uma tentativa de golpe de Estado em 08 de janeiro de 2023. Se permitirmos que mais uma vez o STF controle a narrativa, farão uma redução de penas para inglês ver, sem mover uma vírgula em sua narrativa oficial.
Fontes:
https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10634840/artigo-48-da-constituicao-federal-de-1988
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14197.htm
https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/art-163-dano-codigo-penal-comentado-ed-2022/1728397427
https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11331881/artigo-62-da-lei-n-9605-de-12-de-fevereiro-de-1998