No país dos donos do poder, pagamos caro pela blindagem do grande sancionado
No clássico Os donos do poder, Raymundo Faoro fez uma análise minuciosa da história nacional e nela identificou um fenômeno que, de tão arraigado, resistiu à ação do tempo, às mudanças de regime e à diversidade de perfis dos governantes: o patrimonialismo. Como escreveu na conclusão de sua obra, abrangendo o período de D. João I a Getúlio Vargas, “a comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios políticos depois, em linhas que se demarcam gradualmente.” Dentro da estrutura descrita pelo autor e por ele observada como uma constante ao longo dos séculos, o povo anseia pela “proteção do Estado, parasitando-o, enquanto o Estado mantém a menoridade popular, sobre ela imperando.” O que teria mudado nos quase quarenta anos da Nova República que Faoro não chegou a comentar?
A AGU contratou um escritório norte-americano para assumir a defesa de Alexandre de Moraes, nos autos do processo movido pela Trump Media e pela Rumble contra o togado, nos Estados Unidos. A contratação, sem licitação, redundou em honorários nada módicos de US$ 3,5 milhões, a serem sacados dos recursos de todos nós, que, embora espoliados via impostos, não possuímos qualquer interesse na pendenga nem fomos chamados a opinar sobre tamanho dispêndio. Foi praticado mais um desvio de finalidade e, como já de praxe entre nós, sem qualquer pudor.
Como órgão de estado, a AGU é encarregada tão somente da representação, em juízo e fora dele, dos interesses da União, pessoa jurídica composta pelos três poderes da república. Portanto, tendo sido a ação das empresas americanas movida contra o indivíduo Alexandre de Moraes, distinto do poder por ele integrado, teria cabido ao togado contratar seus advogados no hemisfério norte e arcar com as respectivas despesas. Aliás, tendo as autoras da medida invocado, como causa de pedir, várias decisões de Moraes para muito além de seus poderes, não faria qualquer sentido jurídico, muito menos ético, responsabilizar o estado brasileiro por condutas inconstitucionais e ilegais de um de seus figurões.
No entanto, “confundindo” o cargo de ministro da suprema corte com a pessoa de seu ocupante, a AGU se imiscuiu no caso e contraiu, para o erário, um passivo milionário sem licitação, sob a alegação de que a contratação do escritório se destinaria à defesa de interesses da União no exterior. Desculpa esfarrapada, pois, longe de “encarnar” nossos valores democráticos, Moraes não passa de um ser tão humano quanto qualquer um de nós e, nessa condição, responsável por seus atos ilícitos e por todas as consequências deles advindas, incluindo-se aí os custos de defesa no âmbito das ações contra ele movidas.
Não satisfeita em retirar a fórceps, dos cofres públicos, os valores dos honorários dos advogados nos EUA, a AGU ainda pretende vir a cobrá-los de Bolsonaro, em atitude situada em zona indefinida entre a insanidade e a canalhice extremas. Há duas razões jurídicas principais pelas quais é inaplicável ao caso a regra segundo a qual cabe à parte vencida arcar com os honorários dos advogados da parte vencedora. Como o ex-presidente sequer figura como parte, ou terceiro interessado, na ação da Trump Media e da Rumble contra Moraes, não pode ele vir a ser financeiramente onerado pelo litígio nem sofrer os efeitos de eventual decisão proferida nos autos de uma medida onde não ocupa qualquer posição processual. Outrossim, a ação ainda se acha sob apreciação, razão pela qual a AGU não pode antecipar-se ao juízo americano para definir, a seu bel prazer, qual das partes será condenada a arcar com os honorários dos patronos da outra.
De acordo com a narrativa repetida à exaustão pela AGU e pelo estamento judiciário, Bolsonaro seria uma espécie de “causa raiz” no desgaste das relações entre a Casa Branca e o Planalto. Porém, os fatos desmentem os poderosos de plantão, pois a ação no exterior se destina a questionar a censura alexandrina, justamente um dos maiores flagelos recentes para o exercício das liberdades por Bolsonaro, seus familiares e aliados. Assim, a conduta da AGU só corrobora o cabimento da aplicação da sanção Magnitsky contra Moraes, atestando a conivência do atual governo brasileiro com as reiteradas violações praticadas pelo togado.
Aliás, nosso Grande Inquisidor também conta com o amparo de membros de outras cortes, com destaque especial para o ministro Herman Benjamin, à frente do STJ. Encarregado pela Constituição e pela lei processual de dar prosseguimento aos atos de comunicação de juízos estrangeiros (cartas rogatórias), Benjamin recebeu a inicial da Trump Media e da Rumble para proceder à citação de Moraes; porém, até onde se saiba, ainda não cumpriu seu dever de ofício. Ao contrário, colocou o material sob um sigilo indevido, pois fora das hipóteses de confidencialidade previstas na legislação, e, ao que tudo indica, manteve a ação engavetada a sete chaves em seu gabinete.
Ao assim proceder, o dito “tribunal brasileiro da cidadania” representado por Benjamin chancelou a chamada litigância de má fé, permitindo que o réu Moraes opusesse uma resistência injustificada ao andamento do processo contra ele movido. Apesar de repudiada pelo artigo 80 do nosso Código de Processo Civil (CPC), a deslealdade processual – quem diria! – vem sendo levada a cabo graças à omissão relevante do presidente da corte à qual cabe a competência constitucional de zelar pela correta aplicação tanto da legislação federal (CPC), quanto dos tratados internacionais (nesse caso, dos acordos de cooperação judiciária entre Brasil e Estados Unidos). Por toda a parte, rasgões às normas jurídicas vigentes, e sempre em prol da blindagem de um único togado.
Se vivo fosse, talvez Faoro constatasse, com amargura gatopardista, que, apesar dos ventos de liberdades democráticas dos anos 80 e 90, a essência da nossa estrutura de mando não sofreu alterações. É possível que sua única surpresa residisse no perfil dos nossos atuais donos do poder. No lugar de monarcas, oligarcas, caudilhos populistas, fardados e políticos demagogos, nossos senhores de hoje vestem toga, e, pela primeira vez em nossa história, nos achamos sob o jugo de figurões que não necessitam de campanhas políticas, votos ou armas para disporem das nossas liberdades. Imagino que Faoro se mostrasse intrigado diante de um fenômeno a ser ainda estudado por muitas gerações.
Deixemos, então, as indagações de índole sociológica aos brasileiros do amanhã. No presente momento, urgem ações corajosas por parte dos nossos estadistas, mediante o uso de ferramentas disponibilizadas pela própria Constituição vigente. Ações, antes da asfixia completa das nossas liberdades!