Fux e a penosa busca da institucionalidade perdida

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O julgamento de Bolsonaro e aliados pela corte majoritariamente composta por inimigos declarados dos réus contou com um dia de desalinhamento com o script condenatório traçado de antemão. Revivendo seu passado como juiz de carreira e lançando mão de seu notável saber jurídico, o ministro Fux surpreendeu seus pares, o PGR e talvez até mesmo os advogados presentes à sessão e desmontou as principais teses hegemônicas acerca da dita “trama golpista”. Sem uma única fala politiqueira e/ou debochada, o magistrado destoou dos colegas ao levar o Direito a sério, apreciando os fatos controversos à luz das normas constitucionais e legais cabíveis e da mais prestigiada doutrina. Pelo menos, assim agiu durante quase todo o seu voto.

Logo de início, brindou a todos nós, entusiastas da rigidez dos ritos, com o reconhecimento da incompetência absoluta do STF para a apreciação de condutas de indivíduos desprovidos de foro e, como consectário jurídico e lógico necessário, declarou a nulidade de todos os atos processuais praticados no caso do “golpe”. Aplicou o artigo 102 da Constituição, contendo o rol taxativo de atribuições da corte, e prestigiou a garantia constitucional ao juiz natural, segundo a qual cada um de nós somente pode ser julgado por magistrado designado para tanto pela legislação vigente. Assumiu o ônus público de contrariar suas posturas anteriores (como, por exemplo, seus votos desfavoráveis a réus do 08.01, todos eles desprovidos de foro privilegiado) e fez o certo, ao apontar a ferida aberta da incompetência, insuscetível de ser convalidada pelo tempo ou pela atuação de sucessivas instâncias, devido à sua natureza absoluta, e, como tal, insanável.

Ainda no plano formal, assinalou o despropósito no julgamento de um ex-presidente por uma turma e não pelo plenário, ao qual teria cabido apreciar fatos imputados aos ocupantes dos cargos mais elevados da república. Como bem enfatizou Fux, a atribuição do caso a um órgão fracionário e não ao tribunal como um todo importou no silenciamento de vozes de ministros impedidos de externar seus juízos sobre o assunto.

Na seara dos fatos, rechaçou toda a ladainha disseminada por seus colegas e reverberada pela mídia servil desde o 08.01. No exame dos delitos atribuídos aos réus, começou por colocar por terra a narrativa sobre a pretensa existência de uma organização criminosa, cuja caracterização teria exigido a comprovação da estabilidade e da permanência na finalidade de delinquir. Diante do deserto probatório da denúncia da PGR, incapaz de atestar que os réus tivessem efetivamente se reunido para fazerem da criminalidade seu ofício, Fux classificou os vínculos entre eles como fatos penalmente irrelevantes. Deu às coisas o atributo que lhes cabe e desnudou a sanha persecutória de seus pares, em particular, de Alexandre de Moraes, que, em reiterados eventos acadêmicos e midiáticos, já havia prejulgado os réus como membros de um clã delitivo.

Fiel às provas dos autos, Fux também derrubou a majorante de pena pleiteada pela PGR pelo emprego de arma de fogo sob a alegação de inexistência de comprovação do uso efetivo de armas para a tal atividade-fim “golpista”. Como conversas e minutas não são feitas com armamentos, mas com palavras, Fux acabou por escancarar o ridículo de uma pretensão punitiva contra réus que atuaram tão somente no terreno da retórica.

Em outra ilustração de uma lucidez jurídica em extinção no ambiente togado, o magistrado desmoralizou a tese alexandrina de que Bolsonaro e seu entorno devessem ser responsabilizados pelos danos acarretados pelas depredações do 08.01. Sendo a responsabilidade penal individual, os réus somente poderiam responder pelas condutas de outrem nas hipóteses de autoria mediata, ou seja, se tivessem contratado os depredadores para atividades delitivas ou se estes fossem mentalmente frágeis (inimputáveis) a ponto de se deixarem manipular por lideranças bolsonaristas. Atendo-se à inexistência de comprovação de inimputabilidade, insuscetível de presunção sob pena do que Fux designou como “paternalismo” indevido, o magistrado reconheceu que vândalos não poderiam ser tidos como executores de supostos desejos dos réus. Obviedade fática e jurídica, mas que, até então, nenhum de seus pares havia tido a coragem de proclamar.

Quanto ao cerne da trama folhetinesca, Fux teceu uma longa digressão de louvor à liberdade de expressão, cuja proteção constitucional adquire relevância extrema na esfera política por ser a palavra ferramenta crucial no convencimento de simpatizantes e/ou eleitores. Após traçar uma linha divisória entre a atuação de magistrados, adstritos ao dever de continência verbal, e a de políticos, cujas falas não podem ser tolhidas pelo escrutínio de togados, Fux explicitou que discursos, lives, entrevistas ou manifestações opinativas de qualquer gênero não poderiam ter sido criminalizadas como pretensas etapas executórias de uma tentativa de golpe. Muito menos poderiam ter sido os réus punidos por petições ao judiciário, por tratar-se de conduta legítima, amparada pela garantia constitucional de amplo acesso à apreciação judicial.

Sem espalhafato, Fux desnudou o grotesco na atuação de togados que se retorceram, nos últimos meses, à procura de evidências “golpistas” em postagens, fofocas de quartel e até conversas de bar. Ainda fez questão de comparar as manifestações retóricas dos réus aos atos de violência extrema em manchete no noticiário, com destaque especial para o assassinato covarde de um cinegrafista por black blocks, que, longe das agruras impostas ao círculo bolsonarista e aos condenados pelo 08.01, gozam de uma liberdade incompatível com qualquer sistema jurídico eficaz.

Por fim, o magistrado desceu às minúcias sobre a impossibilidade jurídica do chamado dolo superveniente, uma das falácias na denúncia. Longe do que pretendeu o Dr. Gonet, o 08.01 não poderia ter sido desejado por um “núcleo golpista”, e, se o tivesse sido, tal “desejo” teria sido irrelevante para efeitos penais. Como bem ensinou Fux aos seus pares e ao PGR, o dolo, intenção de consumar o delito, teria de ter sido contemporâneo aos fatos incriminados, não podendo, por razões óbvias, ser posterior a estes. Assim prosseguia a notável aula de Direito ministrada por Fux, até que advieram dois percalços.

Ao final daquele dia inesquecível, o togado tropeçou por cima das condenações de Mauro Cid e do general Braga Netto, destoantes de todo o restante do voto. Em relação a Cid, Fux manteve de pé a delação premiada do militar, apesar de todas as “idas e vindas”, ou seja, das nove versões diferentes do colaborador, que, no entender do próprio magistrado em ocasião anterior, teriam configurado “nenhuma delação”. Nesse caso, porém, Fux desconsiderou todas as lacunas probatórias da delação, as contradições e os robustos indícios de coação exercida sobre o colaborador e abraçou a regularidade de uma delação que, além de nada convincente, deixou de preencher os requisitos da lei aplicável.

Além de ter levado à condenação de Cid por tentativa de abolição violenta do estado, a delação capenga também fundamentou o juízo condenatório de Fux sobre Braga Netto pelo mesmo tipo penal – e, pasme você, caro leitor, condenação baseada apenas nas palavras do delator sobre pretensas reuniões – que, horas antes, o próprio Fux havia descrito como fruto da liberdade de associação – e sobre mensagens de WhatsApp indicativas de um suposto esquema de monitoramento de Alexandre de Moraes, pretensamente destinado às futuras detenção e execução do togado. Embora, mais cedo, Fux tivesse abrilhantado o tribunal com uma autêntica aula sobre iter criminis (trajetória delitiva) e sobre a possibilidade de sanções penais tão somente a atos de execução e consumação de delitos, o togado puniu Cid e Braga Netto por pretensas condutas de cogitação e/ou, se tanto, de preparação, mas que não chegaram a configurar qualquer início de execução da tal tentativa de golpe. Final melancólico para um dia radiante.

O voto de Fux foi histórico, por ter sido a primeira decisão, em tantos anos, a dar sentido à colegialidade na discordância dos demais e a prestigiar princípios constitucionais pisoteados pelo estamento togado, assim como o próprio conceito de democracia como sistema da institucionalização de litígios. Contudo, o julgado também fez história em suas próprias contradições ao sinalizar a hesitação do togado em levar seu raciocínio às últimas conclusões e absolver todos os réus de uma acusação de golpe carente de lastro probatório mínimo. O sacrifício injustificado dos dois réus apenados por Fux não deve passar despercebido nem ser negligenciado como imperfeição inerente a qualquer decisão humana. Afinal, estão em jogo liberdades individuais que serão ceifadas também por deliberação do magistrado, mas sem razão jurídica plausível.

A despeito da concessão de Fux à tese alexandrina sobre o coronel e o general, ainda assim, diz-se que o magistrado vem sendo ostensivamente hostilizado pelos pares desde o seu voto. O togado que ousou divergir parece estar sendo vítima da punição oficiosa de pseudodemocratas intolerantes. Ainda será necessária a conscientização das futuras gerações sobre os pilares do estado de direito para que, somente com o passar do tempo, possamos aspirar à formação de uma classe política comprometida com seus deveres, inclusive na contenção de arroubos togados. Sejamos, nós, parte desse trabalho penoso, e deixemos que o tempo se incumba do resto.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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