Caso Tagliaferro: as perversões de um sistema erodido
Para surpresa de ninguém, o Dr. Paulo Gonet apresentou denúncia (ação penal) contra Eduardo Tagliaferro, ex-assessor do gabinete de Alexandre de Moraes no TSE. Nosso PGR usou sua caneta para mais uma aventura baseada em erros processuais crassos e em fantasias insuscetíveis de justificar qualquer pedido sério de privação de liberdade.
A jurisdição “eleita” por Gonet foi o STF, sob a alegação de que a pretensa conexão entre as atitudes de Tagliaferro e os temas objeto dos inquéritos das fake news e das milícias digitais justificaria a competência da corte para o caso. Pura falácia, na medida em que a atuação do Supremo em matéria penal, definida pelo rol taxativo das hipóteses previstas no artigo 102 da Constituição, se restringe à apreciação de crimes comuns de autoria de indivíduos com prerrogativa de função.
Como Tagliaferro jamais ocupou cargo que tivesse lhe conferido o chamado foro privilegiado, eventuais condutas delitivas por ele praticadas seriam de competência das varas de primeira instância. Qualquer outro entendimento resulta na oficialização do STF como um tribunal de exceção, que, ferindo normas constitucionais e legais, amplia a própria competência, para ter nas mãos as rédeas da liberdade de todos nós, cidadãos comuns privados da nossa garantia ao juiz natural.
Prosseguindo nos acintes à ordem jurídica, Gonet encaminhou sua petição à relatoria de Alexandre de Moraes, embora o togado se achasse mais que impedido de examinar a licitude de falas de seu ex-assessor sobre fatos pretensamente ocorridos em seu gabinete. Porém, no país onde as hipóteses legais de impedimento e suspeição se tornaram ficcionais, tornaremos a testemunhar o ridículo de um ministro que não hesitará em fazer referência a si mesmo na terceira pessoa, despachando sobre pseudo-ilícitos cometidos contra uma democracia consubstanciada em sua própria potestade e na aura de inquestionabilidade de seus despachos.
No mérito, a denúncia da PGR, de tão inconsistente, poderia ser facilmente contestada por qualquer estudante de Direito. Ao atribuir a Tagliaferro as práticas de violação de sigilo funcional, coação no curso do processo, obstrução de investigações e tentativa de abolição violenta do estado, Gonet atestou um desconhecimento técnico incompatível com o saber jurídico exigido para o cargo e/ou uma reputação questionável de um profissional disposto a comprometer sua biografia, em nome de interesses nada republicanos.
Quanto ao crime de violação de sigilo, o procurador deveria saber que o artigo 325 do Código Penal só pune a conduta do funcionário “fofoqueiro” se o mesmo fato não configurar crime mais grave. Como, segundo o próprio Gonet, a quebra do “sigilo” também teria se destinado ao “embaraço de investigações” e ao “golpismo”, e como a legislação prevê penas muito maiores para os demais crimes imputados a Tagliaferro, o PGR não pode pretender punir o ex-assessor por delitos violentos e, ainda, por violação de sigilo. A natureza subsidiária desse delito, explícita no texto do Código Penal, elimina qualquer perspectiva de êxito da pretensão punitiva de Gonet!
Aliás, ainda no tocante a esse mesmo tipo penal, o PGR fingiu esquecer que, para a caracterização da violação de sigilo, teria sido imperioso provar a existência do dever de sigilo por parte de Tagliaferro. Contudo, o caso do ex-assessor não envolvia obrigação de confidencialidade, pois os fatos por ele escancarados consistiam em manifestos desvios em dependência judiciária, que ele não só podia como devia levar a público.
Em outro ato-falho da irregularidade de sua denúncia, Gonet se referiu ao celular de Tagliaferro como sendo a “provável origem” da dita Vaza Toga 1, insinuando sua ciência sobre a identidade de fonte jornalística, cujo sigilo é consagrado pela Constituição – e ainda desmentiu sua própria tese ao rotular como falsas todas as falas de Tagliaferro sobre o modus operandi do TSE e do STF, enquanto pleiteou a punição do ex-assessor por “violação de sigilo” sobre os aludidos fatos.
Em relação aos demais delitos imputados, cuja consumação pressupunha o emprego de violência, o PGR tornou a equiparar a mera retórica de Tagliaferro à prática de atos violentos. Também nesse aspecto Gonet prosseguiu subserviente à nova “praxe” ditada pelo STF, que tem imposto penas estratosféricas ao exercício legítimo das meras condutas de manifestar, questionar e discordar.
Se ainda vivêssemos em um ambiente regido por alguma institucionalidade, a denúncia de Gonet seria inadmitida de pronto e poderia até valer para o PGR uma condenação em litigância de má fé, em virtude da afronta a dispositivos de lei. Contudo, no país onde a cúpula judiciária “normatizou” o desrespeito às normas constitucionais e legais, togados e PGR continuarão tentando intimidar Tagliaferro, inclusive mediante um pedido descabido de extradição à Itália, e, em sua atuação acadêmica, prosseguirão ensinando o errado no lugar do certo, rotulando o certo como “golpismo” e construindo uma jurisprudência desprovida do mínimo de razoabilidade jurídica.
Estamos diante de uma erosão sistêmica, cuja reversão desafiará as gerações do hoje e do amanhã.