Caso Ramagem: a corte inconstitucional que foge ao próprio veneno

Print Friendly, PDF & Email

Sobriedade, imparcialidade, respeito aos dispositivos vigentes, e, sobretudo, coerência. Embora inerentes ao ofício judicante, todos esses deveres fundamentais vêm sendo pisoteados por magistrados exclusivamente comprometidos com a satisfação de seus desejos.

Em caráter de extrema urgência, todos os integrantes da 1ª Turma do STF houveram por bem suspender a ação penal (denúncia) sobre o famoso “golpe”, mas apenas contra o deputado federal Alexandre Ramagem (PL/RJ) e tão somente em relação aos crimes de dano e de deterioração do patrimônio tombado, supostamente praticados após a diplomação do parlamentar. O veredito, proferido na sessão extraordinária convocada a pedido do ministro Alexandre de Moraes, sobreveio menos de dois dias após a sustação, pela Câmara dos Deputados, da denúncia contra o congressista. Na casa do povo, 315 mandatários eleitos haviam lançado mão de sua prerrogativa constitucional e deliberado, por maioria de votos, a suspensão da ação contra Ramagem. Na casa da elite togada, 5 membros da cúpula judiciária se permitiram rever a determinação parlamentar e restringi-la ao seu bel prazer. Julgamento legítimo ou revanche de índole politiqueira?

Conforme o artigo 933 do Código de Processo Civil, Moraes só poderia ter deixado a inércia da toga se tivesse deparado com fato novo ou com matéria relevante pendente de apreciação, hipóteses em que teria de ter intimado os interessados (os réus e a PGR) para manifestação. Contudo, faltando com seus deveres de relator e, mais uma vez, atropelando os ritos, o togado nem mesmo se interessou em ouvir as partes, em visível prejuízo às defesas dos “golpistas”. Sem amparo constitucional ou legal, partiu para a ação, na ânsia de dar a última palavra sobre a identificação do beneficiário e sobre os limites para a suspensão do “processo do golpe”.

Em seu cerne, o voto de Moraes no caso Ramagem contradisse toda a tese por ele mesmo concebida e alardeada, nos últimos anos, acerca do tratamento coletivo a ser dispensado aos “golpistas”, vez que todos eles teriam sido agentes dos tais delitos multitudinários, praticados sob o calor da pulsão da massa em delírio. A partir dessa premissa afrontosa ao princípio constitucional da responsabilidade penal individual, a PGR se recusou a individualizar as condutas dos acusados, e Moraes e seus pares se orgulharam em condenar pessoas a penas elevadíssimas, sem qualquer especificação das atitudes delitivas que teriam justificado o encarceramento de cada uma delas. Assim sendo, a alusão, por Moraes, ao caráter personalíssimo da imunidade parlamentar de Ramagem contrastou com o discurso coletivista do togado, que vem classificando o deputado, assim como Bolsonaro e militares de elite, como integrantes do núcleo de mandantes do “golpe”, visceralmente atrelados a todos os demais adeptos do pretenso golpismo.

Da mesma forma, a restrição da suspensão processual à pessoa de Ramagem destoou da tese alexandrina sobre um concurso de agentes, ou seja, sobre a reunião de diversos perfis de “golpistas” movidos pelo dolo comum de atentar contra a democracia. Com base em tamanha falácia, Moraes e seu entorno vêm usando indistintamente todas as provas contra os milhares de denunciados, réus e condenados, e têm chegado ao cúmulo de condenar, por crime de dano, pessoas jamais identificadas nos protestos do 08.01, sob a presunção indevida de que até os ausentes teriam de ser punidos pelas depredações em virtude da mera disseminação de opiniões “antidemocráticas”. Portanto, até mesmo sob a ótica paranoica de Moraes, como é possível que Ramagem não responda pelo delito de dano e que indivíduos por ele eventualmente “instigados” ao quebra-quebra continuem sendo responsabilizados pelas deteriorações? A resposta a esse questionamento deixa clara a iniquidade da decisão e as reiteradas violações à boa fé objetiva por parte de um togado que não hesita em agir contra fato próprio, ao sabor das conveniências.

Quanto aos crimes pelos quais Ramagem seguirá respondendo, quais sejam, os de organização criminosa armada, de tentativa de abolição violenta do estado e de golpe de estado, a interpretação togada é insanamente dissociada dos fatos. Ora, a manutenção da condição de réu por fatos datados do período em que Ramagem integrava o grupo político da situação reflete um abuso do aparato estatal para repressão a crimes impossíveis. Afinal, se o delito tipificado no artigo 359-M do Código Penal é descrito como sendo a conduta de tentar depor o governo constituído e se, nos anos anteriores a 2023, Ramagem pertencia ao círculo do poder, não é minimamente verossímil que ele tivesse buscado “golpear” a si mesmo ou a seus superiores. Portanto, o processo contra Ramagem, mantido por Moraes e seus pares, não passa de mais uma aventura desprovida de razoabilidade jurídica.

Porém, o maior acinte à ordem constitucional e ao modelo vigente da separação de poderes sobreveio no voto do ministro Dino, que acompanhou, na íntegra, a decisão de Moraes, tendo acrescentado a ela suas próprias “ressalvas”. Na opinião de Dino, a deliberação do legislativo sobre a suspensão de ações penais contra parlamentares não seria imune ao controle do judiciário “em face da possibilidade de abusos e desvios”. O togado comunista se esqueceu apenas de frisar que eventuais desvios teriam de ter sido suscitados pelas partes, comprovados e examinados, por magistrados, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. No caso envolvendo Ramagem, não houve qualquer demonstração de conduta abusiva, mas tão somente a constatação do fato notório, divulgado por toda a mídia, de que a Câmara dos Deputados, no uso de suas atribuições, havia sustado o curso de uma ação contra parlamentar em pleno exercício de suas funções.

Em apoio à sua tese de que o legislativo não teria a palavra final sobre a suspensão, Dino invocou o artigo 239, parágrafo 2º do regimento interno do STF, introduzido por uma emenda regimental de 1985, bem anterior à data da promulgação da Constituição em vigor e incompatível com a redação atual do artigo 53 da nossa lei maior. Portanto, o togado menosprezou o primado absoluto das normas constitucionais sobre todas as outras, zombando do consenso político sob cuja égide ele mesmo construiu toda a sua carreira política e ascendeu à cúpula judiciária.

Não satisfeito, Dino ainda citou trecho da decisão do STF em que a corte revogava o indulto concedido pelo ex-presidente Bolsonaro ao então deputado Daniel Silveira. Louvou um dos julgados mais vexatórios da nossa história recente, onde o tribunal, sob o pretexto de zelar pelos nobres princípios da administração pública, se arrogou a invadir a esfera de discricionariedade do executivo para punir um parlamentar por mero crime de opinião. Para surpresa de uns poucos ingênuos, o togado apresentou um voto distante da técnica jurídica, mas carregado de símbolos de uma hegemonia aberrante do judiciário sobre o legislativo.

Ao lançar mão de sua prerrogativa constitucional de sustar a ação contra Ramagem, a Câmara acabou por desnudar toda a incoerência da narrativa togada sobre um golpe jamais colocado em execução. Foi escancarado, aos olhos de todos, o veneno instilado em todas as decisões censoras desde a corrida eleitoral de 22, em todos os decretos de prisões políticas no pós-08.01 e nas recentes sessões de recebimento das denúncias pelo golpe supostamente liderado por Bolsonaro. Contudo, agindo indevidamente como autêntico “poder moderador”, pronto a pairar acima dos demais, o Supremo vem mostrando força suficiente para fugir aos efeitos do próprio veneno e, apesar de seu descrédito junto à maior parte da população, para prosseguir na perseguição a opositores e na intimidação ao legislativo.

O caso Ramagem, que, nas palavras de Dino, acaba de ser decidido pelo judiciário, em caráter “terminativo”, representou mais um grave impasse entre juízes desprovidos de votos e parlamentares eleitos. Nesse cenário de acirramento das tensões, caberiam aos congressistas as obrigações de recusar convescotes e tours com seus juízes, de priorizar a anistia aos reféns políticos, de descriminalizar os tipos penais de abolição do estado e de golpe e de tomar todas as providências legislativas necessárias à contenção aos arbítrios togados.

No entanto, em sua já habitual promiscuidade com os senhores de toga, a imensa maioria parlamentar tende a se manter servil frente aos que deliberam por último e a barganhar favores pessoais, ainda que sob o risco de um eventual fechamento das casas legislativas, como ocorrido na vizinha Venezuela em 2017. Enquanto só pudermos contar com perfis políticos abastardados, togados continuarão instilando o veneno dos desmandos, e todos nós permaneceremos expostos à contaminação tóxica.

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Judiciário em Foco

Judiciário em Foco

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

Deixe uma resposta

Pular para o conteúdo