A prisão de um humorista e o fim da liberdade de expressão

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A prisão do humorista Léo Lins não é um caso isolado nem uma simples questão de gosto ou sensibilidade. Trata-se de um grave precedente institucional. Pela primeira vez, um artista é privado de sua liberdade por conta de piadas feitas em um show de stand-up realizado em ambiente privado (um espetáculo para o qual o público adquiriu ingresso de forma voluntária) e cujo conteúdo foi posteriormente compartilhado em sua própria rede social. Essa cadeia de eventos deveria estar inteiramente protegida pela Constituição. No entanto, foi criminalizada.

Esse episódio transcende o universo do humor e atinge diretamente o núcleo da liberdade de expressão e da liberdade digital. A internet, até então espaço de livre manifestação, crítica e diversidade de pensamento, passa a ser tratada como extensão do território penal. Qualquer conteúdo artístico, simbólico ou satírico pode ser removido de seu contexto, reinterpretado e punido criminalmente por ofensa subjetiva. Ao prender Léo Lins com base no conteúdo publicado em uma rede social, o Estado brasileiro inaugura um precedente perigoso. Plataformas digitais deixam de ser apenas meios de comunicação, passando a ser espaços sujeitos à censura judicial e responsabilização penal arbitrária por simples discurso.

A gravidade do caso se intensifica por um detalhe jurídico que muitos ignoram: trata-se da penalização de uma conduta de natureza essencialmente civil. Em outras palavras, seria cabível reparação por meios indenizatórios, caso comprovado dano real. A transformação forçada de uma ofensa moral em crime punível com prisão inverte a lógica jurídica básica do Estado de Direito.

A Constituição Federal de 1988 é explícita: “é livre a manifestação do pensamento” (art. 5º, IV), “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, IX) e “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística” (art. 220, §1º). O Supremo Tribunal Federal, na ADPF 130/DF, que julgou a não recepção da antiga Lei de Imprensa, consolidou o entendimento de que “a liberdade de expressão constitui pedra de toque do regime democrático” e que “eventuais excessos devem ser tratados no campo cível, jamais por meio de censura prévia ou repressão penal.”

Os que defendem a penalização de Lins argumentam que o humor, ainda que protegido como manifestação artística, não pode se converter em escudo para discursos que atentem contra a dignidade de pessoas ou grupos vulneráveis. Invocam dispositivos como o artigo 20 da Lei 7.716/1989 (Lei do Racismo) e princípios constitucionais ligados à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), alegando que há limites à liberdade de expressão quando ela se torna veículo de preconceito ou incitação ao ódio. A atuação do Judiciário, nesse entendimento, teria como objetivo coibir a normalização de discursos discriminatórios sob o pretexto de sátira ou humor.

Contudo, essa interpretação amplia perigosamente o poder do Estado sobre a linguagem, pois transfere ao Judiciário o papel de árbitro do aceitável — uma forma de moral estatal. O humor, por definição, é exagerado, provocador e frequentemente desconfortável. A criminalização de sua ambiguidade representa não uma defesa de direitos, mas sim a erosão da liberdade. A jurisprudência do STF é clara ao afirmar que o Estado não pode atuar como “tutor da verdade”. Em julgamento recente, o ministro Gilmar Mendes afirmou que “a liberdade de expressão protege inclusive o discurso que desagrada, ofende ou incomoda” (HC 82.424/SP).

Esse mecanismo, uma vez aceito, serve de base para uma arquitetura jurídica que ameaça não apenas artistas, mas qualquer cidadão. A fronteira entre opinião e crime desaparece. A censura se institucionaliza sob a aparência de defesa da dignidade. A internet deixa de ser um espaço livre e passa a ser um campo minado, onde a simples divergência pode levar à repressão penal. O que antes era passível de crítica pública, refutação ou, no máximo, litígio cível, hoje é tratado como infração criminal.

A dignidade humana, princípio central da Constituição (art. 1º, III), não pode ser instrumentalizada para suprimir outras liberdades constitucionais. O STF já alertou para isso no julgamento do RE 511.961/SP ao afirmar que “o princípio da dignidade da pessoa humana deve coexistir harmonicamente com os direitos fundamentais da liberdade e não ser usado como justificativa para restringir a pluralidade de pensamento.”

Charles Chaplin dizia que “a vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe.” O humor permite esse distanciamento essencial: rir é, muitas vezes, a única forma civilizada de suportar o insuportável. Silenciar o comediante, portanto, é silenciar o mecanismo mais humano de crítica, de resiliência e de liberdade. Mas não se trata apenas do comediante. Ao calar Léo Lins, cala-se boa parte da população, inclusive muitos que, por ignorância ou por conveniência ideológica, aplaudem sua prisão.

E aqui está uma verdade desconfortável: defender a prisão de um artista por aquilo que disse, mesmo quando não se concorda com o conteúdo, é abrir mão da própria liberdade de expressão. É afirmar que o Estado tem o direito de decidir o que pode ou não ser dito. É aceitar que amanhã o réu pode ser você — por um texto, um comentário, um meme, uma ironia. É acreditar que, por estar do lado “certo” hoje, estará seguro amanhã. Mas não estará.

A liberdade de expressão não é um prêmio concedido aos simpáticos, mas um direito que protege justamente os incômodos. Como ensinou John Stuart Mill, “o preço da liberdade é permitir a existência de opiniões que consideramos erradas, ofensivas ou perigosas”. Defender a liberdade de Léo Lins não é endossar suas piadas — é endossar a liberdade como princípio. É garantir que o Estado não tenha o poder de decidir o que é admissível dizer, pois isso seria a negação da própria democracia.

A verdadeira democracia não é aquela em que todos se sentem confortáveis. É aquela em que todos, inclusive os incômodos, têm o direito de falar – e o humor, por definição, é incômodo. Ele cutuca, provoca, exagera e expõem, e é precisamente por isso que deve ser protegido. Porque, onde o riso é vigiado, a liberdade já foi presa.

* João Loyola é Associado do IFL-BH.

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