A dança dos togados

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Sangue frio, elemento psicológico indispensável a todos aqueles que planejem incorrer em violações graves e pretendam garantir a própria impunidade. Carece uma enorme dose de autocontrole para resistir à descarga de adrenalina por ocasião da prática de condutas muito nocivas a outrem e, em seguida, para disfarçar e apagar as evidências dos malfeitos. Caso contrário, caem as máscaras e são desnudadas as faces da vilania.

Na semana passada, a fala curta e discreta do secretário de estado dos EUA, Marco Rubio, foi suficiente para desencadear um alvoroço de reatividade em nosso estamento togado e em todo o seu entorno. Após ouvirem a declaração da autoridade estrangeira sobre uma possível decretação de sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, com amparo na Lei Magnitsky, muitos dos nossos supremos usaram o manto do anonimato para levar à grande mídia seu veemente repúdio à postura de Rubio, por eles classificada como “ataque à soberania brasileira”, “violência absurda” e demais expressões denegritórias. A OAB correu para manifestar sua adesão aos togados, em nota por mim contestada neste espaço, e, por óbvio, nosso primeiro acusador, ex-sócio do ministro Gilmar Mendes e ora autor de medidas judiciais majoritariamente “alinhadas” aos discursos de Moraes, não tardou em se unir ao coro dos descontentes.

Acolhendo notícia-crime do deputado petista Lindbergh Farias, o PGR pediu ao STF a instauração de inquérito contra o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro para apuração da suposta prática dos crimes de coação no curso do processo e tentativa de abolição violenta do Estado. A apresentação da peça pelo Dr. Gonet foi motivada por postagens do parlamentar em suas redes e por sua atuação, em eventos nos EUA, durante os quais vem demonstrando reiterados abusos judiciais praticados entre nós e pleiteando, no exterior, a determinação das sanções cabíveis contra togados e demais figurões comprovadamente envolvidos em atentados a direitos humanos. Como já de hábito em nossa republiqueta nada institucional, o PGR usou o cargo para militar em causa própria.

Gonet não hesitou em sustentar que a Procuradoria por ele representada havia sido incluída, por Eduardo, no pacote de eventuais sanções dos EUA contra autoridades brasileiras. Constando o próprio Gonet no rol de possíveis “alvos” das medidas pretensamente impulsionadas pelo investigado, o primeiro acusador estaria impedido de atuar no caso, por força da interpretação literal do artigo 43, VII da Lei Orgânica do Ministério Público.

A peça da PGR tomou por base um compilado de manifestações do congressista investigado, todas amparadas pela imunidade parlamentar, mas que, a despeito do caráter absoluto do artigo 53 da nossa Constituição, têm sido indevidamente empregadas para a criminalização da própria atividade política. Nessa toada, Gonet chegou ao cúmulo de referir-se às ideias e opiniões de Eduardo como frutos de uma suposta “motivação retaliatória”, como se o deputado, sujeito à caneta da PGR e à jurisdição exclusiva do Supremo, fosse materialmente capaz de “retaliar” autoridades que exercem poder sobre ele!

Beirando a insanidade ou o escárnio, Gonet se referiu às posturas de Eduardo como causas diretas de eventuais punições decretadas pelo governo americano, que o procurador classificou, de antemão, como “ameaças”. Ora, sendo a ameaça, por definição jurídica, a imposição de um mal injusto e grave, sua configuração exigiria que Eduardo figurasse como o efetivo “ameaçador” e que as tais “autoridades ameaçadas” se achassem na iminência de sofrerem as consequências de um ato ilícito. Porém, nem Eduardo dispõe de poderes para infligir os “males” invocados pela PGR nem eventuais sanções poderão configurar ilicitudes, pois, se impostas, elas o serão com base na estrita legalidade vigente nos EUA.

Aliás, as punições tão temidas, ainda que decretadas, não seriam passíveis de ameaçar o “funcionamento pleno dos poderes constitucionais”, como alegado por Gonet. Afinal, nem o indeferimento de vistos de entrada nos EUA nem o bloqueio de ativos financeiros junto a instituições americanas impediriam togados brasileiros de seguir na condução de processos em seu próprio país. Portanto, eis a mais nova aventura jurídica contra parlamentar oposicionista e, nesse caso específico, contra filho do ex-presidente Bolsonaro, que tem sido o alvo preferencial das perseguições políticas promovidas pela elite do nosso aparato investigativo-punitivo.

Em sua incontinência verbal reverberada na grande mídia, supremos anônimos ainda fizeram questão de manifestar sua certeza apriorística sobre a punição a Eduardo, menos de um dia após o protocolo da petição de Gonet. Autoconvertidos em “fontes” jornalísticas de suas próprias decisões futuras, tornaram a prejulgar e a violar seu dever de isenção, em conduta incompatível com o decoro de seus cargos.

Na obra Zadig ou o Destino, o escritor francês Voltaire nos brindou com um capítulo deliciosamente satírico, que inspirou estas linhas. Em um distante reino oriental, o soberano se via atormentado pela burla de sucessivos tesoureiros que se apropriavam de suas riquezas e pela dificuldade na seleção de um funcionário honesto. Confidenciando seu problema ao sábio Zadig, foi aconselhado por este a fazer com que os postulantes dançassem em vestes de seda pura; não sem antes atravessarem, um por um, uma câmara escura, repleta de tesouros reais. Apresentados os candidatos diante do soberano e recebida a inusitada ordem de bailar, “nunca se dançou mais pesadamente e com menos graça, de cabeça baixa, rins encurvados e mãos coladas ao lado do corpo”. O único dançarino leve, que havia resistido à tentação do surrupio, foi alçado à condição de alto dignitário, e os demais, punidos com rigor.

Tesoureiros larápios não servem para a função da mesma forma como togados abusadores da Constituição e das leis não servem para a atividade judicante. Assim como os personagens de Voltaire, nossos togados dançaram, e o fizeram de forma espontânea, antes mesmo do anúncio, pelo secretário de estado Marco Rúbio, sobre as novas restrições ao ingresso, nos EUA, de autoridades censoras de americanos. A mera alusão, no hemisfério norte, à possibilidade de aplicação da Lei Magnitsky levou nossa cúpula judiciária a articular uma autêntica “caçada” a Eduardo Bolsonaro, a prenunciar o desfecho do caso e até a estudar a antecipação do julgamento sobre a responsabilização de plataformas digitais por conteúdos, o que pode vir a oficializar a censura judicial entre nós. Togados produziram provas contra si mesmos e corroboraram a veracidade de todas as acusações contra eles formuladas, tanto no Brasil quanto junto ao governo americano e a entidades internacionais de defesa dos direitos humanos. Movidos por impulsos irracionais, pela confiança na impunidade ou por ambos, esqueceram o sangue frio e deixaram à mostra todos os vestígios de seus desmandos.

No horizonte de curto prazo, é possível que os togados, embora tenham dançado no sentido voltairiano, não venham a “dançar” na acepção metafórica do verbo. Talvez uma eventual implementação de sanções financeiras ao amparo da Magnitsky consiga precipitar a queda dos figurões e pressionar nossas estruturas políticas rumo a um tão premente rearranjo de forças. Coisas futuras e ansiadas.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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