O Estado mexicano como “ogro filantrópico”, segundo Octavio Paz (1914-1998) (primeira parte)
“Como toda a América Espanhola, o México estava condenado a ser livre e a ser moderno, mas a sua tradição tinha negado sempre a liberdade e a modernidade” (Octavio Paz, El Ogro Filantrópico, p. 62).
O México representa, junto com a Guatemala, o Peru e a Bolívia, um dos quatro núcleos que preservaram, nas Américas, a secular tradição do “despotismo hidráulico” ensejado pelos grandes Impérios Inca e Asteca. Antes da descoberta do Novo Mundo por Cristóvão Colombo (1451-1506) na segunda metade do século XV, já tinham florescido, nestas terras, fortes Impérios que desenvolveram modalidades de “poder total”, ao ensejo da dominação inconteste de elites guerreiras fortemente unificadas ao redor de Soberanos inapeláveis. É uma longa tradição secular cujas origens se perdem no nevoeiro dos tempos, se levarmos em consideração que a primeira ocupação das Américas por homens provenientes da Ásia, através do Estreito de Behring, ocorreu há cinquenta mil anos atrás, aproximadamente [1]. Tradição secular que, no México e na Guatemala, percorreu etapas identificadas com civilizações que foram sendo vencidas por outras novas manifestações político-culturais: Olmecas, Maias e Astecas. Na América do Sul ocorreu fenômeno semelhante: três grandes civilizações agro diretoriais foram aparecendo antes da chegada dos Espanhóis: Tihuanacos, Paracas e Incas. Isso para não mencionar grupos menores, sediados à sombra dos dominadores principais, como era o caso dos Chibchas, no norte do Continente Sul-Americano. A marca de todas essas organizações era o centralismo despótico, fato que levou a um estudioso da talha de Karl Wittfogel (1896-1888) a arrolá-las como manifestações do “patrimonialismo hidráulico”, alicerçado na prática do “poder total” e condicionado pela necessidade de controlar a água em regiões caracterizadas pelo predomínio de chuvas irregulares [2].
A conquista espanhola, feita a partir do pressuposto da “guerra santa” contra o infiel, terminaria reforçando essa tendência despótica, em decorrência da política de “terra arrasada” que os ibéricos puseram em funcionamento, à maneira como os conquistadores árabes ocuparam o Sind, no sul da Ásia, entre 634 e 644, durante o reinado do segundo Califa ou sucessor do Profeta [3]. Os espanhóis, como os portugueses, aprenderam, aliás, os procedimentos de “poder total” com os muçulmanos, que dominaram a Península Ibérica durante oito séculos, a partir da invasão desta pelos generais do Califa de Damasco, Al Walid, em 710. Os mouros foram vencidos, como sabemos, em 1490. Mas os procedimentos agro diretoriais terminaram sendo assimilados pelos cristãos vencedores, dando ensejo ao que Wittfogel denomina de “absolutismo ibérico pós-feudal” [4].
A pesquisa desenvolvida por Octavio Paz acerca da formação social da Nova Espanha (e das modalidades assumidas pelo Estado mexicano nos séculos posteriores) destaca os traços patrimoniais daquele, tendo sido muito bem chamado de “ogro filantrópico”, Ogro que, como acabo de frisar, alimentou-se de uma dupla tradição despótica: a pré-colombiana e a ibérica. Seguirei, nesta exposição, de forma prioritária, a obra do Prêmio Nobel de Literatura que leva o mesmo título da caracterização que acabo de mencionar: El ogro filantrópico. Percorrerei duas etapas: I – O papel do escritor, segundo Octavio Paz; II – O Estado patrimonial mexicano como “Ogro Filantrópico”.
I – O papel do escritor, segundo Octavio Paz.
Para o Nobel mexicano, o primeiro conceito a ser discutido, quando se trata de identificar a missão do escritor, é o de compromisso ou engajamento. Em que consiste ser um escritor comprometido? Certamente, essa expressão corre o risco de ser genérica demais, pois, afinal de contas, todos estamos situados e, portanto, comprometidos. O que Paz desejava evitar era que se entendesse, sob essa expressão, a ideia de escritor militante, que abre mão do senso crítico para se entregar nas mãos de uma seita, religião ou partido. A respeito, escreve:
“Acho que o termo compromisso, de origem sartriana, é equívoco. Não sabemos muito bem o que quer dizer um compromisso. Se entendermos por compromisso a relação de um escritor com a sua realidade e com a sociedade em que vive, todos somos escritores comprometidos. O que me parece inaceitável é que um escritor ou um intelectual se submeta a um partido ou a uma igreja. No século XX temos visto muitos e grandes escritores cederem diante das exigências dos partidos e das igrejas. Penso em Paul Claudel (1888-1955) e nas suas odes a Franco e Pétain; penso nos hinos de Louis Aragon (1897-1982) a Neruda e Stalin. O nosso século, dizia o poeta francês Benjamin Péret (1899-1959), foi o da ‘desonra dos poetas’. Também foi o da sua honra: do poeta russo Osip Mandelstam (1891-1938) contra Stalin, que lhe custou a vida, ou o sacrifício de Federico García Lorca (1898-1936)…” [5].
Dois itens serão desenvolvidos nesta parte: em primeiro lugar, um breve escorço biográfico acerca do nosso autor; em segundo lugar, a caracterização de como ele entende a função do escritor na sociedade.
1 – Breve escorço biográfico de Octavio Paz.
O nosso pensador nasceu na Cidade do México, em 1914, e ali faleceu em 1998. Duas figuras familiares exerceram forte influência: o seu avô paterno, Irineo Paz, escritor e intelectual, que participou ativamente da revolução positivista ensejada pelo general Porfírio Díaz (1830-1915), na segunda metade do século XIX; de outro lado, seu pai, Octavio Irineo Paz, que foi militante da revolução liberal com que Emiliano Zapata (1879-1919) tentou transformar as velhas estruturas mexicanas, nas primeiras décadas do século XX. O nosso jovem experimentou de perto, portanto, os dois grandes movimentos revolucionários que os mexicanos sofreram no final do século XIX e no início do século seguinte: o positivista e o liberal.
Morto o líder revolucionário Emiliano Zapata, a família de Octavio Irineo Paz [6] teve de se exilar nos Estados Unidos, onde o nosso autor fez o aprendizado das primeiras letras. Já estava presente, na vida do escritor, a vocação marginal do intelectual latino-americano, fadado a não se arrolar incondicionalmente nas fileiras de nenhum revolucionário, a fim de manter viva a sua capacidade crítica. De outro lado, restava uma lição para o jovem Octavio: uma revolução no comando do país não resolve nada, se não ancorar numa mudança de crenças e valores. Vocação de escritor claramente definida, já com 17 anos o nosso autor fundou a sua primeira revista literária. Tendo realizado os seus estudos superiores na Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autónoma do México, o nosso escritor, no entanto, não exerceu a advocacia, tendo preferido se dedicar à docência endereçada aos jovens pobres.
Poeta de grande criatividade, Octavio Paz efetivou uma significativa renovação da poesia mexicana, ainda atrelada aos velhos parâmetros parnasianos. Entre 1943 e 1945 cursou estudos literários na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, tendo imediatamente ingressado no serviço diplomático do seu país, nele permanecendo até 1968, quando, após a violenta repressão do governo do México contra os estudantes, o nosso autor demitiu-se sumariamente do corpo diplomático. Entre 1946 e 1962, com motivo da sua permanência em Paris, como diplomata, o nosso autor conheceu André Breton (1896-1966), tendo recebido dele forte influência, que se manifestou basicamente na mudança de parâmetros do estilo literário do jovem escritor, adotando a concepção surrealista da poesia como extensão da vida.
Octavio Paz exerceu as funções diplomáticas como representante do seu país nos Estados Unidos, França, Suíça, Índia e Japão, no período compreendido entre 1943 e 1968. Ativista político – como não podia deixar de ser o filho e neto de intelectuais engajados – e simpatizante comunista, participou em 1937, durante a Guerra Civil Espanhola, do Congresso de Escritores Antifascistas realizado em Valencia. No entanto, a sua simpatia pelo comunismo logo recebeu um duro golpe, quando da assinatura do Pacto entre Hitler e Stalin, em 1939, que facilitou, junto com a excessiva transigência dos líderes franceses e ingleses, a aventura bélica alemã, que deu início à Segunda Guerra Mundial. Nesse ano, Paz rompeu decididamente com o comunismo, fato que não lhe seria perdoado pelos intelectuais marxistas.
O nosso autor casou, em primeiras núpcias, em 1937, com a dramaturga mexicana Elena Garro, com quem teve uma filha, Helena, conhecida escritora. O seu segundo casamento foi com a francesa Marie José Paz, que passou a cuidar da Fundação Octavio Paz, após o falecimento do escritor. Octavio Paz fundou e colaborou efetivamente em várias revistas mexicanas que exerceram grande influência no mundo hispano-americano, tais como: Plural, Vuelta, Taller e El Hijo Pródigo. A sua obra ensaística, muito fecunda e influenciada por José Ortega y Gasset (1883-1955), foi inicialmente publicada nessas revistas.
Octavio Paz foi o que se pode chamar de um “humanista”. A sua obra ensaística é oceânica, dada a quantidade de temas abordados e a profundidade com que consegue desenvolver o seu pensamento. Mencionemos os principais ensaios político-literários: El laberinto de la soledad (1950), El arco y la lira (1956), Las peras del olmo (1957), Los signos en rotación (1965), Puertas del campo, (1966), Corriente alterna (1967), Claude Lévi-Strauss o el nuevo festín de Esopo (1967), Marcel Duchamp o el Castillo de la pureza (1968), Conjunciones y disyunciones (1969), México: la última década (1969), Postdata (1969), El mono gramático (1971), Las cosas en su sitio: sobre la literatura española en el siglo XX (1971, com a colaboração de Juan Marechal), Los signos de rotación y otros ensayos (1971), Traducción, literatura y literalidad (1971), Solo a dos voces (1973, com a colaboração de Julián Ríos), El signo y el garabato (1973), Los hijos del limo (1974), Teatro de signos (1974), La búsqueda del comienzo (1974), Javier Villaurrutia en persona y en obra (1978), El ogro filantrópico: historia y política (1979), In-Mediaciones (1979), Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe (1982), Tiempo Nublado (1983), Sombras y obras (1983), Hombres en su siglo (1984), Pasión crítica (1985), México en la obra de Octavio Paz (1987, com a colaboração de Mário Schneider, como editor), Poesía, mito, revolución (1989, Prêmio Alexis de Tocqueville), Pequeña crónica de grandes días (1990), Convergencias (1991), Al paso (1992), La llama doble (1992), Itinerario (1994) e Vislumbres de la India (1995). As Obras Completas de Octavio Paz estão sendo publicadas pela Editora Fondo de Cultura Económica do México, sendo que até o presente já foram postos em circulação os primeiros 12 volumes (de um total de 14), entre 1994 e 1999.
No ano de 1990 o nosso autor foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, “pela sua obra apaixonada e com amplos horizontes, caracterizada por uma inteligência sensual dotada de integridade humanística”, como rezava o lacônico comunicado da Comissão da Academia de Ciências da Suécia. Octavio Paz recebeu a influência de Sigmund Freud (1856-1939), cujo pensamento projetou numa análise sociológica que buscava a “cura das civilizações”, pela via da identificação dos caminhos históricos seguidos pelos povos. Também recebeu a influência do pensamento de Karl Marx (1818-1883), que polarizou na identificação das contradições latentes nas sociedades capitalistas. Foi influenciado, outrossim, por estudiosos das culturas como Roger Caillois (1913-1978), Georges Bataille (1897-1962) e Marcel Mauss (1872-1950). Conheceu os filósofos alemães através da leitura das obras de Ortega y Gasset (1883-1955). Recebeu a influência de historiadores como Wilhelm Dilthey (1833-1911) e Georg Simmel (1858-1918). A respeito de todas essas heranças culturais, escreveu o ensaísta mexicano:
“O estudo sobre o monoteísmo judaico impressionou-me muito. Falei antes em moral; agora devo adicionar outra palavra: terapêutica. A crítica moral é autorrevelação daquilo que escondemos e, como ensinava Freud, cura…. relativa. Nesse sentido, o meu livro [El laberinto de la soledad] quis ser um ensaio de crítica moral: descrição de uma realidade oculta e que faz mal. A palavra crítica, na época atual, é inseparável do marxismo e eu sofri a influência do marxismo. Por esses anos li os ensaios de Caillois e, um pouco mais tarde, os de Bataille e do mestre de ambos, Mauss, sobre a festa, o sacrifício, a doação, o tempo sagrado e o tempo profano. Encontrei imediatamente certas analogias entre aquelas descrições e as minhas experiências cotidianas como mexicano. Também ensinaram-me muito os filósofos alemães que uns poucos anos antes tinha dado a conhecer na nossa língua Ortega y Gasset: a fenomenologia, a filosofia da cultura, e a obra de historiadores e ensaístas como Dilthey e Simmel [7].
2 – A Missão do Escritor no Mundo Atual.
O trabalho do escritor era pensado por Octavio Paz na trilha da conquista da liberdade, que constitui, fundamentalmente, uma escolha que brota do fundo do espírito humano e que se torna realidade concreta no exercício da própria identidade, na prática da memória histórica. Lembrando Karl Jaspers (1883-1969), poderíamos afirmar: “se saíssemos da história, tombaríamos no nada” [8]. Não ter consciência da própria história é não existir. Mas, para encontrar o caminho da própria história, a condição sine qua non é a opção pela liberdade. Verdadeira profissão de fé liberal, que tornou Octavio Paz um escritor definitivamente incômodo para os dogmáticos de todos os matizes, notadamente para os marxistas. Eis as belas palavras dessa profissão de fé:
“A liberdade não é um conceito nem uma crença. A liberdade não se define: se exerce. É uma aposta. A prova da liberdade não é filosófica, mas existencial: há liberdade toda vez que encontramos um homem livre, toda vez que o homem atreve-se a dizer não ao poder. Não nascemos livres: a liberdade é uma conquista e, ainda mais: uma invenção. Lembrarei duas linhas de Ifigênia cruel, o poema dramático do esquecido e negado Alonzo Reyes (1889-1959). Arrebatada por Artemisa e transportada a Táuride, onde oficia ritos sangrentos como sacerdotisa da deusa, Ifigênia perde a memória e torna-se um ser sem história. Um dia, ao se encontrar com o seu irmão Orestes, lembra; ao lembrar, recupera a sua história, o seu destino. Mas, justamente, nesse momento rebela-se e nega-se a seguir o seu irmão, que lhe impõe a vontade do sangue. Ifigênia escolhe-se a si mesma, inventa a sua liberdade, e diz: leva nas tuas mãos, colhidas pelo teu gênio / estas duas conchas ocas de palavras: não quero” [9].
O exercício da liberdade traduz-se, no terreno da cultura, na posição crítica do escritor em face dos sistemas políticos. O nosso pensador não abria mão de ter uma posição de grande independência em face dos atores da política internacional, embora reconhecesse as qualidades do sistema americano. No entanto, não deixava de assinalar a perda de valores ensejada, nessa sociedade, pela monetarização da vida humana. Os princípios da vida e da morte estão presentes em todas as sociedades e, nos momentos de crise, essa tensão manifesta-se numa circunstância de contradição. Eis as suas palavras a respeito:
“Todas as sociedades levam, nas suas entranhas, um princípio de vida que é, também, um princípio de morte. Esse princípio é, necessariamente, dual e, nos momentos de crise, assume a forma de uma contradição. Trata-se de questões de vida ou morte como foram para as polis gregas as guerras e as rivalidades entre as cidades, ou como foi, para os imperadores romanos dos séculos III e IV, encontrar uma política em face do cristianismo e as seitas gnósticas. A contradição dos Estados Unidos – que lhes deu a vida e pode lhes causar a morte – resume-se num par de frases: ao mesmo tempo são uma democracia plutocrática e uma república imperial. A primeira contradição afeta às duas noções que foram o eixo do pensamento político dos pais fundadores. A plutocracia provoca e agrava a desigualdade; por sua vez, a desigualdade converte em quimeras as liberdades políticas e os direitos individuais. Nesse ponto, a crítica de Marx acertou no alvo. Certamente, a plutocracia americana, diferentemente da romana, é criadora de abundância e, assim, pode diminuir e aliviar as injustas diferenças entre os indivíduos e as classes. Mas fez isso transladando as desigualdades mais escandalosas do âmbito nacional ao internacional: os países subdesenvolvidos. Alguns pensam que essa desigualdade internacional também poderia, se bem não ser eliminada totalmente, pelo menos ser reduzida ao mínimo. A história recente desmente essa hipótese. Mas, inclusive se se revelasse certa, esquece-se algo essencial: o dinheiro não só oprime como também corrompe. E corrompe igualmente a pobres e a ricos. Sobre isso, os moralistas da Antiguidade, especialmente os estóicos e os epicuristas, sabiam mais do que nós. A democracia norte-americana foi corrompida pelo dinheiro. A segunda contradição, estreitamente vinculada à primeira, desenvolve-se entre o que são interiormente os Estados Unidos, e o que são na sua ação externa: um império. Liberdade e opressão são as caras opostas e complementares do seu ser nacional (…). As necessidades do império criam uma burocracia especializada na espionagem e outros métodos de luta internacional; por sua vez, essa burocracia ameaça a democracia nacional” [10].
A crítica que Octavio Paz dirigia à política internacional praticada pelos Estados Unidos era endereçada, também, às demais potências. O escritor mexicano achava que a Humanidade vivia, nesse final de século XX, uma etapa sombria, justamente porque se perdeu de vista a perspectiva do homem, num contexto de cinismo e falsidade. Eis a forma, igualmente crítica, em que o Nobel mexicano enquadrava as demais potências, dando destaque aos governos autoritários latino-americanos e chegando à conclusão da inviabilidade da democracia socialista:
“A quartelada do exército chileno e a morte violenta de Salvador Allende (1908-1973) foram acontecimentos que, mais uma vez, tenderam sombras sobre as nossas terras. Ontem, apenas, Brasil, Bolívia, Uruguai; agora, Chile. O ar do continente torna-se irrespirável. Sombras sobre sombras, sangue sobre sangue, cadáveres sobre cadáveres: a América Latina converte-se num enorme e bárbaro monumento feito das ruínas das ideias e dos ossos das vítimas. Espetáculo grotesco e feroz: no cume do monumento, um tribunal de pigmeus uniformizados e condecorados gesticula, delibera, excomunga e fuzila os incrédulos. Enquanto Nixon lava as mãos sujas de Watergate na bacia ensanguentada que lhe oferece Kissinger, enquanto Brejnev inaugura novos hospitais psiquiátricos para dissidentes incuráveis, enquanto Chou-en-Lai faz agrados a Pompidou e alerta aos europeus ocidentais sobre o perigo russo, os generaizinhos latino-americanos fazem mais uma das suas trapaças. A paz que constroem as superpotências edifica-se sobre a humilhação dos povos, o sacrifício dos dissidentes e os restos das democracias destruídas: Grécia, Tchecoslováquia, Uruguai, Chile. Em Praga os tanques russos e, em Santiago, os generais treinados e armados pelo Pentágono, uns em nome do marxismo e outros à sombra do anti-marxismo, conseguiram completar a mesma demonstração: a democracia e o socialismo são incompatíveis” [11].
O escritor mexicano centralizou a sua crítica à desumanização da política no século XX ao redor do Estado, dando ênfase ao que aconteceu no seu país de origem. Essa concepção aparecerá no segundo item que desenvolverei, em relação à apreciação feita por Paz acerca do patrimonialismo mexicano. De momento, valha destacar um aspecto que será definitivo na análise crítica do nosso autor. No México – como nos restantes países da América Latina também – a crítica às instituições desumanas foi precedida pelo alerta dos poetas e dos artistas em geral, tornando realidade o que Martin Heidegger (1889-1976) afirmava acerca da fundação da linguagem na poiesis [12]. A respeito desse fenômeno, o escritor mexicano frisava:
“Certamente, gostaria de dizer, aqui, algo que se esquece com freqüência: a crítica da sociedade contemporânea – uma crítica que abarca tanto as suas formas de vida, quanto as suas crenças, as suas paixões tanto quanto a sua linguagem – foi primordialmente obra dos poetas, escritores e artistas mexicanos, mais do que dos teóricos da política revolucionária e dos ideólogos marxistas. Inclusive, pode-se dizer que contrasta a debilidade teórica dos ideólogos radicais (sem excluir muitos dirigentes estudantis) com o brilho, a paixão e a verdade de algumas das obras da literatura, bem como de algumas manifestações da arte contemporânea do México. Naturalmente, a crítica dos escritores e dos artistas não é ideológica: é uma crítica que penetra em estratos da consciência mais profundos que a simples ideologia” [13].
Condição necessária para o escritor preservar a liberdade de espírito em face das estruturas políticas era, no sentir de Octavio Paz, a atitude que ele denominava de marginalidade no sentido da capacidade de o homem de letras se colocar à parte da busca do poder e dos holofotes. Tratar-se-ia, em outras palavras, do restabelecimento daquilo que Max Weber (1864-1920) denominava de “ética dos intelectuais” [14], contraposta àquela dos políticos, que buscam unicamente os resultados da ação, enquanto os primeiros deveriam se pautar pela fidelidade aos princípios. Exemplo dessa ética intelectual foi dado, no sentir de Paz, pelo grande pensador e publicista mexicano Daniel Cosío Villegas (1898-1976) a quem Octavio Paz rende calorosa homenagem nos seus escritos. A respeito desse ideal dos intelectuais, escrevia:
“Os comentários jornalísticos possuem um duplo valor, além de serem documentos de uma época que, em ocasiões, como em 1968, foi dramática: a claridade e a coragem. Claridade no sentido físico, intelectual e moral: capacidade para distinguir entre o justo e o injusto o útil e o prejudicial, o bom e o ruim. Coragem: os seus outros nomes são integridade de caráter, correspondência entre as ideias e os atos. Por fatalidade de temperamento e por opção moral Cosío Villegas escolheu a solidão – não o isolamento. A sua foi solidão no centro da vida pública. Muito cedo percebeu que o destino dos escritores, tanto no México quanto no resto do mundo, é a marginalidade e ele aceitou com decisão ser um homem marginal. Por isso, pelo fato de não ter temido ficar sozinho, é agora uma figura central. Em Plural [revista mexicana de história e crítica das ideias] apareceram os seus últimos artigos. Nós procuraremos permanecer fiéis à sua memória sendo fiéis ao seu exemplo: defenderemos sempre a liberdade e a independência dos escritores. A lucidez e a ironia – as duas qualidades de sua prosa e, também, de sua atividade vital – não o abandonaram nunca. Foi leal aos demais porque foi leal consigo mesmo. Entre os seus mestres e colegas de geração não todos tiveram a sua integridade e a sua rectidão. Algum deles, no final da vida, abraçou o obscurantismo religioso e, em política, a violência fascista; outros contagiaram-se com a lepra stalinista, doença incurável; outros praticaram a arte do sorriso agradável e do compromisso com o poder arbitrário; os restantes, trancaram-se nos seus gabinetes de estúdio e nos seus laboratórios… Cosío Villegas atravessou sorrindo o fúnebre baile de fantasias que é a nossa vida pública e saiu limpo, indemne. Cosío Villegas foi um liberal de 1867 que teria lido Marx e Keynes, Freud e Bertrand Russell. Foi inteligente e íntegro, irônico e incorruptível. Como a maior parte dos intelectuais do nosso século, perdeu as ilusões; como muito poucos dentre eles, guardou sempre fidelidade às suas convicções” [15].
Notas de Rodapé
[1] LAVIANA Cuetos, María Luisa. La América española, 1492-1898. Madrid: Temas de Hoy, 1996, p. 6.
[2] WITTFOGEL , Karl. Le Despotisme Oriental. (Tradução francesa de M. Puteau). Paris: Minuit, 1977.
[3] Cf. NAIPAUL, V. S. Entre os fiéis – Irã, Paquistão, Malásia, Indonésia, 1981. (Tradução brasileira de C. Knipel Moreira). 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. A propósito da relação entre colonizador e colonizado no mundo muçulmano, este autor a caracteriza da seguinte forma: “Substituir isso tudo. O Islã significava a raiva – raiva na fé, raiva política: uma podia ser como a outra” (p. 484).
[4] Cf. WITTFOGEL, Ob. Cit. NAIPAUL, V. S. The Loss of El Dorado. London: Picador, 2001.
[5] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, Barcelona: Seix Barral, 1983, p. 34.
[6] Octavio Irineo Paz era casado com a andaluza Josefina Lozano, de quem o filho Octavio muito provavelmente herdou essa sensual apreensão da realidade que caracterizava ao Prêmio Nobel mexicano.
[7] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filantrópico, ob. cit., p. 20.
[8] JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. (Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota). 17ª edição, São Paulo: Cultrix, 2006, p. 34.
[9] PAZ, Octavio. “Propósito”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., pp. 13-14.
[10] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., pp. 67-68.
[11] PAZ, Octavio. “Eros Job”, in: El ogro filantrópico, ob. Cit., p. 271.
[12] Cf. HEIDEGGER, Martin. “Sobre o Humanismo – Carta a Jean Beauffret”. In: Conferências e Escritos Filosóficos. (Tradução e notas de Ernildo Stein). 1ª Edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 348.
*Artigo publicado originalmente no site do autor.