A língua como arma: por que o argumento russo não se sustenta

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Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, seus apologistas têm buscado justificativas para tal agressão. Uma delas é a de que a Ucrânia estaria perseguindo minorias russas no leste e no sul. Atribui-se isso à influência dos EUA, que provocaram os ucranianos a se levantar contra um povo irmão. Tais alegações resistem a uma análise racional e histórica?

Argumenta-se que os povos eslavos surgiram do Rus de Kyiv (Kiev é a escrita russa; Kyiv é como os ucranianos pronunciam). A narrativa, embora correta, está distorcida. Primeiramente, se isso dá a alguém algum direito, seria a Kyiv ocupar a Rússia, e não o contrário. Em segundo lugar, só no século XX, houve três grandes mudanças no mapa da Europa. Se cada nação reivindicar fronteiras passadas, a estabilidade internacional se tornará inviável.

O território que corresponde à moderna Ucrânia foi incorporado pelo tsarado de Moscou em 1654. O líder dos cossacos, Bohdan Hmelnitsky, assinou um acordo de proteção com Aleixo I da Rússia. Foi o Tratado de Pereiaslav, que deveria servir para Moscou ajudar os cossacos a não ser conquistados pela Comunidade Polaco-Lituana. Na prática, significou o início de um estado vassalo ao tsar, o Hetmanato Cossaco. A união, com o passar do tempo, passou a requerer mais centralização administrativa em Moscou.

Em 1720, houve a primeira grande tentativa de apagar traços de “ucranidade” pela Rússia. O tsar Pedro, “o Grande”, proibiu a impressão de livros religiosos na língua da “Pequena Rússia”, como chamavam a Ucrânia. A impressão de livros também foi proibida por decisão do Santíssimo Sínodo (sede da Igreja Ortodoxa Russa) em 1766. Igrejas e bibliotecas só poderiam receber obras impressas em Moscou.

Também chamada de “a Grande”, Catarina II igualmente perseguiu a identidade ucraniana. Sob seu governo, a russificação se tornou política sistemática. Ela aboliu a pouca autonomia política do Hetmanato Cossaco. Em 1786, tornou o russo a única língua permitida na Universidade de Kyiv-Mohyla e nas missas de todo o império russo. O epítome da repressão à língua ucraniana se deu na segunda metade do século XIX. A Circular Valuiev, de 1863, proibiu a impressão de quaisquer materiais na língua ucraniana, principalmente educativos e religiosos. De tão traumática, a data em que a circular foi emitida se tornou, na década de 1990, feriado nacional: o Dia da Literatura e da Língua Ucraniana.

Para burlar o empecilho da impressão em ucraniano, surgiu um grande mercado de importação de livros sob encomenda – prática também reprimida em 1876, com a diretiva de Ems, que se estendeu a apresentações teatrais e leituras públicas. A repressão da cultura ucraniana não se limitou à língua, mas a qualquer traço de autonomia em relação à Rússia. No período soviético, proibiu-se tocar bandura, instrumento musical tradicional similar à cítara ou ao violão. Por ser símbolo da identidade cultural ucraniana e não popular na Rússia, tornou-se um perigoso símbolo de originalidade. Banduristas foram perseguidos e, em alguns casos, executados pelo regime.

Qualquer elemento da cultura cossaca que mostrasse os ucranianos como uma nação separada da russa deveria ser proibido. Tanto os tsares quanto os comunistas não mediram esforços para retratar os ucranianos como “pequenos russos”. A propaganda soviética os representava como caipiras iletrados. Fora a questão cultural, ainda houve migração forçada nos dois sentidos. Ucranianos foram espalhados por toda a Rússia para que seus descendentes sofressem assimilação. Por outro lado, russos foram deslocados para o sudeste da Ucrânia, muitos deles degredados.

Embora indesejados na Rússia, presos políticos seriam úteis para enxertar a cultura russa no país da bandura. Portanto, a presença de tantos russófonos na Ucrânia não decorre de uma comunidade nativa, mas de um processo deliberado de colonização cultural. Em vez de ser usado como justificativa para a invasão, este fato deve servir como indício de que os russos são, de fato, imperialistas. A guerra, portanto, transcende as dimensões geoestratégicas ou etnopolíticas, mas é, sobretudo, parte do “choque de civilizações” que Samuel Huntington anteviu. Os defensores do “mundo russo” não puderam aceitar que a Ucrânia se identificasse com o mundo ocidental.

Ressalte-se que, mesmo que uma região ucraniana tivesse predominância de russos étnicos, não significa que quisessem ser governados por Moscou. Sendo eles descendentes de degredados, é razoável imaginar que tenham ouvido histórias terríveis de como era a vida na Rússia. Além disso, mesmo quem ainda nutria sentimentos russófilos devido a laços familiares ou culturais há de ter repensado após ter sua cidade arrasada pela artilharia invasora.

O Holodomor de Stálin, nos anos 1930, bem como a Circular Valuiev e a perseguição à bandura, ocorreram muito antes de a OTAN ser cogitada. Quando Catarina II impôs restrições à língua ucraniana, os EUA ainda nem haviam aprovado sua Constituição. A proibição de impressão de livros por Pedro I foi decretada quando só havia 13 colônias britânicas: George Washington sequer era nascido. Depois disso, apologistas da Rússia, movidos por seu antiamericanismo, retratam a guerra como se se tratasse de um conflito fratricida provocado exclusivamente pela influência dos Estados Unidos. Torcem por Putin, como se ele estivesse mostrando aos americanos que eles não são os únicos capazes de projetar poder.

O problema dessa narrativa é ela ignorar que o imperialismo russo é muito mais antigo que a própria existência dos EUA. Parte-se da falsa premissa de que o imperialismo seria uma invenção ocidental e que o Kremlin apenas reagiria a ele – como se todo o território que a Rússia possui fosse naturalmente ocupado por eslavos ortodoxos, e não fruto do colonialismo. O que leva a outro argumento que busca explicar a invasão de 2022: a necessidade de Moscou de controlar a Ucrânia por ser seu “quintal estratégico”. Este será tema de artigo vindouro.

*Carlos Marcelo Velloso é coordenador do Instituto Atlantos.

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