A banalização do mal

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Hannah Arendt, ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann em 1961, identificou algo perturbador: o mal, quando revestido de aparência de legalidade e repetido como rotina administrativa, acaba por se banalizar. Eichmann não se enquadrava no arquétipo do “monstro”, mas se portava como um funcionário zeloso, aparentemente incapaz de compreender a enormidade moral dos atos que praticava. Como ele, houve muitos. Uma “anestesia” ética coletiva permitiu que uma sociedade inteira naturalizasse o inaceitável.

A história demonstra que sociedades inteiras podem ser conduzidas a aceitar absurdos quando a consciência moral coletiva se enfraquece. Assim ocorreu na Alemanha nacional-socialista. Leis arbitrárias e perseguições sistemáticas foram sendo impostas passo a passo, e o povo, gradualmente condicionado, passou a enxergar como normal o que era eticamente monstruoso. Arendt advertiu que o perigo não reside apenas nos tiranos de grande escala, mas na passividade de milhões diante de pequenas violações sucessivas.

No Brasil de hoje, guardadas as diferenças históricas, observamos fenômeno semelhante. A Constituição Federal de 1988 consagra a separação de poderes e os direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas. O Artigo 60, Parágrafo 4º, afirma que tais temas não podem sequer ser alvo de emenda constitucional. Como destaca Leonardo Corrêa, Presidente da Associação Lexum, em seu livro “A República e o Intérprete”, o próprio preâmbulo da Constituição usa o verbo “assegurar” para indicar que tais direitos não são criados pelo Estado, mas reconhecidos como inerentes à dignidade humana, expressão do direito natural.

Apesar disso, a prática institucional recente evidencia um distanciamento crescente desse marco. O Supremo Tribunal Federal vem firmando entendimentos que ultrapassam a moldura constitucional, especialmente quando julga e condena criminalmente pessoas sem prerrogativa de foro, cidadãos comuns. Com isso, viola-se o princípio do juiz natural, que exige a definição prévia e objetiva da autoridade julgadora. Uma exceção se converte, pouco a pouco, em regra, e cada gesto extraordinário passa a ser recebido como normal.

No Brasil, pois, o desvio em relação ao cumprimento fiel da Constituição Federal não se limita mais a sutilezas ou exceções pontuais, mas se tornou algo grotesco, explícito e alarmante. O que antes poderia passar por flexibilizações pontuais hoje se apresenta como flagrantes violações à ordem constitucional, escancarando a distância entre o texto da lei e a prática institucional.

Esse processo de flexibilização na interpretação e aplicação da norma constitucional, ao longo do tempo, vai anestesiando a sensibilidade coletiva para os perigos que se instalam no cotidiano jurídico e político. A cada decisão que relativiza preceitos fundamentais, amplia-se o risco de que a sociedade perca a capacidade de distinguir entre o exercício legítimo do poder e o abuso camuflado pela normalidade aparente. É nesse ambiente de complacência gradual que prosperam os desvios, tornando-se cada vez mais difícil restabelecer os limites constitucionais originais e reverter retrocessos, pois o extraordinário já se confundiu com a rotina e o excepcional deixou de causar estranhamento.

A lição que se impõe é simples e urgente. Quando o direito natural é esquecido e a Constituição se transforma em ferramenta maleável nas mãos de autoridades, abre-se espaço para que o mal institucional se banalize.

Preservar a plena eficácia das cláusulas pétreas da Constituição Federal não é militância partidária. É responsabilidade cívica e compromisso com o bem comum. Uma sociedade que se acostuma a excepcionar direitos acaba, inevitavelmente, por perdê-los. A vigilância moral e jurídica é, portanto, condição para manter viva a ordem que a Constituição reconhece e que a dignidade humana exige por natureza.

*Fernando Borges de Moraes – Advogado formado pela UFPR, especialista em Direito do Trabalho pela UNISC/ENA, pós-graduando em Filosofia Tomista pela Universidade Católica de SC, sócio de Moraes & Freitas Sociedade de Advogados, membro da Lexum.

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