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Resenha: As Seis Lições

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Introdução

Antes de analisar o conteúdo do livro As seis lições, gostaria de destacar que o livro é a transcrição de palestras ministradas por Ludwig von Mises na Universidade de Buenos Aires (UBA) no ano de 1958, poucos anos após o fim do segundo mandato do ex-presidente Juan Domingo Perón, principal responsável pela destruição econômica da Argentina. Em 2023, o país apresenta inflação de 140%, 40% da população vive na pobreza e o desemprego bate 45% (1). Infelizmente, na batalha das ideias, Perón ganhou e Mises e o povo argentino perderam.

Entre as seis lições que Mises ensinou à plateia em Buenos Aires, destaco algumas delas. A terceira fala sobre os males do intervencionismo: a Argentina está no 144º lugar no ranking de liberdade econômica de 2023 (2). A quarta explica o fenômeno da inflação e como combatê-lo: a Argentina teve a 5ª maior inflação do mundo em 2022 (3). Já a quinta lição descreve os benefícios do investimento externo em um país: o governo da Argentina já deu oito calotes e diversas renegociações de dívida. Na sua palestra, Mises avisou: “Não vejo por que um país como a Argentina não poderia alcançar o mesmo elevado padrão de vida [da Suíça] ao cabo de alguns anos de boas políticas. Mas é imprescindível que as políticas sejam boas”, não foi o caso.

O capitalismo, o consumidor e o cancelamento

Nos últimos anos, com fundamental participação das redes sociais, surgiu um fenômeno chamado “cultura do cancelamento”. O cancelamento se dá quando um grupo geralmente grande de pessoas reage negativamente nas redes sociais a um comportamento de alguma pessoa ou de alguma empresa. Alguns exemplos recentes aconteceram com a marca de moda Balenciaga, após uma campanha com imagens relacionadas a abuso infantil (1); com a cerveja Bug Light, após uma propaganda com uma influenciadora transsexual (2); e, em um caso particular, com a influenciadora Gabriela Pugliesi, após ir a uma festa na pandemia da covid-19 (3).

A cultura do cancelamento mostra uma versão no século XXI do conceito que Mises transmitiu neste livro ao afirmar que “a mais poderosa empresa perderia seu poder e sua influência se perdesse seus clientes”. É interessante observar que as pessoas estão se dando conta da força que o consumidor e o indivíduo têm mesmo em relação a grandes empresas e instituições.

Entretanto, uma característica que difere a cultura do cancelamento do “império do consumidor” de Mises é justamente que uma pessoa que cancela pode não ser o consumidor da marca, o que o torna muitas vezes ineficiente ou apenas um ruído insignificante nos resultados financeiros de uma instituição. Um exemplo é a campanha de dia dos pais que a Natura realizou com um transsexual e que poderia ter causado alguma reação do consumidor. Como o consumidor da Natura já conhece o posicionamento da marca, não se importou e seguiu comprando, mesmo que a propaganda tenha sido criticada por grupos com visões contrárias, mas que provavelmente já não compravam na marca (4).

Mesmo se um grupo cancelar uma pessoa ou uma marca, se ainda houver um grupo relevante de pessoas que apoiam ou são indiferentes, a pessoa cancelada pode seguir com o mesmo comportamento. Assim, o grupo que tentou cancelar terá que lidar com a liberdade do outro de fazer algo que não apoia.

Investimento externo, globalização e a China

Em 1956, Mises já afirmou que “o investimento externo foi o maior acontecimento histórico do século XIX”, mas talvez ele não esperasse a magnitude do que estava por vir em termos de globalização e união econômica no fim do século XX e início do século XXI. Com o desmantelamento da União Soviética e o triunfo definitivo do capitalismo de livre mercado, ocorreu uma tendência de queda de barreiras comerciais, como tarifas e restrições de importação, impulsão do comércio global e da integração econômica regional – destaque para a União Europeia (UE) e o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA).

Um país que aproveitou o investimento externo realizado pelos Estados Unidos foi o Japão, que enriqueceu de maneira extraordinária no pós-guerra, construindo infraestrutura de qualidade e indústrias de ponta. Os países em desenvolvimento que foram bem-sucedidos no período foram justamente os que aceitaram bem o capital externo e entraram no mercado global, caso de Coreia do Sul, Singapura, Japão, Taiwan e Hong Kong.

No livro, Mises sugere que “precisamos tentar fazer algo em termos de legislação internacional” para incentivar mais investimento internacional. Mises foi visionário, pois, em 1995, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), que atua como um fórum de negociações e acordos para reduzir os obstáculos ao comércio internacional. Mesmo que existam críticas à OMC, podemos afirmar que ela ao menos tenta cumprir o papel sugerido pelo autor.

Interessante que Mises cita a Inglaterra como grande investidor externo do século XIX, depois destaca os Estados Unidos no século XX, que estavam começando a investir em diferentes países, tendência que cresceu e se consolidou ao longo do século. Já no século XXI, surgiu um novo grande investidor externo, a China. A China vem investindo pesadamente ao redor do mundo – destaque para a Belt and Road Initiative, que é um programa de investimento em infraestrutura em mais de 150 países, incluindo projetos de portos, estradas, telecomunicações, estações de energia e aeroportos (1).

Entretanto, o regime chinês é centralizado e a grande maioria dos investimentos são controlados direta ou indiretamente pelo Estado, o que confronta a visão da lição de Mises. No livro, o economista austríaco afirma que “é imprescindível que haja liberdade para empregá-lo (o investimento) sob a disciplina do mercado, não sob a do governo”.

Além da maior probabilidade do próprio investimento ser ruim, ao se relacionar com um Estado, o país investido pode acabar sendo parte de uma agenda oculta do país investidor. Um exemplo disso é o porto de Hambantota no Sri Lanka: por não conseguir pagar a dívida com a China, o Sri Lanka acabou tendo que ceder a gestão do porto para a potência asiática por 99 anos (2), sendo um ativo estratégico para os chineses visto a proximidade com a rival Índia, o que pode afastar o comércio entre Sri Lanka e os indianos, prejudicando ambos os países. A China ajudou a financiar pelo menos 35 portos na última década, sendo grande parte na África, onde muitos países têm uma capacidade financeira precária.

Portanto, mesmo que o investimento externo realmente tenha benefícios importantes e seja crucial para o desenvolvimento de uma nação e que o protecionismo econômico leve à destruição da riqueza e à estagnação, os países não podem ser ingênuos ao receberem grandes montantes de investimento de outros países. Cada Estado defende os seus interesses e sempre investirá buscando benefícios; a disciplina do mercado exige que os investimentos tenham retornos financeiros mais diretos, porém, a lógica do governo abre opções para investimentos sem retornos financeiros, mas que tenham retornos em termos de influência regional, bloqueio econômico, poder de barganha em negociações internacionais e outros ganhos muitas vezes maléficos para o recebedor do investimento.

Conclusão

As seis lições de Ludwig von Mises é um livro base do liberalismo. Os temas abrangentes de capitalismo, socialismo, intervencionismo, inflação, investimento externo e políticas e ideias poderiam ser um livro em separado, porém, o economista austríaco consegue resumir de maneira brilhante o essencial de cada tópico. Num mesmo livro, são retratados o triunfo do capitalismo centralizado no consumidor, os erros fatais do socialismo, os efeitos perversos e indesejados da intervenção estatal – seja onde ela for, o mecanismo destruidor de riqueza que é a inflação, a relevância do investimento externo como acelerador do desenvolvimento material humano e a argumentação de que, no fim, as ideias são o início de tudo, e a confirmação de que “ideias e somente ideias podem iluminar a escuridão”.

Fontes

Introdução

  1. https://investnews.com.br/infograficos/com-401-da-populacao-na-pobreza-argentina vai-as-urnas-domingo/#:~:text=Desemprego,pa%C3%ADs%2C%20embora%20o%2 0considere%20alto.
  2. https://www.heritage.org/index/ranking
  3. https://wisevoter.com/country-rankings/inflation-by-country/
  4. https://www.seudinheiro.com/2023/internacional/fmi-argentina-novo-plano-divida-ren s/

O poder do consumidor e o cancelamento

  1. https://www.sportskeeda.com/pop-culture/why-people-mad-balenciaga-child-ad-phot o-controversy-explained-cancel-calls-grow-louder#lnnqj536hxlq5g77zyr 2. https://www.otempo.com.br/economia/bud-light-faz-acao-com-influenciadora-trans-so fre-boicote-e-troca-diretores-1.2857249
  2. https://forbes.com.br/principal/2020/05/festa-durante-isolamento-pode-ter-causado-pr ejuizos-de-r-3-milhoes-a-gabriela-pugliesi/
  3. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/08/03/internas_eco nomia,878161/campanha-de-dia-dos-pais-com-thammy-fez-acoes-da-natura-subire m-enten.shtml

Investimento externo, globalização e a China

  1. https://www.cfr.org/backgrounder/chinas-massive-belt-and-road-initiative 2. https://www.nytimes.com/2018/06/25/world/asia/china-sri-lanka-port.html

*João Pedro Hoerde é associado do IFL-SP, engenheiro de produção formado pela UFRGS com mobilidade acadêmica na Universidad de Valladolid. Foi membro do Instituto Atlantos e cofundador do fundo de endowment da Escola de Engenharia da UFRGS. Trabalha com produtos digitais, tendo passado por fintech e IoT, desde 2020 trabalha com logística de e-commerce. Atualmente trabalha no time de Produtos Digitais no Mercado Livre.

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