Os direitos humanos segundo Roger Scruton
É notável que o filósofo britânico Roger Scruton tenha se tornado tão conhecido no Brasil. Inicialmente divulgado em terras canarinhas por Olavo de Carvalho, Scruton logo conquistou a atenção dos brasileiros quando se revelou uma referência intelectual para o grupo nascente de adeptos do pensamento liberal-conservador no Brasil, ávidos por conhecer autores que fugissem à hegemonia esquerdista nos círculos universitários e na grande mídia. Scruton foi introduzido de modo quase clandestino no Brasil, nadando na contramão editorial que privilegiava aqueles autores, estrangeiros e nacionais, alinhados ao progressismo e ao socialismo. Hoje, porém, o filósofo é reconhecido por muitos brasileiros que, até pouco tempo atrás, viviam órfãos de pensadores declaradamente liberais ou conservadores. É digno de nota o esforço de editores e de publicistas em divulgar as obras do autor no país. No livro Como ser um conservador, editado pela Record e publicado em 2016 com tradução de Bruno Garschagen, Roger Scruton apresenta e discute temas de interesse permanente, seja para leitores novatos ou para direitistas convictos. Um desses temas é o dos direitos humanos, noção oriunda da tradição jusnaturalista que atribui a todo indivíduo certos direitos inalienáveis.
Devemos alertar que Scruton não é nenhum reacionário esclerosado que rejeite a tradição liberal por considerá-la uma invenção pecaminosa da modernidade. Ao contrário, como bom conservador, o filósofo analisa os elementos teóricos das grandes correntes intelectuais que emergiram no Ocidente nos últimos séculos, e busca, nesse conjunto caótico de ideias e assertivas, os componentes que teriam positivamente contribuído para a consolidação da civilização ocidental. Seguindo à risca a advertência do apóstolo Paulo, Scruton retém o que é bom, isto é, as ideias que evoluíram ao longo do tempo e transcenderam seus locais de origem, tornando-se bens intelectuais cuja proteção interessa a todos que valorizem a ordem político-jurídica do Estado de direito. É assim que o filósofo vê no liberalismo uma tradição intelectual que nos legou bens inestimáveis como a laicização do poder público e a instituição de estatutos jurídicos que assegurem os direitos individuais. O famigerado Estado democrático de direito é produto da tradição liberal que delimitou, formal e institucionalmente, as linhas gerais de ação do governo e o espaço reservado às liberdades individuais a ser usufruídas por todos os homens. Nas palavras do autor:
Esses direitos garantiriam que o indivíduo fosse soberano sobre a sua própria vida e capaz de estabelecer relações por acordo e de se dissociar por mútuo consentimento. Sobre tal entendimento, incorporado na Declaração de Direitos de 1689, os direitos humanos devem ser entendidos como liberdades (…) que respeitamos ao deixar as pessoas em paz. A doutrina dos direitos humanos está aqui contida para estabelecer limites ao governo e não pode ser usada para autorizar qualquer aumento no poder do governo que não for exigido para a incumbência fundamental de proteger a liberdade individual.
O autor afirma que os direitos humanos são limitações ao poder do governo, portanto. Scruton esclarece que o jusnaturalismo foi originalmente uma tradição intelectual que exigia a proteção das liberdades individuais em face da atuação do governo. Em outras palavras, o governo deveria se abster de se envolver em questões privativas das liberdades individuais, em vez de condicionar as decisões dos indivíduos em função de suas preferências de bem e mal. Assim, o Estado de direito, idealmente concebido, é aquele em que os direitos individuais são garantias do cidadão contra a ação coercitiva do governo, são trunfos de que o homem civilizado pode lançar mão contra os abusos de poder dos governantes. As liberdades a que todo indivíduo tem direito são entendidas como liberdades negativas, como definiu o filósofo Isaiah Berlin, e não positivas. Berlin descreve as primeiras como a condição humana de ser livre de coações externas e as segundas como as constituídas da vontade humana de construir a própria vida. A diferença é sutil, mas Scruton se refere às liberdades fundamentais como liberdades negativas, ou seja, como domínios intocáveis pelo Estado senão em condições excepcionais. É assim que é possível, ao liberal do século XVII e ao conservador contemporâneo, defender a propriedade privada contra regulações abusivas do governo e o livre comércio contra a manipulação corporativa dos poderosos. Nos dois casos, o que se exige é que o governo saia do caminho e permita aos indivíduos usufruir de sua propriedade e comercializar livremente. A propriedade privada e a liberdade econômico constituem direitos humanos inalienáveis.
Para garantir a proteção devida a tais direitos, os tribunais de justiça se fortaleceram historicamente como as instituições responsáveis por julgar questões em que as liberdades individuais fossem ameaçadas ou violadas. Os juízes não discutiam tanto a validade das reivindicações da vítima ou a qualidade dos argumentos do acusado. Bastava analisar os textos legais e declarar um veredicto. Portanto, a discussão dissertativo-argumentativa não tinha vez em tribunais de justiça. Quando muito, discutia-se a interpretação adequada de dispositivos jurídicos ambíguos em ocasiões isoladas. Se aos juízes cabia o julgamento sobre os direitos humanos protegidos pela legislação, então fica claro que tais direitos deveriam ser indiscutíveis e constar de precedentes legais que justificassem sua inserção na restrita lista dos direitos. É porque os tribunais são instâncias decisórias e não conciliatórias que a definição dos direitos estatuídos deve ser o mais precisa e cristalina quanto possível, porque aonde bate o martelo não cabe debate. Se, por exemplo, não há clareza nem consenso sobre a questão do direito à vida, cria-se aí uma brecha para feministas reivindicarem a legalização do aborto, embora o senso comum entenda claramente que o direito à vida, o mais fundamental entre todos, é violado quando uma vida é interrompida no ventre. Scruton afirma o seguinte:
Uma instância do poder judiciário vê a si mesma como solucionadora de divergências em favor de uma das partes. Em circunstâncias normais, uma disputa entre direitos é um jogo de soma zero em que uma parte ganha tudo e a outra perde. Não há prêmio de consolação. Além disso, a jurisprudência assegura que a decisão judicial abrirá uma brecha em qualquer legislação destinada a resolver problemas de espécies que lhe são anteriores. Eis um dos perigos inerentes à legislação de “direitos humanos” — ou seja, que a norma jurídica coloca nas mãos do cidadão comum uma ferramenta com que até mesmo a componente mais vital de política pública pode ser revogada em favor do indivíduo, independentemente do interesse comum e do bem comum. Desse modo, os terroristas na Grã-Bretanha têm conseguido impedir as tentativas de deportação alegando que esse ou aquele “direito humano” seria violado se isso fosse feito. Sem um critério que nos permita distinguir os genuínos direitos humanos daqueles dissimulados, nunca estaremos certos de que as nossas disposições legais, apesar de sábias, benevolentes e responsáveis, nos protegerão do desejo individual de desrespeitá-las.
Em outras palavras, ou os direitos humanos são garantias jurídicas das liberdades individuais ou são marcadores legais do despotismo de grupos minoritários interessados em gravar seus desejos particulares na legislação comum, forçando toda a sociedade a obedecê-los quando se encontram diante da ação coercitiva do Estado. Scruton nos faz ver que ocorreu uma grande inflação de direitos ao longo dos séculos, em função da imprecisão dos direitos fundamentais a ser resguardados na lei e em função da compulsão legiferante de juristas e políticos empenhados em advogar seus interesses sectários e protegê-los na fortaleza jurídica dos “direitos humanos”. Quem seria contra a proteção dos direitos humanos, não é mesmo? Aproveitando-se disso é que esquerdistas defendem abertamente a leniência penal e o desencarceramento de presidiários que, coitados, sofrem violações de seus “direitos”. É por essa razão, entre outras, que a impunidade grassa em todo o Brasil: porque os desavergonhados defensores de criminosos se utilizam da retórica dos direitos humanos para justificar a ação criminosa de seus protegidos. Acontece que, sem a devida proteção dos direitos individuais, não pode haver democracia liberal; porém, sem a priorização dos direitos fundamentais (vida, integridade física, propriedade etc), não pode haver ordem nem Estado de direito. Portanto, é necessária uma hierarquização dos direitos humanos que oriente o processo jurídico, pois quem atenta contra a vida de alguém cometendo um homicídio não pode passar impune, pela razão singela de que o criminoso deve ser privado do direito à liberdade física se violar o direito à vida de seus concidadãos.
Scruton também se refere ao ativismo judicial das chamadas minorias que defendem pautas identitárias e que buscam afirmar para si direitos exclusivos. É a chamada “discriminação positiva”, em que um grupo social é positivamente discriminado em função de peculiaridades que supostamente a diferenciam do restante da sociedade. Na medida em que esses grupos buscam defender seus próprios “direitos”, eles se diferenciam dos demais grupos que compõem o corpo social e marcam suas diferenças na legislação. É o caso de cotas para transgêneros no ensino superior público ou dos projetos de lei que visavam criminalizar a homofobia, sem precisar aonde começa a homofobia e aonde termina a simples prática de injúria ou constrangimento, já previstos na lei como garantias legais para todos os indivíduos que compartilham a vida política. Note-se que esses “direitos”, se positivados na lei, garantem privilégios jurídicos a esses grupos minoritários. Por exemplo, se fosse aprovada qualquer lei de combate à homofobia, provavelmente duas lésbicas poderiam se beijar ostensivamente no interior de um templo cristão sem temer a repreensão de ninguém, pois repreendê-las seria violar seus “direitos humanos”, seria infringir a lei. Levados ao tribunal, os cristãos acusados de homofobia provavelmente sofreriam as sanções penais cabíveis por terem defendido a autonomia de seu espaço privativo de culto. Nesse sentido, a legislação deixa de ser a regra comum a todos e passa a ser um território em disputa por facções interessadas em adquirir poder.
Para o filósofo, essa enxurrada de “direitos” que se sobrepõem indevidamente aos direitos básicos de todo indivíduo, já consagrados na legislação ocidental, subverte o jusnaturalismo original. As primeiras ideias sobre direitos humanos tinham em comum a defesa do indivíduo contra abusos do poder coercitivo do governo; a atual direitocracia amplia a atuação do Estado que resta como o único agente defensor dos beneficiários desses novos “direitos”. Scruton afirma que, na falta de uma história particular que justifique a inserção de direitos exclusivos de grupos minoritários na sociedade, o que resta é o arbítrio do Estado que deverá julgar a execução das regalias transformadas em “direitos”. Por exemplo, talvez seja necessário que os catalãos sejam protegidos legalmente contra atentados na Espanha, talvez seja necessário que as comunidades germânicas no Sul do Brasil tenham inserções próprias na lei; mas por que transgêneros deveriam ser beneficiados com cotas no ensino superior? O que justificaria essa reinvenção legal senão uma engenharia social que busque cooptar grupos minoritários em favor de interesses poderosos? A respeito dessa subversão do jusnaturalismo, diz Scruton
O propósito original por trás da invocação dos direitos naturais do liberalismo era a proteção do indivíduo do poder arbitrário. (…) No entanto, as novas ideias sobre direitos humanos admitem conceder a um grupo direitos que negam a outro grupo: a pessoa tem direitos como membro de algum grupo étnico minoritário ou de uma classe social que não podem ser reivindicados por todos os cidadãos. Agora o indivíduo pode ser beneficiado ou rejeitado em virtude da classe, da raça, do posto ou da ocupação, e isso em nome de valores liberais. Por essa razão, os direitos [exigidos modernamente] refletem uma mudança profunda na filosofia liberal. A retórica dos direitos deslocou-se das liberdades para as reivindicações, e da igualdade de tratamento para a igualdade de resultados.
Roger Scruton entende que os direitos humanos são parte da admirável herança intelectual e política do liberalismo para a civilização ocidental. Sem a definição de direitos inalienáveis, a sociedade não pode subsistir e os indivíduos não podem usufruir de suas próprias vidas em paz e segurança. É notável que o jusnaturalismo liberal tenha fortalecido um sistema jurídico que dá o veredicto formal sobre direitos presumivelmente nascidos com cada indivíduo, de modo que o império das leis é a garantia contra o poder arbitrário do governo e contra a violência e a barbárie entre os homens. Acontece que tais direitos fundamentais devem remeter à universalidade porque se referem, precisamente, a todos os indivíduos que compartilham a soberania do Estado. Para ser devidamente genérica e generosa com a pluralidade de indivíduos que gozam da mesma cidadania, a legislação deve ser sucinta e precisa em definir que direitos serão respeitados acima de tudo e em que situações excepcionais será lícito revogar um desses direitos (como no caso dos criminosos condenados e encarcerados). Porém, sem uma hierarquia axiológica que organize os vários direitos em ordem descendente, as leis deixam de se dirigir a todos os indivíduos e passam a ser instrumentos de autoafirmação para grupos minoritários descolados da vida em comum na sociedade civil.
É do interesse de todo liberal que os direitos instituídos na legislação se refiram à universalidade dos cidadãos e não a frações da sociedade, sejam elas grupos identitários ou máfias do corporativismo. Não faz sentido que homossexuais sejam tratados como grupos preferenciais no código penal, nem que juízes e desembargadores tenham seus salários altíssimos acrescidos de benefícios escandalosamente caros aos erário público. E é de interesse liberal por duas razões. Primeiramente porque se as leis deixam de ser marcadores da liberdade humana, isto é, da ausência de coação sobre os indivíduos, elas passam a ser meios de suprimir a liberdade de todos em favor de grupos minoritários. Essa supressão se dá unicamente pela ampliação do poder coercitivo do Estado, como no caso do Rio de Janeiro em que os canudos de plástico foram proibidos em nome de um ambientalismo vago, prejudicando todo o ramo de alimentos e, claro, o consumidor. Diz Scruton que esses “supostos direitos humanos começaram a aumentar esse poder e a chamar o Estado para se envolver, do lado dos favorecidos, em todos os conflitos”. Além disso, a sociedade liberal têm de priorizar alguns valores básicos, como a meritocracia e a livre competição empresarial. Cotas para grupos identitários e isenções fiscais para empresas escolhidas a dedo pelo governo, por exemplo, são dois exemplos em que o privilégio se travestiu de “direito”.