Crédito rural privado: por que ficar em alerta (mesmo sem ser produtor)
A Medida Provisória 1.303, publicada em 11 de junho de 2025, estabelece uma nova realidade tributária para o agronegócio brasileiro ao instituir uma alíquota de 5% de Imposto de Renda sobre os rendimentos de títulos agrícolas tradicionalmente isentos.
Essa medida, que integra o pacote fiscal do governo federal, atinge diretamente instrumentos essenciais do financiamento privado rural, incluindo Certificados de Depósito Agropecuário (CDA), Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) e Cédulas de Produto Rural (CPR) negociadas no mercado financeiro.
O crédito privado do agronegócio alcançou R$1,27 trilhão em 2025, superando significativamente os R$744 bilhões do Plano Safra 24/25 destinado ao crédito rural público. Esse cenário evidencia a dependência crescente do setor em relação ao financiamento privado, especialmente considerando que as LCAs representam cerca de 40% do financiamento do setor agropecuário.
Composição atual do crédito rural
A estrutura de financiamento do agronegócio brasileiro passou por uma transformação significativa nos últimos anos. Atualmente, 42% dos recursos provêm de fontes privadas, 25% de recursos próprios dos produtores e 33% do Plano Safra. Essa distribuição reflete a crescente participação do mercado de capitais no financiamento da atividade rural, com as LCAs desempenhando papel protagonista nesse processo.
O crescimento dos instrumentos privados foi expressivo: entre 2022 e 2023, as CPRs cresceram 81%, os FIAGROs registraram expansão de 310%, as LCAs aumentaram 80% e os CRAs tiveram elevação de 40%. Esses números demonstram a vitalidade do mercado privado como fonte alternativa ao crédito público tradicional.
Limitações do crédito público
O Plano Safra tem enfrentado restrições orçamentárias crescentes, com recursos cada vez mais direcionados à agricultura familiar. Para a safra 2025/2026, o orçamento das Operações Oficiais de Crédito soma apenas R$14 bilhões, valor insuficiente para atender à demanda estimada de R$1,2 trilhão anuais do setor agropecuário.
Essa limitação viabiliza que médios e grandes produtores busquem alternativas no mercado privado – e, justamente nesse ponto, a MP 1.303 reduz a atratividade desses instrumentos. O vice-presidente da CNA, José Mário Schreiner, alertou que, “quando o governo recorre à tributação dos títulos agrícolas para tapar o furo de déficit fiscal, ele praticamente fecha as portas do crédito rural”.
Análise técnica da MP 1.303/2025
Aspectos tributários e jurídicos
A tributação de 5% sobre os rendimentos representa uma quebra significativa no modelo de incentivos fiscais ao agronegócio. Importante destacar que essa alíquota não se aplica aos títulos emitidos e integralizados até 31 de dezembro de 2025, respeitando o princípio da anterioridade fiscal.
A medida provisória também restringe as compensações de créditos tributários, dispositivo similar à controversa MP 1.227, conhecida como “MP do fim do mundo”. Essa restrição impede que contribuintes apresentem recursos administrativos em determinadas situações, limitando o direito de defesa fiscal.
Impactos econômicos imediatos
O aumento do custo de captação para instituições financeiras será inevitavelmente repassado aos produtores rurais. Especialistas estimam que um acréscimo de 1 a 2 pontos percentuais no custo de captação pode elevar o custo final do crédito em 0,5 a 1,5 ponto percentual para o produtor.
A redução da atratividade dos títulos agrícolas frente a outras opções de investimento pode resultar em menor volume de emissões e, consequentemente, escassez de crédito para o setor. Esse cenário é particularmente preocupante considerando que o PIB do agronegócio cresceu 12,2% no primeiro trimestre de 2025, demonstrando o dinamismo do setor.
Consequências setoriais e regionais
Impacto na competitividade
O encarecimento do crédito rural em um momento de alta competitividade internacional representa um risco significativo para a posição brasileira no mercado global. O país, que recebeu US$64 bilhões em investimentos estrangeiros diretos em 2023, pode ver comprometida sua atratividade como destino de investimentos no agronegócio.
A China, principal cliente do agronegócio brasileiro, tem aumentado seus investimentos no setor, com empresas como Citic Agriculture e Cofco ampliando operações no país. A tributação adicional pode afetar a percepção de segurança jurídica destes investidores internacionais.
Efeitos na cadeia produtiva
A agricultura familiar, embora menos dependente do crédito privado, também pode ser indiretamente afetada. O encarecimento do crédito para médios e grandes produtores pode gerar efeitos inflacionários na cadeia alimentar, impactando os preços dos alimentos básicos.
O setor de infraestrutura agrícola também será afetado, já que a MP inclui títulos relacionados a projetos de investimento e infraestrutura. Essa medida pode comprometer investimentos em armazenagem, logística e processamento de commodities.
Perspectivas e cenários futuros
Tramitação no Congresso Nacional
A MP 1.303 enfrenta forte resistência no Congresso Nacional, com a Coalizão de Frentes Parlamentares do Setor Produtivo, liderada pela Frente Parlamentar da Agropecuária, publicando manifesto pela “imediata devolução” da medida. A senadora Tereza Cristina já apresentou emenda suprimindo os dispositivos que tributam as LCAs e CDAs.
O calendário de tramitação prevê deliberação até 23 de agosto de 2025, com apresentação de emendas até 17 de junho. A mobilização do setor produtivo sugere que a medida passará por significativas alterações ou pode até ser rejeitada.
Alternativas de financiamento
O mercado tem buscado inovações no financiamento rural, como o modelo de fundos híbridos público-privados implementado no Paraná, que promete destravar R$ 14 bilhões em crédito agrícola com juros em torno de 9% ao ano. Esse tipo de blended finance pode representar uma alternativa viável ao modelo tradicional.
A digitalização do crédito rural também emerge como solução, com plataformas que simplificam processos e dispensam garantias físicas, utilizando dados reais de produção e histórico do produtor.
Recomendações estratégicas
Para o poder público
É fundamental que o governo reavalie o impacto sistêmico da MP 1.303, considerando que a medida pode comprometer o financiamento de um setor que representa mais de 25% do PIB brasileiro. A manutenção dos incentivos fiscais aos títulos agrícolas é essencial para preservar a competitividade do agronegócio nacional, caso contrário, trataremos novamente do Custo Brasil como o principal ponto de comprometimento da nossa competitividade.
Para o setor privado
Produtores e empresas do agronegócio devem diversificar suas fontes de financiamento, explorando alternativas como fundos de investimento especializados, parcerias estratégicas e instrumentos inovadores de captação. A antecipação na captação de recursos antes da vigência da nova tributação também é recomendável.
Conclusão: navegando em águas turbulentas
A MP 1.303/2025 representa um marco divisor na história do financiamento do agronegócio brasileiro. Enquanto o governo busca equilibrar as contas públicas, o setor produtivo enfrenta o desafio de manter sua trajetória de crescimento em um ambiente de maior custo de capital e reduzida atratividade dos instrumentos tradicionais de financiamento.
A resolução desta tensão passará necessariamente pelo diálogo entre governo e setor produtivo, buscando soluções que conciliem a necessidade de arrecadação com a preservação da competitividade do agronegócio brasileiro. O futuro do financiamento rural dependerá da capacidade de inovação do mercado e da sensibilidade política para os impactos econômicos desta medida.
A sustentabilidade do modelo produtivo brasileiro está em jogo, e as decisões tomadas nas próximas semanas no Congresso Nacional definirão se o país manterá sua posição de liderança mundial no agronegócio ou enfrentará um período de ajustes estruturais com impactos duradouros na economia rural.
*Patrícia Arantes de Paiva Medeiros é Diretora Executiva da Sociedade Rural Brasileira. Possui mestrado em Direito, Justiça e Impactos na Economia pelo Centro de Estudos em Direito Econômico e Social (CEDES) sobre competitividade no agronegócio. É autora do livro Análise Econômica do Agronegócio: competitividade no mercado agropecuário global. Pós-Graduada em Análise Econômica do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). LLM em Direito Empresarial pela FGV. Pós-graduação em Ética Empresarial pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada especializada em agronegócio. Conselheira na Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG) nas câmaras de agronegócio e de alimentos e bebidas.