Como o debate sobre as mudanças climáticas ajudou a enfraquecer a plenitude do direito de propriedade no Brasil

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Atualmente, as mudanças climáticas causadas pelas ações humanas são amplamente aceitas. No entanto, a discussão desse tema no Brasil não é recente — ela ocorre há mais de 200 anos e foi a base para enfraquecimento da plenitude do direito de propriedade no país. Assim, conclamamos nossos liberais para que fiquem vigilantes visando a impedir que a atual histeria em torno do tema desemboque em mais enfraquecimento do direito de propriedade no Brasil e no comprometimento de nossa infraestrutura e economia. Vivemos uma brutal insegurança jurídica no país advinda da nossa mais alta Corte, e, nesse ambiente, a ministra do Meio Ambiente recentemente sugeriu o confisco de propriedades no caso de incêndios florestais criminosos.

O tema das mudanças climáticas vem sendo discutido no Brasil desde o final do século XVIII. Com um pano de fundo representado por uma forte mentalidade anticapitalista e antiliberal, esse debate contribuiu, de forma decisiva, para o enfraquecimento do direito de propriedade ao longo do século XX. Apesar de a Constituição Republicana de 1891, de cunho liberal, ter assegurado a plenitude do direito de propriedade, ela não foi suficiente para criar uma cultura liberal no país. O mesmo pode ser dito do Código Civil de 1916.

Segundo a visão predominante atualmente, as mudanças climáticas são provocadas pelas emissões antropogênicas de carbono e de outros gases de efeito estufa. No passado, a discussão das mudanças climáticas se dava por perspectiva um pouco diferente. As mudanças climáticas eram causadas pelo desmatamento, que levava à redução da umidade do ar e, consequentemente, das chuvas e dos mananciais de água. Isso era conhecido como teoria do dessecamento e foi proposto no final do século XVII e início do século XVIII por John Woodward e Stephen Hales, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e posteriormente difundido na França e em Portugal pelas obras do conde de Buffon.

Os conservacionistas brasileiros prontamente abraçaram essa teoria. O marco inicial da crítica ambiental brasileira surgiu por volta de 1786 com a obra do magistrado e historiador baiano Baltasar da Silva Lisboa. A partir de então, até 1870, uma série de personagens publicaram textos com críticas ambientais no Brasil. Eles fizeram parte do que denominamos, no livro Ecologia Liberal, de primeira geração de conservacionistas brasileiros. Dentre eles, podemos destacar José Bonifácio de Andrada e Silva, Januário da Cunha Barbosa, Raymundo da Cunha Mattos, Inácio Accioli de Cerqueira e Silva, Domingos Ferreira Penna; médicos como Francisco Freire Alemão e Emílio Joaquim da Silva Maia; naturalistas, como Guilherme Capanema, José Saldanha da Gama e João Silva Coutinho.

Eles argumentavam, com base na teoria do dessecamento, que o desmatamento para dar lugar às atividades agrícolas levaria à diminuição da umidade do ar e, em consequência, das chuvas e dos mananciais, ou seja, provocava mudanças climáticas que poderiam levar até à desertificação de amplas áreas do Brasil. Esses argumentos alarmistas se consolidaram ao longo de todo o século XIX e embasaram o Código Florestal de 1934, que representou, como veremos abaixo, a morte da plenitude do direito de propriedade no Brasil.

A segunda geração de conservacionistas, com base na teoria do dessecamento, também abraçou fortemente o debate sobre as mudanças climáticas provocadas pelo desmatamento realizado para expansão agrícola. Ela era composta, em sua maioria, por cientistas estrangeiros que vieram para o Brasil no bojo do processo de modernização das instituições científicas e atuou no período de 1870 a 1930. Dentre eles, podemos destacar Herman von Ihering, Orville Derby, Alberto Loefgren, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Edmundo Navarro de Andrade, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Monteiro Lobato e o deputado federal Augusto de Lima. Muitos deles eram antiliberais. Defenderam uma forte regulamentação estatal sobre o uso das propriedades rurais para evitar as mudanças climáticas. Poucos eram liberais e defendiam uma atuação pedagógica do Estado para atingir esse mesmo fim.

Como exemplo, Herman von Ihering escreveu em 1911: “A defesa das matas das cabeceiras dos rios e arroios competirá a legislação federal e estadual. Devem ser discriminadas extensas áreas de matas, cuja conservação é exigida no interesse do clima” [grifo nosso].

Diversos atores pediram a limitação do direito de propriedade no Brasil. Lourenço Baeta Neves, funcionário do governo de Minas Gerais e fundador da Escola de Engenharia da Universidade de Minas Gerais, discursou no XVI Congresso Nacional de Irrigação dos Estados Unidos, realizado em 1908, e afirmou: “o dono da terra é apenas um administrador do solo, isso lhe foi confiado pelas gerações passadas; […] a propriedade territorial deveria ter uma aplicação social, atendendo ao interesse coletivo”. Ele era partidário de um maior intervencionismo e já recorria à ideia de função social da propriedade, conceito usado primeiramente por Augusto Comte em 1851. Este foi um conceito chave no Código Florestal de 1934.

O secretário de Agricultura de São Paulo, Candido Rodrigues, acreditava nas mudanças climáticas antropogênicas e desejava regulamentar o uso da propriedade agrícola. No entanto, ele tinha consciência de como uma proposta de intervenção estatal na gestão das terras privadas suscitava dúvidas diante da Constituição Federal de 1891 e de quão custoso seria para o erário público.

O Agrônomo Edmundo Navarro de Andrade lutou arduamente contra a ideia de intervenção estatal na gestão das florestas. Ele foi o único conservacionista brasileiro que tratou o desmatamento pela perspectiva liberal. Pontuou em 1912: “faça o governo da União, façam os governos estaduais o que fez São Paulo. Aqui, a ideia dominante foi outra, o espírito que presidiu a criação do serviço florestal foi mais elevado e a questão foi encarada superiormente. O Estado estabelecerá matas de demonstração, por assim dizer, culturas florestais em diversos pontos do seu território, auxiliará os lavradores fornecendo-lhes gratuitamente mudas à porta de suas casas, dando-lhes instruções, planos, projetos, tudo, mas sem cogitar de proibir coisa alguma”.

Alguns estados conseguiram criar legislações estaduais relacionadas à regulamentação florestal. Nelas, vemos forte influência do debate sobre as mudanças climáticas. Dentre eles, podemos destacar: o Rio Grande do Sul, que promulgou um regulamento sobre o Regime Florestal Estadual em 1901, no qual estabelecia áreas de florestas protetoras; o Paraná, que promulgou o seu Código Florestal em 1907, no qual também estabelecia as “florestas protetoras” como áreas de “utilidade pública”; e Sergipe, que promulgou seu código em 1913. No entanto, essas iniciativas não resultaram em efetiva conservação da cobertura florestal. Representam as denominadas “leis que nunca pegaram” no país.

Nesse ponto, cabe um adendo. Não estamos defendendo o uso irracional e desregulamentado de nossos recursos naturais. Estamos demonstrando como a nossa visão anticapitalista e antiliberal levou ao enfraquecimento da plenitude do direito de propriedade no Brasil. Nesse período, os Estados Unidos também debatiam o tema. As pesquisas realizadas por eles relacionavam as florestas com a disponibilidade de água em sua região semiárida. No entanto, os Estados Unidos tinham uma constituição e uma cultura liberal, e as soluções para o desmatamento não levaram ao enfraquecimento do direito de propriedade. Se era preciso proteger o clima e o suprimento de água de uma região, o governo comprava a área e a transformava numa unidade de conservação.

Por meio do deputado mineiro Augusto de Lima, tentou-se elaborar um código florestal federal, mas a proposta foi desidratada no Congresso Nacional que tinha a consciência de quão a plenitude do direito de propriedade seria afetado. A Câmera Federal retomou a discussão do projeto de código florestal em 1915, mas reduziu seu escopo à criação do Serviço Florestal do Brasil que foi, efetivamente, criado em 1921. Como resultado de tantas décadas de discussões sobre as mudanças climáticas, a legislação determinava a criação das florestas protetoras.

A segunda geração de conservacionistas logrou pouco êxito prático, mas plantou firmemente a semente de que as mudanças climáticas provocadas pelo desmatamento eram a maior ameaça ao Brasil. Essa semente germinou e deu origem ao Código Florestal de 1934, que sacramentou o fim da plenitude do direito de propriedade no Brasil.

A efetivação do golpe final na plenitude do direito de propriedade no Brasil coube a Getúlio Vargas e à terceira geração de conservacionistas composta principalmente por cientistas ligados ao Museu Nacional. Eles eram antiliberais assumidos e defensores do pensamento autoritário. Essa geração também englobava personalidades como o deputado Augusto de Lima, Leôncio Correia, Durval Ribeiro de Pinho e Frederico Carlos Hoehne.

Getúlio Vargas representou o ápice do pensamento autoritário que se consolidou no Brasil no início do século XX. Ele levou e aprimorou a doutrina castilhista, de cunho autoritário, para o governo federal, cuja estratégia era anular o Poder Legislativo. Segundo Ricardo Vélez-Rodrígues, “o princípio castilhista [ ] sob Vargas, no plano nacional, assume esta forma: os técnicos elaboram as normas legais; os interessados são convidados a opinar; e o governo intervém para exercer função mediadora e impor uma diretriz, um rumo”.

Assim, procedeu Getúlio Vargas. Ele se empenhou em transformar as questões políticas em problemas técnicos que seriam discutidos sem a participação dos parlamentares, que são os legítimos representantes do povo em uma democracia. Em 1931, ele criou uma subcomissão, ligada ao Ministério da Justiça, com o objetivo de elaborar uma proposta de Código Florestal. Dela faziam parte o deputado Augusto de Lima, José Mariano Filho, entomologista e defensor do patrimônio histórico colonial; e Luciano Pereira da Silva, procurador jurídico do Serviço Florestal Brasileiro e relator da subcomissão.

As mudanças climáticas e seus efeitos sobre o Brasil foram um dos temas que guiou o grupo na elaboração do anteprojeto de Código Florestal. Nesse mesmo ano, o anteprojeto foi publicado no Diário Oficial, para receber sugestões. Diversos cientistas, legisladores e juristas famosos enviaram sugestões à proposta, o que obrigou o governo a estender o prazo para a sua discussão. Para debater as sugestões enviadas, o grupo inicial foi expandido e passou a contar com a participação de Alberto José de Sampaio, do Museu Nacional; Durval Ribeiro de Pinho, da Sociedade de Amigos das Árvores; Levi Carneiro, Consultor Geral da República; Virgílio Sá Pereira, desembargador; Daniel de Carvalho, representante do Instituto de Advogados; Castro Nunes, juiz; e José Duarte Gonçalves da Rocha, entre outros. Todos os passos do processo de elaboração do novo código eram divulgados pelo Jornal do Brasil.

O projeto definitivo que instituiu o Código Florestal foi concluído em 1933 e transformado em lei em 23 de janeiro de 1934, por meio do Decreto nº 23.793. Ele não foi discutido pelo parlamento brasileiro e instituiu a morte da plenitude do direito de propriedade no Brasil. Determinou em seu artigo 1º: “as florestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituem bem de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que as leis, em geral, e especialmente este Código estabelecem”. Em seu artigo 3º, classificou as florestas em: protetoras, remanescentes, modelo e de rendimento.

O Código Florestal de 1965 foi um aprimoramento do de 1934. A morte da plenitude do direito de propriedade foi sacramentada. Como os órgãos estatais não conseguiram realizar a classificação das florestas impostas em 1934, o novo código propôs a classificação detalhada das florestas, indicando a metragem das novas classes, como mostrado a seguir: artigo 2º – Preservação permanente: a) ao longo dos rios ou de outro qualquer curso d’água, em faixa marginal cuja largura mínima será: 1) de 5 (cinco) metros para os rios de menos de 10 (dez) metros de largura; 2) igual à metade da largura dos cursos que meçam de 10 (dez) a 200 (duzentos) metros de distância entre as margens; 3) de 100 (cem) metros para todos os cursos cuja largura seja superior a 200 (duzentos) metros; b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais; e assim por diante.

No seu artigo 16 instituiu-se a Reserva Legal, que variava de 20 a 50% da propriedade de acordo com a região do país. Em 1996, em função da histeria causada pelo desmatamento na Amazônia e do desrespeito à propriedade privada no Brasil, o presidente Fernando Henrique baixou a Medida Provisória nº 1.511/96, que elevou de 50 para 80% a área de reserva legal nas propriedades localizadas no bioma da Amazônia.

As mentalidades anticapitalista e antiliberal vigentes no Brasil, aliadas à histeria provocada pelo debate sobre as mudanças climáticas, explicam por que só o Brasil tem uma legislação florestal tão restritiva no mundo, ou seja, que promove uma brutal limitação do direito de propriedade.

Em resumo, o debate sobre as mudanças climáticas não é novo no Brasil. Tem mais de 200 anos e contribuiu decisivamente para o enfraquecimento do direito de propriedade no país. O debate atual sobre as mudanças climáticas tem possibilidade de provocar estragos ainda maiores. A ministra do Meio Ambiente recentemente sugeriu confiscar propriedades envolvidas com incêndios florestais criminosos; a pavimentação da BR 319, importante obra de infraestrutura que liga a Manaus a Porto Velho, é boicotada por causa do medo de provocar desmatamento e emissão de gases de efeito estufa; as autoridades ambientais dão a entender que não se deve realizar a exploração de petróleo na Margem Equatorial brasileira para evitar a emissão de carbono. Nesse andar da carruagem, os estragos para o direito de propriedade, a infraestrutura e a economia brasileira poderão ser devastadores.

Os nossos liberais precisam redobrar a vigilância para que a histeria vigente nos debates sobre mudanças climáticas não seja desastrosa para o país. Precisamos urgentemente apresentar propostas de políticas ambientais embasadas nos valores liberais. O empresariado deveria começar a apoiar Think tanks com capacidade de pensar políticas ambientais de cunho liberal. Governadores como Ratinho-Jr, Romeu Zema, Ronaldo Caiado e Tarcísio de Freitas têm a obrigação de começar a desenhar essas novas políticas ambientais de cunho liberal. Os problemas ambientais da atualidade são muitos e complexos, mas nós liberais temos condições de oferecer respostas mais eficientes e eficazes para eles.

*Marcos A. R. Araujo é biólogo, mestre e doutor em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi Perito Nacional da Cooperação Alemã para o Desenvolvimento (GTZ – atual GIZ), realizou as avaliações de projetos ambientais do Banco Mundial e do banco alemão KfW. Foi consultor do Promata MG/ IEF/KfW, do Programa Áreas Protegidas da Amazônia – Arpa, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio/ MMA), das Secretarias de Estado de Meio Ambiente do Acre, Amazonas, Mato Grosso e da Secretaria de Controle Externo de Agricultura e Meio Ambiente do Tribunal de Contas da União (Secex Ambiental/ TCU). Atualmente é CEO da Startup PIAGAM e se dedica a área de inovação voltada para a gestão ambiental. É autor dos livros Unidades de Conservação no Brasil: da República à Gestão de Classe Mundial (2007); Unidades de Conservação no Brasil: o caminho da gestão para resultados (2012); Repensando a gestão Ambiental Pública no Brasil: uma contribuição ao debate de reconstrução nacional (2016) e Ecologia Liberal – uma poderosa doutrina para gestão ambiental no Brasil (2022).

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