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Auxílio Brasil, Bolsa Família e o uso eleitoreiro da miséria

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Para o observador arguto e não refém do personalismo, o desenrolar de certos acontecimentos do cotidiano político é capaz de revelar um mar de contradições, bem como o cinismo e a capacidade de certos atores políticos em se transformarem, conforme a conveniência, no rival de outrora. Peguemos o caso do Auxílio Brasil, substituto proposto pelo governo ao Bolsa Família, e a querela que o acompanha, em especial, com a PEC dos Precatórios, vulgo, PEC do Calote, que visa ao seu financiamento. Quando vemos os petistas e seus pares, ainda que movidos por razões insinceras, esposando uma suposta defesa da responsabilidade fiscal e criticando o uso eleitoreiro do novo programa por Bolsonaro, é difícil não se lembrar de uma das variações de um dos nossos mantras mais famosos: “O Brasil não é para os fracos”.

Tendo crescido na vigência dos governos petistas e sendo esse meu primeiro contato com o jogo político brasileiro, “saquei” logo que um dos cacoetes preferidos do petismo, repetido eleição após eleição, era, primeiro, pintar o governo Lula como o primeiro e até então único governo a fazer políticas públicas de combate à pobreza, e, segundo, adotar uma retórica de terrorismo eleitoral, propagando a ideia de que, na eventualidade de perderem as eleições, o rival vitorioso iria acabar com tais políticas, em especial com o Bolsa Família.

Data de outubro de 2003 a criação do programa, que se tornou lei em 9 de janeiro de 2004 com a seguinte redação:

“Art. 1º Fica criado, no âmbito da Presidência da República, o Programa Bolsa Família, destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades.

Parágrafo único. O Programa de que trata o caput tem por finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações de transferência de renda do Governo Federal, especialmente as do Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação – Bolsa Escola, instituído pela Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001, do Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA, criado pela Lei n o 10.689, de 13 de junho de 2003, do Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde – Bolsa Alimentação, instituído pela Medida Provisória n o 2.206-1, de 6 de setembro de 2001, do Programa Auxílio-Gás, instituído pelo Decreto nº 4.102, de 24 de janeiro de 2002, e do Cadastramento Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto nº 3.877, de 24 de julho de 2001.

Não deixa de ser irônico que nada rechace tão bem o terrorismo eleitoral petista com o programa quanto a própria redação do mesmo. Primeiro, fica claro que o Bolsa Família não surgiu no vácuo, sendo uma unificação de programas anteriores. Segundo, dos programas que integraram a unificação, apenas o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA, também conhecido como Fome Zero, foi de autoria do governo Lula, sendo reconhecidamente um fracasso. O Bolsa Família foi, portanto, uma união de programas da gestão FHC, o que, a um só tempo, contraria a retórica de que não se fazia política pública voltada para os mais pobres antes da era PT, e a de que os tucanos, ou qualquer outro governo hipotético não-petista, dariam cabo do programa. Claro que não escrevo isso para dizer que não há mérito na unificação, pois, da forma como foi redesenhado, ele se tornou muito mais eficiente do que seus componentes isolados, e seu papel no combate à pobreza no Brasil é inquestionável; mas estes são os fatos, e o fato primordial é que a unificação de programas anteriores com um novo rótulo constituiria uma das principais propagandas das gestões petistas.

Isso se torna ainda mais irônico quando consideramos o que Lula dizia sobre esse tipo de iniciativa, poucos meses antes da criação do Bolsa Família. Em abril de 2003, Lula, ao lado de Ciro Gomes, então ministro da Integração Nacional, proferiu o seguinte discurso: “Eu, um dia desses, Ciro, estava em Cabedelo, na Paraíba, e tinha um encontro com os trabalhadores rurais, Manoel Serra [presidente da Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], e um deles falava assim para mim: “Lula, sabe o que está acontecendo aqui, na nossa região? O povo está acostumado a receber muita coisa de favor. Antigamente, quando chovia, o povo logo corria para plantar o seu feijão, o seu milho, a sua macaxeira, porque ele sabia que ia colher, alguns meses depois. E, agora, tem gente que já não quer mais isso porque fica esperando o ‘vale-isso’, o ‘vale-aquilo’, as coisas que o Governo criou para dar para as pessoas.” Acho que isso não contribui com as reformas estruturais que o Brasil precisa ter para que as pessoas possam viver condignamente, às custas do seu trabalho. Eu sempre disse que não há nada mais digno para um homem e para uma mulher do que levantar de manhã, trabalhar e, no final do mês ou no final da colheita, poder comer às custas do seu trabalho, às custas daquilo que produziu, às custas daquilo que plantou. Isso é o que dá dignidade. Isso é o que faz as pessoas andarem de cabeça erguida. Isso é o que faz as pessoas aprenderem a escolher melhor quem é seu candidato a vereador, a prefeito, a deputado, a senador, a governador, a presidente da República. Isso é o que motiva as pessoas a quererem aprender um pouco mais.’’

Como se pode ver, naquele momento, Lula esposava uma crítica que nos anos seguintes seria muito repetida na boca de muitos direitistas críticos do programa: de que tais políticas de transferência de renda seriam ruins por terem como consequência desestimular o trabalho. Entre os críticos ferozes do Bolsa Família, figurava o então deputado Jair Bolsonaro. Em diversas ocasiões, o agora presidente, que permaneceu quase três décadas desfrutando das benesses de ser um congressista, tendo também introduzido três de seus filhos na política, os quais, como ele, nunca tiveram que conviver com a fome, achou razoável considerar que o que chamava “bolsa-farelo” era meramente um instrumento de compra de votos, tendo chegado a sugerir que jovens nordestinas faziam filhos com o intuito de multiplicar o benefício.

A visão tosca que Bolsonaro mantinha do Bolsa Família é típica da parcela tosca da direita que ele tão bem representa. É realmente muito cômodo para alguém que recebia auxílio-moradia da Câmara, mesmo tendo apartamento próprio em Brasília, dizer que o programa “É um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”. Ou ainda: “A Bolsa Família é uma mentira, no Nordeste você não consegue uma pessoa para trabalhar na sua casa, porque se ela for trabalhar, você perde”.

O discurso de Bolsonaro quanto ao programa começou a mudar em 2018, ano eleitoral, quando chegou a prometer instituir um “décimo terceiro” no programa, que acabou de fato sendo pago, mas apenas em 2019. O ponto de inflexão definitivo foi ter visto sua popularidade atingir o ápice nos primeiros meses do pagamento do Auxílio Emergencial. Sempre lidando com polêmicas e ataques às instituições, o pagamento do benefício foi, por muito tempo, o que de mais forte ajudou a contrabalancear a crescente rejeição.

No momento em que escrevo este artigo, a aprovação do governo Bolsonaro se encontra em seu patamar mais baixo até então, atingindo apenas 19%, de acordo com a pesquisa Atlas. Se aliarmos isso com o fantasma da inflação, que voltou a assombrar o povo brasileiro — o mercado, conforme as últimas projeções do Boletim Focus, já espera uma inflação de dois dígitos para 2021 — e com a eleição que se avizinha, é fácil entender a disposição do governo e seus aliados, com a cumplicidade do outrora todo poderoso Paulo Guedes, em promover uma mudança de nome do Bolsa Família para chamá-lo de seu, bem como incrementar seu valor durante o ano eleitoral, ainda que ao custo do calote com os precatórios e o desrespeito ao Teto de Gastos.

Vamos recapitular a cronologia exposta, isto é, a novela de vai e vem que revela mais uma semelhança entre o bolsonarismo e o petismo, bem como o cinismo do jogo político brasileiro. Temos que a) Lula, poucos tempo após eleito, mantém um discurso crítico a programas sociais da gestão FHC, pintando-os como desestimuladores do trabalho, b) Lula faz a unificação de tais programas com um novo nome e o petismo passa a vender a ideia de que o partido foi o pioneiro de tal tipo de política e praticando, eleição após eleição, terrorismo eleitoral com a ameaça — irrealista — de que, perdendo o PT as eleições, quem assumisse acabaria bom o Bolsa Família, c) uma parcela tosca da direita, insensível à realidade da miséria no país, passa a adotar o mesmo discurso que Lula adotava em 2003, tratando por “vagabundos” os beneficiários do programa — o então deputado, Jair Bolsonaro, se torna um dos porta-vozes desse discurso, d) em 2018, em disputa eleitoral, Bolsonaro começa a mudar o discurso, tendo um ponto de inflexão definitivo com o Auxílio Emergencial, que lhe foi muito benéfico em termos de popularidade, e) seguindo o exemplo petista, Bolsonaro, pensando na reeleição, decide que quer um programa social para chamar de seu e promove uma “substituição” do Bolsa Família, f) os petistas se indignam pela audácia e acusam Bolsonaro de fazer uso eleitoreiro do Auxílio Brasil, acreditando que só a eles é ilícito explorar eleitoralmente a miséria.

Alguém poderia apontar as “mudanças de opinião” de Lula e Bolsonaro como positivas ou um sinal de amadurecimento, mas atribuir isso à maturidade já foge do escopo da ingenuidade e entra no da fé; as motivações de cada um estão claras. Não falo isso, é claro, para concordar com o Lula do primeiro semestre de 2003 ou com o deputado Jair Bolsonaro, muito pelo contrário. O fato de que políticas como o Bolsa Família podem ser exploradas eleitoralmente não se constitui em argumento para sua inexistência, tampouco pela sua inclusão como mais uma despesa obrigatória na Constituição, como já tratei em outro artigo. Nesse caso, devemos optar por resguardar aqueles realmente vulneráveis, ao mesmo tempo que denunciamos oportunistas que exploram essa vulnerabilidade.

Programas como o Bolsa Família, como felizmente o leitor já deve estar careca de saber, haja vista que o tema vem sendo amplamente abordado por articulistas liberais ao longo dos anos, têm origens liberais. Em Capitalismo e Liberdade, Milton Friedman defendeu um modelo de transferência de renda muito similar que chamou de “imposto de renda negativo”. Há que se arguir se ele foi o primeiro a pensar em tal política, mas o fato é que, já em 1962, um dos mais célebres nomes do pensamento liberal contemporâneo defendia isso. Vou além; não consigo lembrar de um único economista liberal de renome no Brasil que não veja o programa com bons olhos. Dentre estes, dois nomes de grande peso atuaram na elaboração do Bolsa Família: Marcos Lisboa e Ricardo Paes de Barros.

O adendo que os liberais costumam fazer é que tais programas, ainda que virtuosos, devem também apresentar as portas de saída, de modo a evitar uma dependência perpétua. Complemento dizendo que as quantias pagas, na perspectiva de quem recebe, são um reforço de renda muito importante, mas não são o suficiente para justificar a narrativa de que geram “desapego ao trabalho”. As verdadeiras “portas de saída”, isto é, a verdadeira integração econômica e consequente autonomia, não estão apenas nos condicionantes, já existentes, mas em reformas estruturais há muito adiadas, ou feitas pela metade. Daí a importância de nos afastarmos de oportunistas que usam a miséria com fins eleitoreiros, em direção aos que verdadeiramente se interessam em garantir, tanto a dignidade, quanto a autonomia do cidadão.

Fontes:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm

https://ferreiramacedo.jusbrasil.com.br/noticias/182559090/quem-criou-o-bolsa-familia-foi-fhc

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/01/1948729-com-imovel-proprio-bolsonaro-ganha-auxilio-moradia-da-camara.shtml

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/bolsa-farelo-e-voto-de-cabresto-as-contradicoes-de-bolsonaro-sobre-o-bolsa-familia/

https://www.agazeta.com.br/es/politica/de-critico-a-defensor-do-bolsa-familia-veja-frases-de-bolsonaro-0820

https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/11/18/vai-ter-13-do-bolsa-familia-ou-auxilio-brasil-este-ano-entenda.htm

https://www.poder360.com.br/poderdata/aprovacao-do-governo-cai-depois-viagens-bolsonaro/

https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-29/aprovacao-a-bolsonaro-cai-para-29-nivel-mais-baixo-desde-o-inicio-do-governo.html

https://mercadopopular.org/filosofia/ricardo-paes-de-barros-o-liberal-contra-a-miseria/

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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