A imprensa não pode ser ameaçada por fiscalizar o governo
O presidente Bolsonaro vem conseguindo reverter parte da impopularidade que o acometeu nos últimos meses, o que fica demonstrado por pesquisas que inclusive apontam para uma provável reeleição. Acredito que é unânime creditar isso significativamente ao auxílio emergencial. Pouco importa aqui se a proposta inicial do governo era um valor de R$200 e que o valor veio a ser aumentado pelo Congresso, afinal, a percepção popular sempre favorecerá quem de fato paga o benefício – nesse caso, o governo federal. Porém, acredito que não apenas o auxílio explica o aumento da popularidade, sendo também um fato amplamente reconhecido que ele está – ou estava – se mantendo em silêncio e longe de polêmicas, para a saúde mental dos brasileiros. Será que finalmente havia começado a escutar os sensatos? Será que resolveu dar ouvidos aos apoiadores menos ideológicos? Não; a meu ver, a cronologia dos fatos demonstra que, indubitavelmente, foi a prisão de Fabrício Queiroz que o silenciou. Infira o que quiser disso, mas o fato é esse.
Apesar disso, também foi Queiroz, ou “aquele que não deve ser nomeado” – um verdadeiro Voldemort no mundo da fantasia bolsonarista -, que despiu seu manto de “moderação” e trouxe à tona o bronco que conhecemos desde sempre, dizendo que tinha “vontade de encher a sua boca de porrada” a um repórter que lhe questionou sobre os depósitos do ex-assessor de Flávio Bolsonaro na conta de sua mulher. Em qualquer país civilizado e em qualquer período presidencial pós-redemocratização, a pergunta seria entendida como razoável; afinal, progressista ou não, é papel da imprensa questionar e fiscalizar o governo – o papel de puxar o saco fica para os blogs e veículos de mídia “alternativa” obscuros. Claro que a reação da parte sensata da população foi no sentido de que é indefensável um presidente da República agir dessa forma, mas com a variável de que há também uma horda de militantes vendo graça e justificando o injustificável.
“Ah, mas a mídia é seletiva, não “persegue” os demais como persegue o presidente”. Quem não vivia em um universo paralelo durante a era petista conhece esse discurso de cor e salteado, só que na boca dos petistas. Para quem não lembra, dou uma ajuda: “Ah, mas a mídia é seletiva, não “persegue” o PSDB como persegue o PT”. Ainda temos a variação do já clássico “Mas e o PT?”, dito originalmente na retórica petista como: “Mas e o PSDB?”. Quem diz que o grosso da mídia foi conivente ou “passou pano” para os escândalos e desmandos petistas, ou vivia num universo paralelo em que, primeiro, os desdobramentos do mensalão e, depois, os da Operação Lava Jato, não eram veiculados ostensivamente – como tinham que ser – por veículos que hoje demonizam, ou está fortemente acometido(a) pelo viés da confirmação. Há uma tendência progressista, inclusive abrindo espaço para maluquices identitárias, em grandes veículos de imprensa? Há sim, não tenho dúvidas; mas também há, cada vez mais, a presença de comentaristas e articulistas conservadores e liberais, fato que não só não é ignorado, como costuma ser amplamente celebrado pela esfera bolsonarista. Tampouco é verdade que não haja jornais com linhas editorias à direita – não falo de blogs obscuros e propagadores de fake news -, do mesmo modo que há à esquerda. Ainda que nada disso fosse verdade – e é –, não haveria justificativa para um presidente da República agir dessa forma.
Porém, a questão de fundo não é apenas essa e, infelizmente, a agressividade de Bolsonaro não só não surpreende, como ninguém ousa dizer “agora passou dos limites”, pois, se para ele há um limite, ainda não sabemos qual é. A principal questão aqui, e de forma viral parte da população a captou e replicou, é que falta uma explicação para os depósitos, totalizados em R$89 mil na conta, de Michelle Bolsonaro. Bolsonaro não era obrigado a responder, claro; mas, primeiro pelo silêncio e segundo pela reação agressiva com o jornalista, demonstra que está longe de estar tranquilo com os desdobramentos do caso Queiroz. Não, não acho que seus apoiadores deveriam de antemão crucificá-lo como corrupto, pois o caso precisa avançar e a presunção de inocência é um valor supremo, mas aqueles que justificam um apoio quase religioso com “ninguém pode chamá-lo de corrupto” deveriam, pela lógica, serem os primeiros a questioná-lo. Claro que para essa turma a corrupção, assim como para os petistas, tem um valor circunstancial. O séquito que já teve um Moro para chamar de seu como um semblante de moralidade do governo agora o transforma em “comunista”, ao mesmo tempo em que com despudor se alinha a tipos como Roberto Jefferson.
O liberalismo é plural, mas sob nenhuma corrente liberal um presidente ameaçar dar uma “porrada” em um repórter que lhe inquiriu sob depósitos suspeitos na conta de sua mulher é defensável. A liberdade de imprensa, bem como a sua existência, é um traço fundamental da ordem democrática, e é uma ferramenta essencial para que os liberais possam fazer aquilo que pela lógica desejam: vigiar o governo. O liberal que pouco caso faz disso e sacrifica princípios atemporais em benefício de associações com personagens políticos temporários, trai a mais básica das coisas. É com esse princípio que ataco o autoritarismo do inquérito das fake news do STF, o alinhamento com ditaduras de esquerda de partidos como PT, PCdoB e PSOL e a truculência com a qual Bolsonaro e seus seguidores tratam a imprensa. Aliás, não se trata apenas de mandar jornalista calar a boca e falar em “dar porrada”; o governo Bolsonaro vem usando a Lei de Segurança Nacional – um entulho autoritário que carece de urgente revisão – indiscriminadamente contra desafetos políticos. De janeiro de 2019 até junho deste ano foram abertos 30 inquéritos, o maior número nos últimos 20 anos de período democrático. Em um ano e meio, o governo abriu mais inquéritos do que Lula abriu em oito (29). Nenhum liberal que se preze acha normal elevar uma charge à condição de terrorismo, por exemplo. É por fraqueza de princípios e por desonestidade que alguns atacam os dois primeiros pontos elencados, mas vivem a passar pano para o último.