O conundrum do dólar

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COLABORADORES

14.11.08

O conundrum do dólar

RODRIGO CONSTANTINO*

 
 

“The typical human inclination is to treat the anomalies as both temporary and reversible. People tend to dismiss the noise as containing no meaningful information.” ___ Mohamed El-Erian

 
 

O termo conundrum ficou conhecido quando o então presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, usou-o para descrever seu estado de perplexidade diante dos fatos da época. O Fed aumentava os juros de curto prazo, mas as taxas de longo prazo não reagiam como o esperado. Quando estamos diante de um paradoxo desses, onde a história não ajuda muito a explicar a situação, a tendência natural, como afirma Mohamed El-Erian em When Markets Collide, costuma ser ignorar a coisa como um ruído qualquer. Muitas vezes a anomalia será mesmo um ruído. Mas outras vezes pode ser uma mudança estrutural importante, que somente depois ficará mais evidente. Ignorar os paradoxos pode ser muito perigoso. E atualmente, um claro conundrum é a reação do dólar frente às medidas do governo americano.

Se alguém dissesse há apenas dois anos atrás tudo o que o governo americano estaria fazendo agora, provavelmente seria levado para um hospício. Ninguém iria acreditar que em tão pouco tempo o governo americano iria aprovar pacote de US$ 700 bilhões, oferecer linhas de crédito de mais de US$ 1 trilhão através do Fed, expandir a base monetária em 25% num único mês, garantir os depósitos de todos os indivíduos sem lastro para tanto, assumir o controle de seguradoras, bancos e empresas de crédito imobiliário, salvar empresas automotivas em dificuldades, e tudo isso com uma dívida que já passou dos US$ 10 trilhões. Se fosse o governo venezuelano, tudo bem. Se fosse até mesmo o governo brasileiro, isso seria bastante crível. Mas o governo americano tomando passos tão largos rumo ao socialismo? Seria impensável. É o que o desespero de uma crise grave pode fazer. E sem dúvida alguma, se alguém por acaso acreditasse que isso tudo aconteceria mesmo, iria prever uma catástrofe para o valor da moeda americana. No entanto, o dólar tem se valorizado em relação às outras moedas. Eis o grande paradoxo atual.

Do seu patamar mínimo, o dólar já se valorizou cerca de 20% em relação à cesta de moedas usada para calcular o índice. E fez isso justamente durante todos esses anúncios de medidas estatizantes! Quem poderia imaginar que esse seria o resultado da política expansionista sem precedentes? Ignorar esse paradoxo como um simples ruído pode ser fatal. Tentar solucionar o quebra-cabeça é fundamental para uma adequada compreensão do que se passa no mundo. Uma das possíveis explicações pode estar na piada dos dois caçadores na floresta. Eles se deparam com um leão enquanto descansam, e um deles rapidamente coloca seu tênis. O outro, perplexo, pergunta se ele acredita que pode correr mais rápido que o leão. O amigo retruca: “Claro que não! Mas eu posso correr mais rápido que você”. Em outras palavras, não podemos julgar o impacto das ações do governo americano ignorando as ações dos demais governos. Como disse o especulador Martin Zweig, algumas vezes perdemos de vista a floresta quando focamos apenas nas árvores.

As recentes medidas do governo americano sem dúvida colocam o futuro do dólar em xeque, mas os Estados Unidos ainda podem ser vistos como um “porto seguro” se comparados com outros países. Para onde os poupadores vão correr? Para a Europa, numa crise ainda mais grave, com uma carga tributária já absurda e uma previdência totalmente falida? A Alemanha já está em recessão, a França está em decadência faz tempo, e a dívida do governo italiano supera o PIB do país. Vão correr para a China, ficando totalmente na mão do PCC e seu poder arbitrário? Para a América Latina ou para a África? Melhor nem responder. Quando olhamos para a floresta, constatamos que os Estados Unidos, com todas as suas imperfeições, ainda conseguem se destacar perante os concorrentes. Há maior “império da lei” na América, e mesmo com a gastança do governo americano, ele ainda parece mais responsável que outros governos, mais perdulários ainda. Em terra de cego, quem tem um olho é rei.

Outra possível explicação para o puzzle do dólar está num dado mais imediato: o grau de alavancagem em dólar fora dos Estados Unidos foi simplesmente absurdo. A aposta contra o dólar foi vencedora por um longo período, e parecia certo que esta tendência iria continuar. O famoso carry trade passou a incluir o dólar também, além do já tradicional iene japonês. Com uma baixa taxa de juros nos Estados Unidos, e todos apostando na mesma direção do dólar, o mundo inteiro tomou dívida na moeda americana para investir em outros mercados. Foi isso que permitiu uma onda incrível de abertura de capital no Brasil, por exemplo, com forte participação de estrangeiros. O dólar chegou a valer apenas R$ 1,60, e perdeu valor contra praticamente todas as moedas emergentes.

Mas quando a crise chegou, forçando um impressionante movimento de reversão dessa alavancagem em dólar, os investidores descobriram como é perigoso ficar exposto ao risco de escassez da moeda no mundo. Todos aqueles que apostaram contra o dólar nesses últimos anos, com o uso de elevada alavancagem, tiveram que correr ao mesmo tempo para comprar a moeda americana e zerar suas apostas. Isso fez com que o dólar experimentasse uma forte valorização contra essas moedas. A liquidação acelerada de dívida em dólar fez com que a moeda se apreciasse, a despeito da expansão monetária realizada pelo Fed. Essa parece uma razoável explicação para o conundrum do dólar atualmente.

No presente momento, vivemos um conflito de forças: de um lado, a pressão deflacionária por causa da recessão causada pela reversão de uma era de crédito fácil e abundante; do outro lado, os governos levando ao limite seus balanços, imprimindo moeda e ofertando crédito para substituir a função dos bancos, afetados duramente pela crise. Qual será o resultado final desta queda de braço? Não sabemos ao certo. Os mercados parecem precificar uma dura recessão à frente, já que a inflação implícita nos títulos do governo americano está abaixo de 1% ao ano para os próximos dez anos. Ou seja, mesmo com essa alucinada impressão de moeda, drástica redução de juros e expansão fiscal do governo, a inflação não parece ser uma séria preocupação ainda. O foco está todo voltado para a queda da atividade econômica. O desemprego já está em 6,5% nos Estados Unidos, provavelmente rumo aos 10%.

Mas não devemos esquecer que é totalmente possível ter recessão e inflação ao mesmo tempo. Chama-se estagflação, e os Estados Unidos mesmo já viveram isso na década de 1970. Trata-se do pior cenário possível, com desemprego em alta e perda de valor da moeda. Ao tentar evitar a todo custo um ajuste necessário, após anos de excessos causados em parte pelo próprio estímulo do governo, o governo pode estar plantando justamente as sementes da estagflação. O conundrum do dólar pode estar ocultando esse risco no momento, pelos motivos citados acima. Mas quando a poeira baixar, os mercados poderão focar no risco inflacionário também, além do problema da recessão. Serão tempos interessantes – e difíceis – os próximos anos. Nem mesmo o ouro tem sido uma boa proteção, talvez pela venda forçada de muitos investidores que precisam fazer caixa de qualquer maneira para honrar seus compromissos. Será que estamos vivendo uma delicada situação, onde se ficar o bicho pega, e se correr o bicho come?

 
 

* Economista, articulista, autor de ‘UMA LUZ NA ESCURIDÃO – as idéias de grandes pensadores da humanidade’

 
 

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Bernardo Santoro

Bernardo Santoro

Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Mestrando em Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política das Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal.

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