Democracia e representação no pensamento liberal (Locke e Tocqueville)
Neste breve ensaio dedicado à teoria liberal de John Locke (1632-1704) e Alexis de Tocqueville (1805-1859), desenvolverei dois itens: em primeiro lugar, a ideia de representação no pensamento dos dois mencionados autores; em segundo lugar, algumas considerações acerca da finalidade do governo.
I – A idéia da representação em Locke e Tocqueville.
Para John Locke (1632-1704), a origem de uma comunidade política ou governo situa-se no acordo feito por várias pessoas, que, sendo livres e independentes por natureza, decidem unir-se em comunidade para viver com segurança, gozar das suas propriedades e estar resguardadas contra quem não faça parte daquela. Qualquer número de homens pode realizar este acordo, sem prejuízo para a liberdade natural dos outros. Em virtude desse pacto é constituído um corpo político, no qual a maioria goza do direito de trabalhar e resolver por todos [cf. Locke, Segundo Tratado sobre o Governo – Ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil, tradução de E. Jaci Monteiro, São Paulo: Abril Cultural, 1973, 1ª. Edição, p. 77]. Convém salientar que Locke entende por comunidade “não uma democracia ou qualquer forma de governo, mas uma comunidade independente que os latinos indicavam com o termo civitas (…)”, [Ob. Cit., p. 91].
Ampliando essas ideias, frisava Locke: “Quando qualquer número de homens, pelo consentimento de cada indivíduo, constitui uma comunidade, tornou, por isso mesmo, essa comunidade um corpo, com o poder de agir como um corpo, o que se dá tão só pela vontade e resolução da maioria (…). E, portanto, vemos que, nas assembleias que têm poderes para agir mediante leis positivas, o ato da maioria considera-se como sendo o ato de todos, e, sem dúvida, decide, como tendo o poder de todos pela lei da natureza e da razão”.
Aqui já há um começo de representação. Efetivamente, é a maioria quem se constitui como porta-voz e representante dos interesses da sociedade. Do pacto mencionado se origina o poder político, definido por Locke como “(…) o que cada homem, tendo no estado de natureza, cedeu às mãos da sociedade e dessa maneira aos governantes, que ela instalou sobre si, com o encargo expresso ou tácito de que seja empregado para o bem e para a preservação da mesma”. [Locke, ob. cit., p. 108].
Segundo Locke, o poder que os indivíduos deram à sociedade não pode jamais retornar a eles enquanto aquela durar, devendo permanecer na comunidade. Caso contrário extinguir-se-ia a sociedade.
Numa sociedade politicamente organizada, é impossível que todos deliberem acerca das leis que hão de ser adotadas, assim como também não podemos todos tomar parte na execução daquelas e na administração da justiça. Por isso é necessário, diz Locke, que os cidadãos se façam representar para a marcha política da sociedade. Como esta originou-se da preocupação por salvaguardar as posses dos indivíduos, aos proprietários incumbe fazer-se representar. O corpo legislativo por eles eleito é o órgão supremo do governo e a ele devem estar submetidos todos os outros. O voto pelo qual é eleito tal corpo é censitário, ou seja, discriminado de acordo com as propriedades dos indivíduos.
A ideia da representação evoluiu na América e ampliou-se. O princípio supremo que norteia a marcha da sociedade é, para os escritores americanos, o autogoverno. Nisto seguem o pensamento de Locke. O autogoverno da sociedade realiza-se pela vontade da maioria, que não se identifica com a sociedade, mas à qual esta deve ser submissa. A sociedade chega ao governo representativo quando, no exercício do autogoverno, torna-se impossível a deliberação de todos os membros, pelo crescimento daquela. É então preciso que os indivíduos se façam representar, pois, caso contrário, a sociedade não poderia existir. Além da razão do tamanho da sociedade, outro fator torna necessário o governo representativo: a própria maldade humana, que conduz os indivíduos a não obedecerem às ordens da sua própria consciência, exigindo a presença de um princípio exterior de ordem. A sociedade, frisa Thomas Paine (1737-1809), é produzida pelas nossas necessidades e o Governo pela nossa maldade” [Thomas Paine, Senso Comum, (tradução de A. Della Nina), São Paulo: Abril Cultural, 1973, 1ª. Edição, pp. 51-52].’’
Segundo Tocqueville, na América foi-se chegando, paulatinamente, à consolidação do governo representativo, em termos mais amplos do que os reconhecidos pelo liberalismo lockeano. Pouco a pouco foi-se evoluindo ali do voto censitário, utilizado durante a época colonial, ao exercício pleno da soberania popular, depois de obtida a independência. Quando escreve, Tocqueville reconhece, entretanto, que o governo representativo não exclui as formas diretas de participação do povo. A representação da maioria se exerce nos negócios do Estado; porém, no nível das comunas (base dos municípios ou condados), o povo delibera diretamente. Contudo, os representantes do povo devem respeitar as orientações traçadas pela opinião popular, tendo de a ele prestar contas de sua tarefa sem que por isso deixem de gozar de liberdade no exercício das suas funções. Os autores americanos e o mesmo Tocqueville salientam que na América houve, pela primeira vez, a experiência da democracia representativa, que buscava o pleno exercício da soberania popular.
A ideia da democracia representativa consolidou-se, para os liberais americanos, em torno à de República, na qual se destacam dois princípios: a consagração do princípio da maioria, ou seja, de que o poder da sociedade se expressa através da vontade majoritária, sem ter em conta privilégios de castas ou de classes, e a ideia de que todo poder político é responsável perante o povo ou, em outros termos, de que este é o tribunal que julga a autenticidade dos poderes constituídos, com autoridade para renovar seus representantes quando faltarem à missão que lhes foi confiada. O governo republicano, escreve James Madison (1750-1836), “é aquele em que todos os poderes procedem direta ou indiretamente do povo e cujos administradores não gozam senão de poder temporário, a arbítrio do povo ou quando bem se portarem. E é da essência que não uma só classe favorecida, mas que a maioria da sociedade tenha parte em tal governo (…). É bastante para que tal governo exista, que os administradores do poder sejam designados direta ou indiretamente pelo povo; mas, sem esta condição, sine qua non, qualquer governo popular que se organize nos Estados Unidos, embora bem-organizado e bem administrado, perderá infalivelmente todo o caráter republicano” (o grifo é nosso) [James Madison, “Conformidade do plano proposto com os princípios republicanos”, capítulo XXXIX de O Federalista. São Paulo: Abril Cultural, 1973, 1ª. Edição].
Tocqueville ilustra assim a ideia de República para os anglo-americanos: “O que se entende por república, nos Estados Unidos, é a ação lenta e tranquila da sociedade sobre si mesma. É um governo conciliador, em que as resoluções amadurecem longamente, discutem-se com lentidão e executam-se com maturidade. O que se chama república, nos Estados Unidos, é o reino tranquilo da mesma maioria (…)” [A Democracia na América. Tradução de J. A. G. Albuquerque, São Paulo, Abril Cultural, 1973, pp. 266-267].
Algumas características que acompanham as duas notas essenciais da ideia de República que assinalávamos atrás, são a ampliação da ideia de representação, que já não se restringe aos proprietários, mas que se deve estender também às pessoas; o reconhecimento de um único tipo de aristocracia: a fundada na virtude e no talento; a convicção de que o regime republicano está acima das sociedades tribais e dos governos de força, porque nele os homens gozam, no maior grau possível, da liberdade e da felicidade.
Como características de tipo negativo que seguem à ideia de República, podemos assinalar duas: o individualismo, que se origina da quebra da ordem social aristocrática, causada pela democracia, e que é definido por Tocqueville como um “sentimento refletido e pacífico, que predispõe cada cidadão a isolar-se da massa dos seus semelhantes e a retirar-se à parte, com a família e os amigos, de tal modo que, após criar dessa maneira uma sociedade para uso próprio, abandona prazerosamente a sociedade a si mesma”. A outra é o risco de anarquia popular considerada por Tocqueville como um “mal menor” frente ao perigo da tirania e que é aceito, na forma mitigada das desordens populares, como consequência da democracia.
Tocqueville salienta que a concepção americana da República estava profundamente enraizada não só na visão política, como também na filosofia mesma e nos hábitos dos anglo-americanos. A respeito frisa: “Do Maine à Flórida, do Missouri ao Oceano Atlântico acredita-se que a fonte de todo poder legítimo é o povo. Tem-se a mesma ideia da liberdade e da igualdade; professam-se as mesmas opiniões quanto à imprensa, ao direito de associação, ao júri, às responsabilidades dos agentes do poder” [Tocqueville, A democracia na América, ob. Cit. P. 262].
Essa visão tinha como pano de fundo uma peculiar concepção filosófica acerca do homem e da sua missão no mundo, concepção que animava todos os aspectos da vida americana. Os traços principais dessa filosofia são os seguintes: tanto a autoridade moral como o poder político baseiam-se, respectivamente, na razão universal dos cidadãos. A Procura da verdade não é privilégio de uns poucos; depende do bom senso de todos. Daí a importância da opinião pública e da livre discussão, campo no qual se destaca a imprensa. Um conhecimento razoável dos próprios interesses basta para guiar o homem rumo ao justo e ao honesto pois todos os seres humanos receberam ao nascer a faculdade de se autogovernar. Como resultado, ninguém tem direito de forçar os demais na procura da felicidade.
O homem é perfectível por natureza. No caminho da perfeição humana, a difusão da cultura é um meio imprescindível; pelo contrário, a ignorância sempre produz efeitos desastrosos. Se o homem é perfectível por natureza, nada do que diga relação a ele é estável para sempre; por isso a sociedade e a humanidade estão em contínuo progresso. Tal visão se complementa com um profundo sentido religioso, inspirado na teologia protestante. Assim, o espírito de liberdade, que brota da concepção filosófica antes mencionada, se inter-relaciona com o espírito de religião. Nas primeiras manifestações da vida política americana encontramos indissoluvelmente unidos estes dois princípios, como por exemplo no documento assinado pelos colonos fundadores da Nova Inglaterra em 1620.
Tocqueville salienta assim a interrelação entre espírito de liberdade e espírito religioso na mentalidade americana: “Longe de se prejudicarem, essas duas tendências, aparentemente tão opostas, caminham de acordo e parecem apoiar-se mutuamente. A religião vê na liberdade civil nobre exercício das faculdades do homem e, no mundo político, terreno livre deixado pelo Criador aos esforços da inteligência. Livre e poderosa em sua esfera, satisfeita de seu lugar, sabe que seu império é mais bem estabelecido quando reina por suas próprias forças e domina sem apoio os corações. A liberdade vê na religião a companheira de lutas e triunfos, o berço de sua infância, a fonte divina de seus próprios direitos. Considera a religião como salvaguarda dos costumes; os costumes como garantia das leis e penhor de sua própria durabilidade” [Tocqueville, A democracia na América, ob. cit., p. 197].
Terminemos este item destacando um aspecto fundamental para Locke e Tocqueville: o Legislativo, órgão da representação, é o supremo poder político. O Legislativo é, para Locke, o poder supremo da sociedade, pois sua aparição coincide com o ato de criação daquela por parte dos indivíduos que decidem unir-se em comunidade, e sua dissolução marca a sua própria desaparição. Ao consistir a essência da sociedade em ter uma só vontade e ao ser depositada esta pela maioria no Legislativo, este poder se converte no centro vital da sociedade constituída. A respeito, frisa Locke: “é no legislativo que se unem e combinam os membros de uma comunidade para formar corpo vivo e coerente. Este é a alma que dá forma, vida e unidade à comunidade; daí resulta, para os vários membros, a influência mútua, a simpatia e conexão; e, por conseguinte, quando se interrompe ou dissolve o legislativo, seguem-se lhe dissolução e morte; porquanto, consistindo a essência e união da sociedade em ter uma só vontade, o legislativo, quando uma vez instituído pela maioria, fica com a declaração e, por assim dizer, com a conservação dessa vontade. A constituição do legislativo é o primeiro ato fundamental da sociedade, por meio do qual se provê à continuação da união de todos sob a direção de pessoas e vínculos de leis estabelecidas pelos que estão autorizados a fazê-las, mediante o conhecimento e a designação por parte do povo, sem que nenhum homem ou grupo de homens pode ter autoridade para fazer leis que obriguem todos os restantes (…).” [Locke, Segundo Tratado sobre o Governo, ob. cit., pp. 124-125; cf. idem, pp. 91, 93, 99].
A maioria, na sociedade, deposita a sua única vontade no legislativo com uma finalidade muito clara; assegurar o gozo da propriedade e da liberdade dos indivíduos. O meio para conseguir isto são as leis e é ao legislativo, nomeado pelo público, a quem compete exclusivamente esta função. Qualquer determinação proveniente de outra fonte e que não tenha saído, consequentemente, do seio do povo, carece do caráter de lei e não pode coagir ninguém na sociedade. Apesar disso, quando o Legislativo deixa de cumprir a missão que lhe foi encomendada, o povo pode tirar o poder de legislar aos representantes que tinha elegido e entregá-lo a outros, para preservar suas propriedades e a sua liberdade, bens aos quais homem nenhum poderá jamais renunciar. Este ato de preservação recebe de Locke o nome de bem público.
Sendo o Legislativo o poder supremo da sociedade por encarnar a vontade da maioria, os outros poderes existentes devem-lhe estar subordinados, de tal forma que perdem a autoridade quando ultrapassam o limite. O poder de convocar e dispensar o legislativo, concedido ao executivo, não lhe confere superioridade em hipótese alguma, pois constitui um encargo fiduciário justamente para que o poder supremo funcione. O filósofo inglês sintetiza assim a supremacia do legislativo: “Em todos os casos enquanto subsiste o governo, o legislativo é o poder supremo; o que deve dar leis a outrem deve necessariamente ser-lhe superior; e desde que o legislativo não é de outra qualquer maneira senão pelo direito que tem de fazer leis para todas as partes e para qualquer membro da sociedade, prescrevendo-lhes regras às ações, e concebendo poder de execução quando as transgredem, o legislativo necessariamente terá de ser supremo, e todos os outros poderes e membros ou partes quaisquer da sociedade deverão ser dele derivados ou a ele subordinados” [John Locke, Segundo tratado sobre o governo, ob. cit., p. 99].
Para os liberais americanos, segundo Tocqueville, o poder supremo da sociedade era também o Legislativo. O motivo dessa supremacia baseia-se no fato de ser este poder a encarnação da opinião da maioria e, portanto, da razão universal, que, como anotamos anteriormente, é o fundamento da autoridade moral. Esta supremacia do legislativo ocorre tanto em nível local, como estadual; por exemplo, diz Tocqueville: “(…) Na América, o poder legislativo de cada Estado não tem diante dele nenhum poder capaz de resistir-lhe. Mal poderia detê-lo em sua vida, nem privilégios, nem mesmo a autoridade da razão, pois representa a maioria que se pretende o único órgão da razão. Não tem, portanto, outros limites, em sua ação, que não sua própria vontade (…)” [Tocqueville, A Democracia na América, ob. cit., p. 204].
Nos Estados Unidos, como na Inglaterra, a origem do poder legislativo é o povo, com a diferença de que nos Estados Unidos ampliou-se a base popular representada. Na democracia americana consagrou-se o princípio da dupla representação, ou seja, não só das propriedades, como também das pessoas. É importante lembrar, ainda, a responsabilidade à qual se sujeitavam os representantes eleitos pelo povo, o qual participava indiretamente da elaboração e da execução das leis, através da eleição dos representantes para o Congresso e da eleição do chefe do executivo, respectivamente. Eis a forma em que Tocqueville ilustra esse exercício da soberania popular: “Há países em que um poder, de certo modo exterior ao corpo civil, age sobre ele e o força a mover-se em certa via. Há outros em que a força se encontra dividida, situando-se, ao mesmo tempo, na sociedade e fora dela. Nada se vê de semelhante nos Estados Unidos; a sociedade age por si só e sobre si mesma. Só existe poder em seu seio; nem se encontra ninguém que ouse conceder, e sobretudo exprimir, a ideia de procurá-lo alhures. O povo participa da composição das leis, através da escolha dos legisladores, e de sua aplicação, pela escolha dos agentes do Poder Executivo; pode-se dizer que governa diretamente, tanto é fraca e restrita a parte que toca à administração, tanto esta se ressente de sua origem popular e obedece ao poder de que emana. É a causa e o fim de todas as coisas; tudo dele sai e nele se absorve” [Tocqueville, A Democracia na América. Ob. cit., p. 196].
Todos os poderes da sociedade devem, pois, se subordinar à soberania popular. Ela se encarna primariamente na Constituição, considerada a máxima representação da vontade do povo, devendo guiar a tarefa dos legisladores. Pode ser modificada pela vontade popular, segundo fórmulas estabelecidas e em casos previstos de antemão. Por isso Tocqueville escreve que, “Na América, a Constituição pode, portanto, variar; mas, enquanto existe, é a origem de todos os poderes. A força predominante reside nela só (…)”.
O poder judiciário se submete à vontade popular através da Constituição, pois os norte-americanos reconheciam aos juízes o direito de fundamentar os vereditos nela, mais do que nas leis. Davam-lhes, assim, a oportunidade de não aplicar as que lhes parecessem inconstitucionais. Trata-se, pois, não de um caso de independência absoluta de um poder, mas de dependência direta da soberania popular, com a possibilidade de defendê-la nas eventuais transgressões dos outros dois poderes. Quanto ao executivo, ele deve respeitar as orientações do legislativo. Em caso de atrito, “…) só poderia haver luta desigual, entre o presidente e o legislativo, posto que, perseverando em seus fins, ele pode sempre vencer a resistência que se lhe opõe (…)”.
A condição de dependência do executivo com relação ao legislativo, ficou bem clara nas seguintes palavras de Tocqueville: “Na América, o presidente exerce grande influência sobre os negócios do Estado, mas não os conduz; o poder preponderante reside no conjunto da representação nacional (…). Os legisladores americanos, aproveitando-se dessas circunstâncias, não tiveram dificuldades em estabelecer um poder executivo fraco e dependente; tendo—o criado, puderam, sem perigo, torná-lo eletivo” [Tocqueville, A Democracia na América, ob. cit., p. 202].
II – A finalidade do governo, segundo Locke e Tocqueville.
Para John Locke é claro que a principal finalidade do governo consiste na preservação e melhoramento dos “bens civis”, que considerados no seu conjunto dentro da comunidade civil, caracterizam-se também como o “bem público” da sociedade. Detenhamo-nos um pouco, a fim de analisar o que o filósofo inglês entende pelos bens civis.
Basicamente, esses bens são constituídos pela propriedade. É necessário esclarecer este conceito para não conferir um sentido restrito demais à ideia de “bens civis”. Segundo Locke, os homens estão submetidos na terra à lei da natureza, que se expressa através da razão individual e que comanda a preservação da vida humana. Tal lei é expressão da vontade divina, devendo ser acatada por todos os homens, em qualquer estado em que se encontrem. Justamente para cumpri-la é que os homens trabalham antes de entrar em sociedade. Por meio do trabalho, realizado pelo homem através do seu corpo – considerado por Locke como a primeira propriedade humana -, cada indivíduo apropria-se, no estado de natureza, das coisas necessárias para a subsistência. O trabalho, pois, estabelece uma relação vital entre as pessoas e as coisas, sendo o meio pelo qual se exerce o direito à propriedade. Porém, como a expressão das coisas – em outras palavras, a base real em que se encontram – é a terra, a propriedade dela inclui tudo quanto o homem pode possuir; passa a ser, por esta razão, aquilo que pode ser denominado de a propriedade básica. Sendo lei da natureza a subsistência do indivíduo e estando ela em relação direta com a apropriação da terra, justifica-se a propriedade privada daquela como condição básica para a vida do homem. É lógico que, na evolução da história, têm aparecido outros meios que expressam a propriedade humana, como o dinheiro, por exemplo. Mas eles dizem relação à propriedade fundamental, a da terra. Quando os homens decidem entrar em sociedade, fazem-no para cumprir mais perfeitamente a lei da natureza, a lei da sua própria subsistência através do trabalho, que lhes permite apropriar-se do necessário para o sustento. É evidente, por isso, que a finalidade primeira da entrada do homem em sociedade é garantir o gozo pacífico da propriedade.
Os “bens civis” são, consequentemente, as propriedades dos que ingressaram em sociedade. Apesar de aqueles se expressarem fundamentalmente na posse de terras, não se limitam a ela. Como já vimos, essas posses estão em relação essencial com a pessoa do indivíduo, com o seu trabalho, com o seu corpo, com a sua liberdade. Por isso, quando Locke fala em “bens civis”, refere-se a todo o conjunto. Os homens entram em sociedade por um pacto livre, para garantir a sua propriedade, ou seja, a totalidade dos bens que se relacionam com a preservação da sua vida: liberdade, trabalho, posses etc. Mas como entre eles há um que é a expressão objetiva mais completa do que é a propriedade humana, ele deve ser privilegiado na organização da sociedade. Desta forma, apesar de todos poderem se beneficiar com as leis da propriedade, é aos proprietários de terras a quem compete de perto a sua constituição, ao mesmo tempo que é a propriedade territorial um vínculo indissolúvel do indivíduo com a sociedade. Em resumo, segundo Locke, a finalidade essencial da entrada dos homens em sociedade, como também da constituição do governo, deve ser garantir aos indivíduos o desfrute pacífico da vida, liberdades e propriedades.
A filosofia política norte-americana reproduz, em linhas essenciais, o pensamento liberal de Locke, no referente à finalidade que atribui ao governo civil. Que a sociedade política tem como finalidade imediata o governo dos que nela se amparam, a fim de trabalhar e prover às suas necessidades de subsistência e de enriquecimento, ficou claro no primeiro documento assinado pelos colonos da Nova Inglaterra. A organização dessa colônia realizou-se em torno à preocupação de garantir a propriedade dos seus membros e favorecer o seu livre trabalho e enriquecimento. Com tal fim, as leis da Nova Inglaterra faziam girar toda a vida da colônia ao redor da individualidade comunal, ao mesmo tempo que dentro dela garantiam plenamente a intervenção do povo nos negócios públicos, como também estabeleciam a votação livre das leis tributárias, a responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade individual e o julgamento pelo tribunal do júri.
Apesar de ainda estar submetida à Metrópole, a vida e a legislação internas da Colônia são perfeitamente autônomas, segundo Tocqueville. O próprio Alexander Hamilton (1755-1804), de outro lado, expressava-se em termos que lembram a filosofia de Locke: “O Governo não foi menos instituído para defender a pessoa dos cidadãos do que para defender a sua propriedade; e, portanto, uma e outra coisa devem igualmente ser representadas por aqueles que exercem as funções de governo (…)” [O Federalista, p.146]. A única diferença que poderíamos constatar aqui seria em relação a um mais amplo sentido que os liberais americanos davam ao conceito de representação, como já foi anotado. [Cf. Idem, p. 104].
Apesar desta coincidência – quanto à ideia genérica de representação – com o pensamento liberal inglês, os norte-americanos desenvolvem um aspecto novo: a democracia. Efetivamente, este conceito vem ampliar o alcance das ideias de Locke sobre a finalidade do governo civil, permanecendo inalterada, porém, a essência. Embora o pensador inglês reconheça a necessidade de o governo responder pelo bem público, vinha, entretanto, na concepção política da sociedade e na sua organização, privilegiar os donos de terras através do voto censitário, como observamos na Constituição redigida por Locke para a Colônia de Carolina do Norte [Cf. Locke, Constitutions fondamentales de la Caroline (Introd. Trad et notes par B. Gilson), Paris: Vrin, 1967].
A ideia de democracia penetrou profundamente na mentalidade e nas instituições dos Estados Unidos desde a sua formação, sendo, segundo Tocqueville, o aspecto à luz do qual se deve compreender o sistema representativo americano. Assim, a finalidade do governo deve-se traduzir aqui em termos democráticos. Podemos salientar dois pontos em que insiste a filosofia política americana: para ser autenticamente democrático, o governo tem de assegurar o bem-estar material de todos os cidadãos, por uma parte e, por outra, dar a todos uma educação que os esclareça acerca do seu papel dentro da democracia representativa. Analisemos brevemente esses aspectos.
Segundo Tocqueville, “na América, a paixão pelo bem-estar material nem sempre é exclusiva, mas é geral; se nem todos a sentem da mesma maneira, pelo menos todos a sentem. A preocupação com a satisfação das necessidades do corpo e com as pequenas comodidades da vida ocupa todos os espíritos. (…) O amor pelo bem-estar tornou-se o gosto nacional dominante; a grande corrente das paixões humanas vai nessa direção e tudo arrasta em seu curso” [A Democracia na América, ob. cit., p. 291-293].
Há, conforme Tocqueville, uma curiosa inter-relação entre a promoção do bem-estar material dos cidadãos, como finalidade do governo, e a estabilidade deste. Efetivamente, enquanto é dever seu promover ao máximo o bem-estar de todos os cidadãos, o conforto é, ao mesmo tempo, fator de ordem e de tranquilidade pública. Essa interrelação acontece também entre o bem-estar, a religiosidade e a moralidade. Eis como Tocqueville se explica a respeito: “Essa inclinação particular (…) pelos prazeres materiais não se opõe, absolutamente, à ordem; pelo contrário, tem necessidade de ordem para ser satisfeita. Também não é inimiga da regularidade dos costumes; pois os bons costumes são úteis à tranquilidade pública, e favorecem a indústria. Com frequência chega mesmo a combinar-se com uma espécie de moralidade religiosa; quer-se viver o melhor possível neste mundo, sem perder as chances do outro” [A democracia na América, ob. Cit., p. 293].
Assim como a promoção do bem-estar material é a finalidade essencial do governo democrático, também o é a educação de todos os cidadãos, a fim de que aprendam a fazer uso de sua liberdade, para participar acertadamente nos negócios públicos. São muitas as alusões a este tema nos escritos de Thomas Jefferson (1743-1826), salientando a necessidade que tem o governo de reconhecer e estimular a iniciativa dos cidadãos, para que se formem no exercício da liberdade. O ilustre estadista é contrário, especialmente, a uma repressão indiscriminada que venha amedrontar as manifestações populares, em detrimento da sã mobilidade que deve caracterizar ao jogo democrático [cf. Jefferson, Escritos políticos. (Trad. De L. G. de Carvalho), São Paulo: Abril Cultural, 1973]. A miséria e a ignorância são, junto com a opressão, os piores males que podem afetar a uma sociedade.
Bibliografia
JEFFERSON, Thomas. Escritos Políticos.(Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho; seleção de textos a cargo de Francisco Weffort). 1ª. Edição em português. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
LOCKE, John. Constitutions fondamentales de la Caroline. (Introd. Tradução ao francês e Notas de B. Gilson), Paris: Vrin, 1967.
LOCKE, John, Segundo Tratado sobre o Governo – Ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. (Tradução de E. Jaci Monteiro), 1ª. Edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
MADISON, James. “Conformidade do plano proposto com os princípios republicanos”, in: HAMILTON, Alexander / JAMES, Madison e John JAY. O Federalista. (Tradução de A. Della Nina; seleção de textos a cargo de Francisco Weffort). 1ª. Edição em português. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
PAINE, Thomas. Senso Comum. 1ª. Edição. (Tradução de A. Della Nina). São Paulo: Abril Cultural, 1973.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. 1ª. Edição. (Tradução de J. A. G. Albuquerque. São Paulo: Abril Cultural, 1973.



