A “caducidade” da autonomia parlamentar

Print Friendly, PDF & Email

A lei, de alguma forma, já caducou. É de 1950, feita para regulamentar o impeachment no processo da Constituição de 1946.” Assim pontificou Gilmar Mendes no dia seguinte à decisão mediante a qual o togado, atendendo a pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros e do partido Solidariedade, havia determinado a suspensão liminar de trechos da Lei de Impeachment vigente (Lei no. 1079/50). Conhecido por suas incontinências funcional e verbal, Gilmar legislou em duas ocasiões consecutivas: não só cancelou dispositivos sobre a legitimidade ativa e o quórum exigidos para a remoção de juízes supremos como ainda se arrogou a ditar a suposta caducidade da lei em questão, pois promulgada sob a égide de uma ordem constitucional pretérita. Humilhação em dobro para um senado que, por canetada monocrática de um juiz, se viu privado das suas atribuições constitucionais de aprovar e revogar normas jurídicas e de processar e julgar pedidos de impeachment contra togados. Como reagiram nossos parlamentares?

Em momento algum se viu resposta à altura de tamanha afronta institucional. Embora esvaziados, os senadores não cogitaram da adoção de providências práticas para garantia da exclusividade de sua competência legislativa, como, por exemplo, a edição de decreto legislativo destinado a anular o despacho de Gilmar. Em vez de defender a sua prerrogativa de definir as pessoas legitimadas à formulação de pedidos de impeachment e o número de senadores necessários à tramitação do processo, o presidente Alcolumbre, representando seus pares, recolocou em pauta um projeto de lei sobre a matéria. Além de admissão explícita da tese de Gilmar sobre a pretensa caducidade da lei de 1950, a postura de Alcolumbre refletiu a prontidão da casa legislativa em trocar a legitimidade universal prevista na norma “caduca” por um dispositivo novinho em folha, que venha a concentrar nas mãos da PGR, da OAB, de partidos políticos e de indivíduos ancorados em 1,5 milhão de assinaturas o poder de pleitear a remoção de supremos togados.

A conduta do senado agradou em cheio ao decano da corte, que enxergou no advento de uma nova lei a perspectiva concreta de realização dos seus anseios. Não à toa, Gilmar, acatando pedido de Alcolumbre, suspendeu sua própria liminar e, no despacho, fez questão de frisar que, “no âmbito do Parlamento, a questão relativa à legitimidade para a apresentação de denúncia por prática de crime de responsabilidade por membros do Poder Judiciário ganhou, após a decisão que proferi, contornos próprios, merecendo exame cuidadoso e aprofundado pelos membros do Congresso Nacional.”

Em português bem claro, o togado reconheceu ter dado seus “contornos” ao tema e ainda empregou o verbo “merecer” como indicativo inequívoco de que, sob sua ótica, são juízes – e não legisladores – os figurões responsáveis pela escolha dos assuntos a serem ou não legislados. Longe de ter recuado em sua liminar autoritária, Gilmar apenas saiu de cena para manobrar a tramitação, junto a seus vassalos do Senado, de um projeto de sua conveniência.

Na Câmara, a subserviência a togados foi manifestada pela aprovação do PL da Dosimetria, autêntico “cavalo de Troia” inserido no espaço que caberia à tão necessária anistia. Deputados chancelaram um projeto de lei que não legisla, em uma inocuidade admitida pela exposição de motivos do relator Paulinho da Força, segundo o qual, “com base nas leis que aprovamos, o Judiciário posteriormente fará a dosimetria adequada”. Ora, sabendo-se que cabe tão somente a magistrados a fixação de penas em concreto, de que serve uma norma fundamentada em tamanha obviedade?

Contrariamente ao alardeado por muitos, o projeto não resultará em solturas automáticas de presos políticos, pois qualquer “benesse” nele contemplada dependerá da atuação de advogados e de novos juízos a serem formulados pelo próprio STF no âmbito de processos de revisão criminal. Aliás, dando margem a uma insegurança jurídica ainda maior que a atual, o texto adiciona um critério subjetivo aos percentuais objetivos previstos na Lei de Execução Penal e condiciona a progressão de regime de cumprimento da pena a um juízo sobre a “indicação de mérito” para tanto. A escolha dos condenados “indicados” ou não a deixarem o cárcere para o regime semiaberto caberá aos togados responsáveis pelas sentenças inconstitucionais e ilegais. Abre-se assim a possibilidade perversa de novas triagens ideológicas para a concessão do benefício, bem aos moldes do que Eduardo Tagliaferro provou ter ocorrido durante a gestão Moraes à frente do TSE.

Quanto à elogiada proibição de somatório de penas pelos crimes de tentativa de abolição do estado e tentativa de deposição de governo, o projeto torna a apostar em uma obviedade jurídica, pois qualquer tentativa de golpe (ao governo eleito) contém em seu bojo uma forma de atentado ao estado de direito, inexistindo, portanto, concurso material entre as condutas. No trecho referente à redução das penas por crimes inflamados por multidões (multitudinários), o texto também chove no molhado ao copiar o artigo 65 do Código Penal vigente que prevê a influência de turba como circunstância invariavelmente atenuante.

Ainda merece destaque a omissão proposital do projeto sobre os efeitos civis e administrativos das condenações penais. No silêncio do texto, pessoas comuns continuarão carregando nas costas o peso de antecedentes criminais gerados fora do devido processo legal, militares poderão perder suas patentes pelo tal “golpe de papel” e todos seguirão reduzidos à insolvência perpétua em virtude das condenações milionárias impostas por Moraes e seus pares.

No lugar da anistia e da revogação dos crimes tipificados pelos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, os deputados “brindaram” os milhares de perseguidos políticos e suas famílias com um projeto que lança ao colo de togados autoritários as deliberações sobre as consequências de seus próprios abusos. Em vez de exercerem seu poder-dever de legislar, os mandatários tomaram uma providência qualquer, “para brasileiro ver”, desprovida de efeitos práticos para os prejudicados pelo regime, mas emanada da vontade de togados como Moraes e Gilmar Mendes, conforme amplamente noticiado.

No âmbito da propriedade industrial, o INPI pode declarar a extinção de uma marca por caducidade se, na data do requerimento suscitado por terceiro interessado, o titular não comprovar o uso do símbolo nos cinco anos subsequentes à concessão do registro. Assim como o proprietário da marca se sujeita à perda de seu direito pelo não-uso do sinal, nosso parlamento tem visto sua prerrogativa institucional “caducar” em virtude da inércia em exercer sua atribuição legislativa com autonomia.

No entanto, contrariamente à parte dona da marca – que pode até se dar ao luxo de deixar perecer seu registro por caducidade! -, congressistas não podem renunciar às prerrogativas de sua legislatura, pois não a exercem em nome próprio, mas dos eleitores que lhes conferiram mandatos. Ademais, se, na esfera privada, a caducidade acarreta efeitos nefastos tão somente ao indivíduo inerte, na vida pública, o esvaziamento do congresso prejudica uma sociedade inteira, tornando o processo legislativo mais um simulacro para a satisfação dos caprichos de togados.

A “caducidade” da autonomia legislativa enterra o princípio basilar da separação de poderes e deixa a coletividade à mercê de um judiciário cuja contenção passa a ser inviável. É vício que não pode seguir sendo tolerado ou relativizado sob o discurso parlamentar de que tal ou qual projeto de lei teria sido “o possível, dentro do atual cenário”. Sim, a política é a arte dos consensos possíveis, mas negociações políticas não podem continuar envolvendo atores togados sob pena de oficialização da mixórdia institucional. Mais que nunca, carece coragem para a reconstrução do estado de direito perdido!

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Judiciário em Foco

Judiciário em Foco

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

Deixe uma resposta

Pular para o conteúdo