O Estado não faz o básico, mas pretende fazer tudo

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Liberais, em que pese estarem de acordo com alguns princípios fundamentais (e olhe lá), não são uma massa homogênea, razão pela qual podemos falar em “liberalismos”, no plural mesmo. Contudo, em que pesem possíveis discordâncias sobre funções e até mesmo o tamanho do governo (há liberais que veem como legítima a atuação estatal na educação e saúde, outros que não; há liberais que defendem a existência do Banco Central, outros que não etc.), uma coisa é certa: sejam liberais sociais ou minarquistas ferrenhos, contratualistas ou críticos da tese do contrato social, todos hão de concordar em que a função primeira (para alguns única) do Estado é a garantia de nossa segurança, tanto na defesa contra inimigos externos, quanto contra os violadores da vida, liberdade e propriedade internos. Salvo nossos colegas libertários, que não veem nem isso como legítimo, liberais defendem (alguns a contragosto) a existência do Estado para pelo menos isso: estabelecer um império da lei que sirva para resguardar nossas vidas, propriedades e liberdades.

A partir desse objetivo inicial, fundador, o fato é que muitos Estados modernos se foram agigantando, autodelegando-se mais e mais funções. Esse agigantamento só pode ser contraproducente e deletério para a liberdade, por razões diversas, mas que incluem a incapacidade de fazer essas múltiplas coisas bem feitas. Se, por princípio, já é inadmissível a onipresença do Estado em todas as searas da vida humana e produtiva, a lógica nos leva à conclusão de que uma instituição que se mostra incapaz de prover com qualidade aquilo que é sua raison d’être jamais deveria se imiscuir naquilo que não lhe diz respeito. O Estado brasileiro, mesmo não sendo o único da espécie, é um monumento à contradição inerente ao Estado gigante e ineficiente.

O Brasil possui a 14ª maior taxa de homicídios a cada 100 mil habitantes no mundo (dados de 2021). No mesmo período, contrapomos uma taxa de 21,26 homicídios por 100 mil habitantes contra uma média global de 5,8. Em 2024, pouca coisa mudou, pois, apesar de uma leve queda, nossa taxa de homicídios ainda foi de 20,8. No momento em que escrevo este artigo, o tema “segurança pública” está na ordem do dia, e imagino que ainda estará durante as eleições do ano que vem. Para se ter uma ideia, com base em dados do Conselho Nacional de Justiça, há cerca de 1.700 territórios, apenas no estado do Rio de Janeiro, sob o controle do tráfico ou da milícia. Já outro estudo de 2023, elaborado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF), aponta que um quinto da região metropolitana do Rio de Janeiro é controlada diretamente pelo crime organizado. Já a nível de Brasil, um estudo intitulado “Governança Criminal na América Latina: Prevalência e Correlatos”, publicado na Cambridge University Press, apontou que entre 50,6 e 61,6 milhões de brasileiros, perfazendo 26% da população, encontram-se submetidos à “governança criminal”, isto é, são compelidos a viver conforme regras de organizações criminosas que controlam o território onde vivem.

Bem se vê que o Estado brasileiro tem falhado miseravelmente naquilo que é a razão precípua de sua existência. Não obstante, esse mesmo Estado, personificado por seus agentes, pretende que não só siga obeso como se encontra, mas que seja inflado cada vez mais com as atribuições mais estapafúrdias possíveis. Ilustremos o caso do Rio de Janeiro, citado no parágrafo anterior; mesmo com sucessivas administrações se mostrando incapazes de fazer frente ao crime organizado, tanto o governo estadual quanto a prefeitura da capital acharam por bem, por já dois anos consecutivos, torrar milhões dos contribuintes para promover shows de cantoras pop (Madonna em 2024 e Lady Gaga em 2025). O Estado falha em sua função primeira de prover segurança, mas se arroga a função de dar entretenimento (a velha e boa política de pão e circo) como se isso fosse atribuição estatal ou algo moralmente apropriado.

Claro que, em um país tão vasto quanto o Brasil, a violência se manifesta de forma heterogênea, havendo estados mais ou menos violentos. Também é verdade que, como tem que ser, grande parte da responsabilidade quanto à segurança pública é dos estados e não do governo federal. A discrepância de números entre diferentes entes federativos, contudo, só reforça a incompetência estatal. Ora, se há estados que são exemplo de sucesso no combate ao crime (dentro dos padrões brasileiros), é porque é possível combatê-lo; onde o oposto ocorre, a incompetência pertence, inelutavelmente, ao Estado como instituição.

Certamente, o país como um todo se beneficiaria de uma melhor comunicação e atuação estratégica entre as polícias estaduais, especialmente com um banco nacional de mandatos em aberto. Isso não significa, contudo, que devemos sacrificar nosso já precário pacto federativo e centralizar a política de segurança pública nas mãos do governo federal, como o governo atual almeja fazer. Se feito, certamente, não apenas não haverá melhora nos estados hoje mais acometidos pela violência, cujas gestões locais poderão lavar as mãos e culpar o governo federal, como isso tenderá a piorar a situação onde, agora, a segurança pública funciona melhor.

Os contumazes defensores do Estado gigante solenemente ignoram essa contradição e fazem de tudo para inflá-lo ainda mais. Ora, o curioso é que parece nãos lhes importar muito que o Estado não chegue nas áreas dominadas pelo crime organizado, onde até a administração de escolas está à mercê das “leis” do crime. Na verdade, há camadas do território nacional funcionando como verdadeiros estados paralelos, onde, por óbvio, não há limitação constitucional aos poderes dos “governantes” (não que a Constituição Federal hoje valha de muita coisa no resto do país). Se tentam inverter o argumento, acusando-nos de anarquistas (leviana mentira) e dizendo que o infortúnio daqueles que vivem sob o jugo do crime é a prova do que aconteceria se nossos clamores fossem atendidos e o Estado fosse reduzido, a lógica nos guia pela via oposta. Não só uma máquina pública inchada como é a brasileira não é capaz de resolver o problema da criminalidade como ela o agrava. Ao se descuidar de sua função clássica mais elementar, tentando fazer uma miríade de coisas que não tem competência para fazer, o Estado, embora grande e poderoso, paradoxalmente, torna-se fraco no atendimento daquilo que é essencial. Como dizia Roberto Campos, queremos um Estado menor, mas forte no cumprimento de suas funções clássicas. O que temos hoje é o oposto: um Estado gigante, mas fraco no atendimento do que há de mais elementar, ao passo que pretende ora fazer tudo, ora se intrometer em tudo; aí sim, quando se trata de nos mandar a conta de sua ineficiência e de violar nossas liberdades, ele é robusto como um herói grego.

Fontes:

https://exame.com/mundo/os-paises-com-maiores-taxas-de-homicidio-segundo-a-onu/

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/veja-ranking-de-cidades-e-estados-mais-violentos-do-brasil/

https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/soberania-rj-crime-controla-1700-territorios/

https://www.tupi.fm/sentinelas/relatorio-aponta-que-crime-organizado-ja-domina-1-700-localidades-no-estado-do-rio/

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/08/22/territorio-do-crime-brasil-tem-26percent-da-populacao-vivendo-sob-regras-de-faccoes-maior-indice-na-america-latina.ghtml

https://www.poder360.com.br/economia/rio-arrecadara-r-102-mi-a-mais-em-impostos-com-show-da-madonna/

https://www.folhamax.com/curiosidades/madonna-recebera-fortuna-por-show-no-rio-veja-gastos-do-evento/437454

https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/prefeitura-governo-rio-patrocinaram-30-milhoes-show-lady-gaga-nao-92-milhoes/

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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