Bolsonaro preso por ato institucional togado

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Chegou o dia que todos prevíamos, mas que tanto receávamos. E chegou em um sábado 22, pelo desejo de um togado que há muito trocou razões jurídicas pelo cálculo de estratégias de ataques repentinos e indefensáveis contra seus inimigos pessoais. Em pleno dia de descanso, assinalado no calendário pelo número de sua sigla partidária, Bolsonaro foi retirado da prisão domiciliar e levado à preventiva por força de ato de violência estatal ilegítima, em um dos capítulos mais horripilantes da nossa hecatombe judiciária recente.

Alexandre de Moraes, autor do decreto prisional, feriu entendimento da corte por ele integrada e decidiu não esperar o trânsito em julgado da condenação de Bolsonaro na dita “trama golpista”. O todo-poderoso togado deixou de apreciar o pedido de prisão humanitária para o ex-presidente e menosprezou o curso do prazo para a propositura de embargos infringentes, em atentado aos princípios constitucionais de amplo acesso ao judiciário e de recorribilidade das decisões. Na ânsia por colocar as mãos em seu desafeto político, Moraes transformou em prisão preventiva uma reclusão domiciliar ilegal desde o encerramento do inquérito em cujos autos havia sido determinada. Irregularidades atrás de irregularidades, a pretexto de supostos “fatos novos”. Que fatos?

O principal fundamento invocado pelo togado foi a convocação, pelo senador Flávio Bolsonaro, de uma vigília em oração por seu pai. O exercício da fé e a livre associação de apoiadores do ex-presidente, ambos direitos naturais chancelados por nossa Constituição, foram designados, na canetada de Moraes, como indícios de “altíssimo risco para a efetividade da prisão domiciliar”. Não satisfeito em pisotear as liberdades de credo e de reunião, o togado ainda classificou o chamamento e participação em vigília como “modus operandi da organização criminosa liderada pelo referido réu (Bolsonaro), no sentido da utilização de manifestações populares criminosas, com o objetivo de conseguir vantagens pessoais.” Em postura que escarneceu do senso comum, do direito e de qualquer laivo de humanidade, equiparou a conduta dos que pretendiam sair à via pública para orar pacificamente à fúria de meliantes associados para a delinquência.

Outro pretenso risco suscitado por Moraes consistiu na localização do domicílio de Bolsonaro nos arredores de embaixadas. Em ótimo português, o alvo preferencial do pretenso juiz, além de sujeito à vedação ilegal de uso das redes, foi destinado à masmorra pelo fato de residir no entorno de imóveis ocupados por autoridades estrangeiras. As falas do ex-presidentesua circulação, sua proximidade com lideranças de outros países e até a recordação em orações parecem incomodar tanto o togado a ponto de levá-lo a decretar qualquer expediente abusivo tão somente para tornar Bolsonaro uma figura cada vez mais esmaecida no imaginário popular. Parcialidade crassa, que revela um perseguidor por trás da toga.

Quanto à pretensa tentativa de ruptura da tornozeleira, o assunto foi tratado em uma tímida linha do despacho, em que o togado atribuiu a Bolsonaro a suposta “violação” do equipamento. Não se deu, porém, ao trabalho de esclarecer a natureza da infração, e menos ainda de exibir provas documentais desta. E não o fez por falta de esclarecimentos plausíveis, pois, como noticiado pela grande mídia, a falha ocorrida às 0h08 na tornozeleira foi corrigida poucos minutos depois, enquanto o ex-presidente ainda dormia. Aliás, se o encarceramento foi determinado a pedido da polícia federal, e se a interrupção no funcionamento da tornozeleira foi verificado na madrugada de hoje, como poderia ter o bug minutímico no equipamento fundamentado o decreto prisional? Pergunta retórica em se tratando de uma cúpula togada que ordena o uso da criatividade para a confecção dos cenários ideais aos seus desígnios apriorísticos.

No ápice do seu raciocínio antijurídico e paranoico, Moraes suscitou as partidas ao exterior dos deputados Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli e Alexandre Ramagem como pretensos indicativos de futura escapada também pelo ex-presidente. Fundamentação insustentável, na medida que, sendo a responsabilidade penal individual, Bolsonaro não poderia ser punido por atos de outrem. Contudo, em sua saga de erosão de todas as garantias constitucionais, Moraes não tem hesitado em transferir as penas das pessoas de seus condenados, castigando familiares, apoiadores e até advogados por condutas de seus perseguidos políticos.

A decisão de hoje representou a captura do maior alvo de um regime de desmandos. No entanto, seus efeitos se farão sentir para muito além da pessoa de Bolsonaro. A nova canetada alexandrina criminalizou a prática da fé, assim como qualquer outra promoção de reuniões, encontros ou eventos cujos participantes possam nutrir o mínimo de simpatia pelo ex-presidente. Da mesma forma, mirou o futuro político de Flávio Bolsonaro, de outros herdeiros do bolsonarismo e de toda uma oposição à qual foi vedada a manifestação de opiniões críticas, sob pena de masmorra.

A exemplo dos atos institucionais dos anos de chumbo, esse novo despacho de Moraes tornou a se colocar acima da Constituição para impor o cerceamento indevido às liberdades de Bolsonaro e para amordaçar uma população intimidada. Se, nos anos militares, vigia a temida Lei de Segurança Nacional, hoje vivemos sob o jugo da Lei 14.197/21, que alterou o Código Penal para nele inserir os tais crimes de “golpismo”, de redação quase tão vaga quanto as normas adotadas pelos fardados de décadas atrás.

Nossas lideranças não podem mais se dar ao luxo das meras postagens em redes sociais: ou partem para a tomada de providências efetivas, como, por exemplo, a revogação dos tipos penais do “golpe” (artigos 359-L e 359-M do Código Penal) e a aprovação da anistia a todos os perseguidos políticos, ou entregam nossas liberdades à sanha dos autocratas de plantão. Escolha impostergável, pela qual nossos figurões responderão às gerações do amanhã.

Artigo publicado originalmente no site do jornalista Claudio Dantas. 

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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