Alexandre de Moraes dissemina desinformação
No último dia 15, o STF derrubou leis dos municípios de Tubarão (SC), Petrolina (PE) e Garanhus (PE) que vedavam a inclusão de temáticas de gênero nos currículos escolares. A suprema corte entendeu que houve invasão às competências da União e que as leis veiculavam conteúdo “discriminatório”.
O assunto, por si só, ensejaria um artigo, mas quero me ater aqui ao voto do nosso digníssimo Alexandre de Moraes. Entre outras coisas, Moraes falou: “Não é possível fingir, inclusive para as crianças, que não existem pessoas trans, que não existem travestis, que não existe diferença de gênero. Não é possível, nessa altura do século XXI, agir como o avestruz [enterrando a cabeça no chão] e falar com as crianças que só existem meninos que se vestem de azul e meninas de rosa. E a cada década aumentar 1.000% a violência contra a comunidade LGBT. E continuarmos, pelo 16º ano seguido, sendo o país que mais mata pessoas trans e travestis”.
Em linha com o modus operandi do ativismo identitário, que sempre se vale de números lançados ao ventilador para efeitos de comoção, Moraes repete uma dita informação, há anos enunciada por aí, de que o Brasil seria o país que mais mata pessoas trans. Sem questionamentos, o dado é repetido à exaustão em veículos de imprensa país afora, citado por políticos e governos de esquerda e até mesmo, como vemos, para fundamentar o voto de ministros do STF. Se uma alta autoridade da República está citando essa “informação”, é porque ela é legítima, sobretudo se essa alta autoridade é alguém que tem travado uma guerra pessoal contra a dita desinformação, correto? Nada mais longe da verdade.
Comecemos pelo começo: qual é a fonte de tão enorme afirmação? É possível que, se inquirido, Moraes não soubesse responder, mas estamos falando, a nível internacional, da Transgender Europe (TGEU), uma ONG voltada para a causa trans, responsável pelo site Trans Murder Monitoring (TMM) que congrega os supostos assassinatos de pessoas trans. Já no Brasil, a fonte é o dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Eis o primeiro problema: ONGs dificilmente estarão preparadas ou disporão de condições técnicas e metodológicas para produzir uma pesquisa confiável, sobretudo quando há um claro viés, um claro interesse em produzir os números mais elevados possíveis. Os números alarmantes, portanto, não se baseiam em dados oficiais de nenhum governo, ficando a cargo de ONGs análogas nos países que participam do levantamento.
Conforme o relatório “Falsas afirmações sobre a população autodeclarada trans no Brasil, de 2024”, elaborado pela MATRIA (Mulheres Associadas, Mães e Trabalhadoras do Brasil), há apenas 29 países e 33 instituições, entre o total de 193 países existentes no mundo, que fornecem dados para o Trans Murder Monitoring. Ora, esse é um número muito baixo e, por si só, inviabiliza a afirmação de que o Brasil é o país que mais mata trans. Como afirmar isso sem ter ciência de dados confiáveis dos 164 países restantes? Destaquemos ainda que, dentre os países que não fornecem dados, encontram-se países onde o homossexualismo é crime, em alguns casos punível até mesmo com a morte. Ora, parece-lhes sensato afirmar que nosso país seria o mais transfóbico do mundo, ao passo que há regimes que literalmente executam homossexuais e transexuais, sem que os alarmistas façam qualquer referência à sua existência ou ao fato de que não possuem dados desses lugares?
Para além de a base ser muito baixa, a ausência de dados oficiais faz com que o TMM se valha de matérias de jornais e até mesmo redes sociais como principais fontes de seu relatório. Trata-se de dados muito precários, dada a dificuldade de verificação das fontes e o controle sobre a internet e a imprensa exercido por alguns países. Conforme a revisão da MATRIA: “para a China, cuja população é cinco vezes maior do que a brasileira, consta apenas uma morte em 2022 e um total de dezesseis mortes em todo o período de existência do site”.
A precariedade dessa forma de levantar dados é exemplificada pelo elevado número de mortes contabilizadas onde sequer consta o nome da vítima. Em um caso extremamente sério, o nome Pamela Correia foi incluído no relatório como de uma pessoa trans que teria sido assassinada em Cabo Frio (RJ), com base em reportagens publicadas em 30/01/2022. Ocorre que, poucos dias depois, já no dia 03/02/2022, novas reportagens davam conta de que a polícia constatou se tratar do corpo de um homem chamado Valcilan Braga Correia. A própria comunidade LGBT da região afirmou que o corpo não pertencia a Pamela. Não obstante, a suposta morte de uma pessoa trans serviu para engrossar o caldo da narrativa de que somos o país que mais mata trans.
A cereja do bolo é a forma de divulgação dos dados. Ora, qualquer pessoa minimamente familiarizada com dados sobre violência (era de se esperar que esse fosse o caso de magistrados e autoridade públicas no geral) sabe que eles sempre são apresentados como uma proporção da população, sendo o mais comum o número de incidência (homicídios, por exemplo) a cada 100 mil habitantes. Contudo, por hábito, o TMM e as demais instituições voltadas para a causa trans divulgam os números absolutos. O cálculo proporcional é bastante simples, verdadeira matemática básica, o que sugere que a opção pelos números absolutos se dá com o fim de gerar maior comoção. Quando se leva em conta a população e assumindo que os dados do TMM são confiáveis (não são), o posto de país que mais mata pessoas trans seria do México, ficando o Brasil em segundo lugar.
Contudo, há outro ponto a considerar. A intenção por trás de relatórios como o do TMM, além de inflar o número de assassinatos de pessoas trans, é dar a entender que essas mortes foram, necessariamente, um produto de crimes de ódio. De acordo com o relatório da MATRIA, “na maioria dos casos, não é possível afirmar a motivação do crime e, em diversos deles, a violência se dá entre parceiros íntimos, familiares, possível participação em tráfico de drogas, briga entre grupos criminosos etc”. Consideremos também que muitas vezes ocorre a inclusão de casos onde não é possível atestar que a morte foi intencional, como um atropelamento, na ocasião, ainda em investigação pela polícia.
As mesmas falhas metodológicas encontradas no relatório do TMM também aparecem no dossiê anual da ANTRA e recomendo a leitura da revisão da MATRIA para maiores detalhes.
Como alguém pode ignorar todos os erros apontados aqui e se ater à informação de alguns parágrafos acima de que, considerando os dados do TMM e quantificando-os proporcionalmente à população, o Brasil, se não o que mais mata, seria o segundo país que mais mata trans? convém ir um pouco além. Nosso país, que já amarga a posição de líder em número absoluto de homicídios (mesmo não tendo a maior população do mundo), figurava em 2021 na 14ª posição ao se levar em conta a taxa de homicídios por 100 mil habitantes. Em 2024, a média nacional foi de 20,8 homicídios intencionais a cada 100 mil habitantes, cifra elevadíssima, que revela um fato incômodo: o Brasil é um país com muita violência. Ora, ainda que houvesse um levantamento de dados oficiais para a população trans, pelo IBGE, por exemplo, não seria de surpreender se revelasse um grande número de homicídios para essa população sem que isso significasse mortes causadas por transfobia. Em um país em que se mata muito, de forma geral, não é de surpreender que isso ocorra para os mais diversos grupos. Ocorre que, se tratarmos como legítimos os dados levantados pelas referidas organizações, a taxa de mortalidade da população trans no Brasil seria de 0,05 a cada 100 mil habitantes, uma taxa muito menor do que a média nacional de 20,8 (2024). Não há dados oficiais sobre o percentual da população brasileira que se identifica como trans, mas, com base em um estudo da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), a cifra seria de 2%. Pois bem, computando o número de alegados assassinatos de pessoas trans no Brasil em relação ao que representaria 2% da população brasileira, isso resultaria, conforme a mais recente revisão da MATRIA, 2,51 mortes a cada 100 mil habitantes, um número ainda bem menor do que a média nacional, bem como consideravelmente inferior ao estado com a menor taxa de homicídios (São Paulo; 6,4).
Se você chegou até aqui, deve restar claro como água que não há base alguma para afirmar que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. As instituições que levantam os dados não são confiáveis e têm toda sorte de vieses; a base considerada é ridiculamente pequena; a fonte primária dos dados é extremamente precária; ignora-se a metodologia mais básica e apresentam-se os dados como números jogados no ventilador, sem qualquer consideração às diferenças de tamanho entre populações. Não obstante, essa “informação” é repetida ad nauseam por aí, sendo usada, como vimos, como fundamentação do voto de um ministro do STF. Aliás, não é a primeira vez: ao votar a favor da equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo, o então ministro Ricardo Lewandowski também fundamentou seu voto com outro embuste: o de que a expectativa de vida das pessoas trans seria de 35 anos.
Chamemos as coisas pelo nome, trata-se de fake news. E vejam só: quem está disseminando essa fake news? O próprio, o campeão da verdade, o que fez da toga uma armadura para guerrear contra a desinformação, o colírio para os olhos da Alcione, o “eterno” salvador da democracia Alexandre de Moraes. Cumpre perguntar: ele vai se auto colocar como investigado no inquérito das fake news? Eis uma oportunidade ímpar para que ele complete o check list e seja, enfim, todas as partes de um processo; para além de vítima, denunciador, promotor, investigador, juiz, como está habituado a ser, seria, de forma inédita, ele também o acusado.
Tenham em mente, meus caros, que o governo acaba de anunciar o financiamento de uma plataforma para monitorar e “responsabilizar” autores de “desinformação” ou dito discurso de ódio contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais etc. A chamada “Plataforma do Respeito” é uma parceria do Ministério dos Direitos Humanos com a ONG (sempre uma ONG) Aliança Nacional LGBTI+ e fruto de uma emenda da deputada trans Érika Hilton (PSOL-SP). Sempre encontrando novas formas de espezinhar mais o cidadão, este governo agora nos obrigará a financiar uma plataforma para nos censurar. Não é lindo?
Em Areopagítica, John Milton argumenta que a verdade está disseminada, não sendo o monopólio de ninguém; deriva disso que só podemos alcançá-la com a livre troca de ideias, sem censura, já que a censura implicaria conceder ao censor o domínio de uma verdade que não é propriedade de ninguém. Quase quatro séculos após Milton produzir um dos textos mais célebres sobre a liberdade de expressão, se não o mais, a juristocracia brasileira e seus acólitos conceberam o exato oposto: a verdade não estaria disseminada, sendo, ademais, a massa popular, em grande parte, ignorante e incapaz de localizá-la por conta própria, carecendo, assim de uma elite iluminada para lhe dizer o que é verdade ou não. Pois aí estão seus paladinos da “verdade” em plena ação. Numa ponta, fundamentam-se decisões judiciais com números tirados só não vou dizer de onde para manter o decoro no artigo; na outra, financiam o monitoramento das redes para, sem prejuízo de outras questões, perseguir os que ousam questionar tais números.
Contemplem o oráculo dos novos tempos anunciar, contra toda a lógica e bom senso, que o país do carnaval é um inferno mais ardido para os LGBTs do que certas ditaduras africanas. Renunciem à matemática básica e forrem com manteiga os devaneios empurrados goela abaixo pelas ONGs, pela imprensa e pela burocracia juristocrática. Celebrem a chance de participarmos desse grande experimento social, próprio dessa era de pós-verdade, onde se anunciam, ao vivo e a cores, as consequências de se permitir que o Estado estabeleça o que é ou não verdade. A verdade já não está disseminada, ela está nas mãos daqueles que, por imerecida influência e/ou por usurpado poder coercitivo, estão em condições de estabelecê-la a seu bel prazer.
Fontes:
https://associacaomatria.com/transmatematica-taxas-baixas-que-se-identificam-como-altas/
https://associacaomatria.com/falsas-afirmacoes-sobre-a-populacao-autodeclarada-trans-no-brasil/
https://exame.com/mundo/os-paises-com-maiores-taxas-de-homicidio-segundo-a-onu/
https://exame.com/mundo/os-paises-com-maiores-taxas-de-homicidio-segundo-a-onu/
Areopagítica — John Milton



